Estamos propondo que, lado a lado, com o licenciamento ambiental seja construída a Licença Social Para Operar, envolvendo o setor privado mais o setor público mais a sociedade civil, como vem ocorrendo em países de economia mais avançada. Dessa forma, é possível, de forma civilizada, chegar ao ponto em que os projetos de mineração deixem de ser considerados como uma maldição.
“Eu por mim criaria o Ministério da Exaustão, que aconselharia o Governo a dar lugar a outros governos, o velho a remoçar quando vai esticando a canela. Ensinaria ao mesmo tempo o moço a fruir sua novidade ciente de que outra novidade vem aí, e que, o mundo não acaba quando acabamos”.
Carlos Drummond de Andrade
APRESENTAÇÃO
Além das incertezas gerais que caracterizam o atual contexto histórico da economia brasileira, o setor extrativo mineral está vivendo um conjunto de incertezas específicas tanto em suas atividades operacionais quanto nas decisões estratégicas de investimentos.
Destacam-se, como ilustração, as imensas dificuldades encontradas para viabilizar dois grandes projetos de investimentos em mineração. O maior projeto de investimento em minério de ferro da VALE no Quadrilátero Ferrífero (o Projeto Apolo) e um projeto de exploração de bauxita da Rio Tinto, na Calha Norte no Estado do Pará. São grandes projetos que, além de seus impactos macroeconômicos na formação do superávit comercial do Brasil, têm a capacidade de alavancar um processo de crescimento econômico em suas áreas de influência regional, gerando emprego de qualidade e renda, além de ampliar a base tributável de Estados e Municípios e promover o desenvolvimento humano de seus habitantes.
Os projetos tiveram, de um lado, o inequívoco apoio das lideranças políticas locais e regionais, por outro lado, a forte resistência de algumas instituições públicas e privadas à sua implementação. Acabaram sendo postergados sem perspectiva de serem viabilizados no médio prazo e sem um horizonte de soluções para os impasses criados, a não ser que voltem à cena devidamente reformuladas.
Creio que dificilmente veremos a execução de novos grandes projetos de mineração no Brasil, em um futuro próximo, se não houver uma renovação de ideias quanto à concepção e à implementação desses projetos e quanto aos paradigmas de negócios estabelecidos na alta direção de muitas empresas de mineração no Brasil. A proposta é a de que sejam reformulados em sua concepção e implementação, desde a instalação até a operação.
Mudanças profundas são necessárias nos paradigmas de gestão de muitas empresas mineradoras, cujo valor primário, que orienta o foco de suas ações programáticas, tem sido efetivamente a maximização dos ganhos financeiros de seus acionistas, sem a preocupação com o valor público dos empreendimentos.
O valor público se refere à responsabilidade social ampliada das corporações no século 21, que busca integrar eficiência econômica, sustentabilidade ambiental e justiça social em suas ações operacionais e estratégicas. Afinal, estão explorando um patrimônio público para gerar riqueza privada.
Vejam a concepção de muitos projetos de mineração quanto aos ecossistemas das regiões em que inserem os seus investimentos. Mesmo adotando uma atitude minimalista em relação às estruturas regulatórias prevalecentes, frequentemente tratam o meio ambiente como um megaalmoxarifado de onde extraem recursos naturais e como um megadepósito ou lixão onde depositam os seus resíduos ou dejetos industriais, e não como patrimônio natural da sociedade que não pode ser explorado socializando os danos ambientais e privatizando os lucros. Uma questão que não se resolve com o uso de parcela desses lucros em ações compensatórias ou de mitigação.
Muitas mineradoras desconhecem os efeitos colaterais e externos de suas ações sobre o desenvolvimento sustentável da região e o bem-estar social sustentável da população. Têm dificuldades para integrar expectativas heterogêneas e promover a gestão de conflitos paralisantes, o que leva à insatisfação, ao inconformismo e à resistência de diferentes grupos sociais a esses projetos.
Enfim, não percebem que, lado a lado com as licenças legais de operação e de instalação de seus empreendimentos, precisam conceber e executar “a licença social para operar”, um instrumento de diálogo e de negociação com os principais atores envolvidos nos custos e benefícios socioambientais dos investimentos. Frequentemente, nesse processo, os atores que representam os interesses das gerações futuras quanto ao uso dos ativos e serviços ambientais são o Ministério Público (MP), as organizações não governamentais, os movimentos sociais, as instituições acadêmicas.
Mas, como escreveu Keynes em dezembro de 1935: “A dificuldade não está nas novas ideias, mas em escapar das velhas que se ramificam, para aqueles que foram criados como a maioria de nós foi, por todos os cantos de nossas mentes”
O Brasil, que está vivenciando um período de baixo crescimento econômico, desde os anos 1980, com crescente número de pobres e miseráveis, não pode dar-se ao luxo de postergar os projetos de mineração que são globalmente competitivos, podendo trazer imensos benefícios econômicos para a sociedade.
Estamos propondo que, lado a lado, com o licenciamento ambiental (LP+LI + LO+ Audiências Públicas) seja construída a Licença Social Para Operar (LSO), envolvendo o setor privado mais o setor público mais a sociedade civil, como vem ocorrendo em países de economia mais avançada. Dessa forma, é possível, de forma civilizada, chegar ao ponto em que os projetos de mineração deixem de ser considerados como uma maldição.
A LICENÇA SOCIAL PARA OPERAR E O FUTURO DOS PROJETOS DE MINERAÇÃO NO BRASIL
É grande a desconfiança de nossa população quanto aos benefícios das atividades de mineração para a sociedade brasileira. Sem dúvida, o principal motivo está ligado ao fato de que, em sua maioria, os grandes desastres ambientais estão relacionados aos projetos que utilizam intensivamente recursos naturais renováveis e não renováveis, entre os quais os projetos de mineração.
No século 21, destacam-se entre esses maiores desastres no Brasil:
- vazamento de óleo na Baía de Guanabara (2000);
- vazamento de óleo nos Rios Barigui e Iguaçu no Paraná (2000);
- naufrágio da plataforma P-36 na Bacia de Campos (2001);
- rompimento da barragem para a produção de celulose em Cataguases-MG (2003);
- rompimento de barragem Bom Jardim em Miraí-MG (2007);
- vazamento de óleo na Bacia de Campos (2011);
- incêndio na Ultracargo no Porto de Santos (2015);
- rompimento da barragem do Fundão em Mariana-MG (2015);
- rompimento da barragem de Córrego do Feijão em Brumadinho-MG em (2019) com 270 mortes.
O historiador Niall Ferguson analisou a política das catástrofes na história da Humanidade, desde a erupção do Vesúvio na Itália, no ano 79 D.C. até a pandemia da COVID-19, nos anos recentes*. A sua conclusão sobre a geometria fractal dos desastres é a seguinte: “the common feature of all disasters, whether sinking ships or exploding nuclear reactors, is the combination of operator error and managerial error”.
Ou seja, entre a decisão de se implementar um grande projeto de investimento (GPI) e o início de sua operação, ocorre a gestão intermediária, onde estão as sementes que germinarão os grandes desastres. São as decisões relativas à microlocalização, aos processos tecnológicos, ao tratamento de resíduos e rejeitos, às relações com o entorno do sistema natural, etc., das etapas de implementação e operação dos projetos de investimento.
Como todas essas decisões relativas à concepção e à implantação de projetos de investimentos passam pela aprovação das estruturas regulatórias do Poder Público, é preciso considerar o descompasso entre os objetivos de desenvolvimento sustentável da sociedade e as disfunções burocráticas visando a “tornar as sociedades e os sistemas políticos mais resilientes e idealmente menos fragilizadas”.
De que disfunções burocráticas está se falando?. Consideremos o posicionamento dos três níveis de governo em relação às decisões sobre novos projetos de investimentos em mineração. Em geral, os governos municipais e estaduais tendem a considerar apenas os grandes e efetivos benefícios desses projetos para o crescimento econômico local e regional (emprego, renda, base tributável, melhoria de infraestrutura) desprezando as manifestações de oposição da sociedade civil organizada quanto aos custos sociais e ambientais para as atuais e futuras gerações.
Tende a ocorrer uma polarização no processo de decisão sobre os resultados finalísticos: de um lado, há administrações que desativam e fragilizam os mecanismos e instrumentos das políticas ambientais e partem para atitudes de “porteiras abertas”; do outro lado, diante de incertezas quanto a se estar aprovando a ocorrência futura de novos desastres ambientais, os técnicos responsáveis enrijecem e dificultam a aprovação de novos projetos.
No meio do caminho, há três questões: a relação custo-benefício dos projetos de mineração para a sociedade em níveis diferenciados no tempo e no espaço; a concepção prevalecente da empresa capitalista no século 21; a metodologia de análise e avaliação socioeconômica e socioambiental dos projetos de mineração. Todas as três questões têm de ser observadas em termos de planejamento de longo prazo, lembrando a reflexão de Peter Drucker segundo a qual o planejamento não trata das questões do longo prazo, mas dos impactos das decisões presentes sobre o longo prazo.
CUSTOS E BENEFÍCIOS SOCIAIS DOS PROJETOS DE MINERAÇÃO
Não se pode menosprezar a imensa lista de contribuição e de benefícios que os projetos de mineração têm trazido para a economia brasileira desde a II Grande Guerra. Esses benefícios se espraiam para os níveis macroeconômico, regional e setorial, para as famílias brasileiras.
- Ao nível macroeconômico, as exportações minerais brasileiras alcançaram, em 2022, 41,7 bilhões de dólares; o saldo comercial (exportações minerais menos as importações minerais) de quase US$ 24,9 bilhões equivale a 40% do saldo comercial brasileiro que foi de US$ 61,8 bilhões; esse saldo dá ao País graus de liberdade para formular, de forma independente, políticas públicas com autonomia;
- Ao nível de crescimento econômico intersetorial, destacam-se os quatro efeitos mais importantes dos projetos de investimentos minerais:
- Efeitos de dispersão ou de encadeamento para trás: dada a estrutura tecnológica, serão necessárias determinadas quantidades de diferentes insumos (bens e serviços) para produzir determinadas quantidades de produtos, dadas pelos respectivos coeficientes técnicos de produção (relações de insumo-produto); a economia local e regional pode se beneficiar desses efeitos diretos de encadeamento para trás, produzindo parcela desses insumos através do sistema produtivo existente ou da implantação de novos projetos; os encadeamentos para trás podem gerar várias rodadas de efeitos positivos para a economia da região, pois as atividades beneficiadas pelos efeitos diretos necessitarão também de outros insumos, parcela das quais poderá, eventualmente, também ser produzida na própria região ou localidade (efeitos indiretos);
- Efeitos de dispersão ou de encadeamentos para frente: trata-se de beneficiamentos que podem ser realizados com os produtos da nova atividade econômica na própria economia da região ou localidade, através de efeitos causados em atividades que utilizam esses produtos como insumos;
- Efeitos induzidos: são os provocados pela demanda final de bens de consumo ou de bens de capital em função do crescimento da renda e do mercado regional; a implantação da nova atividade econômica na região e a produção resultante dos efeitos de encadeamento promoverá uma expansão nos mercados locais, a qual pode estimular o crescimento na produção local para o atendimento do consumo privado ou dos investimentos reais, dependendo do potencial de diversificação da economia regional; para o cálculo dos efeitos induzidos, é fundamental o conhecimento da massa salarial e de sua composição para articulá-la com as pesquisas de orçamento familiar (POF);
- Efeitos fiscais: dadas as características do sistema fiscal do País, o desenvolvimento de uma nova atividade econômica, com suas repercussões em atividades satélites ou complementares e sobre o processo de urbanização na região, sempre irá conduzir ao crescimento das receitas tributárias da região (próprias ou de transferências), por causa do aumento da circulação de mercadorias, da expansão dos setores terciários e dos acréscimos nos valores patrimoniais privados; no caso dos municípios mineradores, a partir de informações sobre a implantação e a operação do projeto de investimento, é possível projetar os acréscimos de arrecadação do CFEM, do ISSQN e do ICMS; a composição da receita tributária projetada varia entre a fase de implantação e a fase de operação.
- Ao nível do desenvolvimento regional e local, há inúmeras microrregiões e municípios do País cuja base econômica é a mineração. Muitos projetos estão localizados principalmente no Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais ou no Sudeste do Pará (Província Mineral de Carajás). O Estado da Bahia tem executado uma política de promoção industrial visando a atrair grandes projetos de investimento em mineração. Em Santa Catarina, destaca-se a extração de carvão mineral que busca inovações tecnológicas visando a equacionar a questão da poluição ambiental gerada na sua produção e na sua utilização. Outras experiências regionais de grande expressão podem também ser mencionadas.
- Quando um projeto de investimento em mineração é implantado em determinado município, ele gera uma série de impactos positivos para a economia local e regional, destacando-se*:
- expansão dos níveis de emprego e da massa salarial;
- significativa elevação do salário médio real e das condições gerais de empregabilidade;
- expansão da base tributável, o que permitirá financiar maior quantidade e melhor qualidade dos serviços sociais básicos de saúde, de educação, de infraestrutura, etc.;
- criação de um ambiente de desenvolvimento local e regional no qual venham a ocorrer uma vasta gama de oportunidades e múltiplas opções de empreendimentos para as populações locais;
- articulação da demanda de mão de obra dos projetos com uma política educacional que qualifique a força de trabalho local para os novos postos de serviços a serem abertos.
Em geral, os municípios em que as atividades de mineração se consolidaram ao longo do tempo apresentam indicadores de desenvolvimento humano que têm em sua composição indicadores de renda e emprego, saúde e educação (IDH-M, IFDM) de Desenvolvimento Alto e Moderado. Esses impactos benéficos para o bem-estar social sustentável de suas populações seriam maiores se as administrações públicas locais fossem operacionalmente mais eficazes e mais eficientes. Difícil pois, não esperar que as lideranças políticas e comunitárias das regiões e localidades onde se implantam os projetos façam restrições e condicionalidades por causa de questões ambientais e que deixem de se mobilizar politicamente para a atração dos investimentos.
Em um ensaio sobre a relação entre liberdade e capitalismo, Milton Friedman(1912-2006), líder da Escola de Economia da Universidade de Chicago, afirmava que o objetivo fundamental de uma empresa é a maximização do lucro obtido dentro da estrutura legal, sendo que qualquer outro objetivo secundário pode levar ao “puro e total socialismo”. Essa concepção de empresa tornou-se dominante até os anos 1990, quando havia uma preocupação uníssona com os resultados financeiros dos empreendimentos e, ao mesmo tempo, uma absoluta indiferença com as perdas e os ganhos socioeconômicos e socioambientais de suas ações estratégicas e operacionais.
A partir dos anos 1990, iniciou-se uma contraposição a essa concepção de empresa com a reformulação do conceito de competitividade. Michael Porter sintetizou essa reformulação, afirmando que uma empresa somente será competitiva se ela for competitiva do portão da fábrica ou da porteira da fazenda para dentro, se a cadeia produtiva ou a cadeia de valor na qual se insere for competitiva em seu conjunto e se a região em que se localiza for igualmente competitiva. Uma mudança de paradigma que implicou novos modelos mentais e sistemas de crenças para as lideranças empresariais.
Essa nova concepção de empresa promoveu a ampliação em seu escopo com a abrangência de uma tríplice base de objetivos. A eficiência econômica, se a empresa criar uma vantagem competitiva sustentável, adotando estratégias de baixo custo ou de diferenciação e de diversificação dos produtos com suporte no progresso tecnológico e sendo globalmente competitiva. A sustentabilidade ambiental, se a empresa se sujeita à preservação e à manutenção dos ativos e serviços ecossistêmicos ao longo do tempo, na busca de um jogo de soma positiva entre os interesses de várias gerações. E como terceiro objetivo, a equidade social, por meio de ações que contribuam para a melhoria na oferta de serviços sociais básicos e na formação do capital social e institucional.
Esses três objetivos integrados passaram a constituir o que se denominou de triple bottom line, que servia de base para o processo de planejamento estratégico na transição do século 20 para o século 21.
Para inúmeras empresas, esse tripé de objetivos tornou-se um bem de luxo quando ocorreu a crise capitalista de 2008. Bens de luxo são aqueles cuja demanda cresce na fase de prosperidade econômica e que tendem a ser descartados, em primeiro lugar, na fase de recessão econômica. A essencialidade de um bem de luxo é definida a partir das estruturas ideológicas de dirigentes políticos ou empresariais responsáveis pela formulação e pela implementação de políticas públicas ou de estratégias corporativas. Assim, essas empresas retornaram rapidamente à concepção Friedmaniana dos anos 1970, com uma roupagem nova, de que sua missão institucional é “maximizar o valor econômico para os acionistas”.
A propósito, muitos cursos de nível superior (principalmente os MBAs) se contaminaram com essa concepção Friedmaniana e preparam os seus alunos estritamente para “serem profissionais úteis às empresas vencedoras”, na expressão de Galbraith.
A desconfiança que se observa quando aos projetos de investimentos em mineração por parte dos stakeholders (formadores de opinião) no Brasil, se refere às implicações estratégicas e operacionais da concepção Friedmaniana de empresa que preside a concepção e a implementação dos seus empreendimentos. Pode-se afirmar que muitas empresas de mineração e seus profissionais estão com pés no século 21 e a cabeça nos anos 1970.
A sua aspiração é a de um Estado mínimo, de acesso livre ou porteiras abertas para a exploração dos recursos ambientais, de estruturas regulatórias flexíveis e sem muitas amarras institucionais, enfim um ambiente de laissez-faire, laissez- passer, do capitalismo do século 19, pois segundo o credo de Friedman, o indivíduo:“Não conhece qualquer objetivo nacional, senão o conjunto de objetivos a que os cidadãos servem separadamente. Não reconhece nenhum propósito nacional, a não ser o conjunto de propósitos pelos quais os cidadãos lutam separadamente”
Ocorre, contudo, que muitas empresas financeiras e nãofinanceiras de países desenvolvidos já incorporaram em seu processo decisório a concepção de empresa no século 21 (competitiva, inclusiva, e sustentável), como pode ser ilustrado através de alguns exemplos: empresas nãofinanceiras desses países que não adquirem alimentos e outros produtos produzidos em regiões onde houve desmatamentos e garimpos ilegais; empresas financeiras que não incluem em seu portfólio ações de empresas cujos projetos de investimento (mineração, hidroelétricas, petrolíferas, etc.) são responsáveis por desastres ambientais man made.
Simultaneamente, desenvolveu-se a concepção contemporânea de valor público da empresa, a qual, como contraponto à dominância do desempenho financeiro, redefine a ideia de criação de valor, levando em consideração não apenas os aspectos hedonísticos e utilitaristas, mas também a dimensão ética e político-institucional dos negócios. Segundo o paradigma do valor público da empresa, a sua estratégia de crescimento precisa ser monitorada através de diálogo com os interesses maiores da sociedade. Assim, muitas empresas brasileiras têm tido excelente performance financeira, criando valor para os acionistas, enquanto destroem o seu valor público ao contribuir para a degradação ambiental, para a concentração da renda e da riqueza nacional e para gerar lucros manchados de lama e de sangue.
O que mais impressiona é o conformismo político da maioria dos formadores de opinião pública com o atual status quo socioeconômico e socioambiental do Brasil. Talvez a explicação para essa postura conservadora de líderes empresariais, políticos elíderes comunitários esteja na figura do homo oeconomicus que vem sendo forjada pelo capitalismo desde a sua origem, na fase final da Idade Média. Mas quem é o homo oeconomicus nas atuais economias mistas de mercado?
Albert Hirschman analisou o papel do interesse individual que se tornou funcional na formação das economias capitalistas, desde o século 17 até os tempos atuais, considerando o tripé das funções do sistema: crescer, estabilizar e distribuir.
Ao longo do tempo foi se configurando um indivíduo isolado, orientado pelo interesse próprio, que escolhe, livre e racionalmente, entre os cursos alternativos de ação, após estimar os custos e os benefícios prospectivos para si, ignorando, ao mesmo tempo, os custos e os benefícios para outras pessoas e para a própria sociedade. Hirschman destaca dois elementos essenciais que caracterizam a ação impulsionada pelo interesse individual. Autocentrado, isto é, atenção predominante do ator para as consequências de qualquer ação quando consideradas para si mesmo.
Cálculo racional, isto é, um esforço para avaliar custos, benefícios, satisfações prospectivas. Muitas empresas no século 21estão modeladas, em termos de seu escopo, pelo processo de decisão e operação segundo a filosofia prevalecente do homo oeconomicus, embaladas por profissionais úteis que acabam se configurando como tecnocratas que sabem cada vez mais de cada vez menos,.
Enfim, o homo oeconomicus é produtor e consumidor, mas não pratica a cidadania. Em 1776, Adam Smith já afirmava: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da consideração que eles têm do seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles”.
LP, LI, LO e LICENÇA SOCIAL PARA OPERAR
Usualmente, para a aprovação de projetos de investimentos, as empresas procuram obter o licenciamento ambiental que inclui a licença prévia (LP), a licença de instalação (LI) e a licença de operação (LO), incluindo as audiências públicas. Tudo ocorre dentro de um ritual muitas vezes lento, exaustivo e, principalmente, tenso e conflituoso que pode durar alguns meses até anos de controvérsias e incertezas entre o setor público e o setor privado, atrasando os investimentos que geram emprego, renda, divisas, tributos e taxas em um País que, desde os anos 1980, vem crescendo lentamente, empobrecendo sua população com o aumento dos brasileiros pobres e miseráveis, e que vem perdendo posição relativa no cenário econômico mundial em termos de progresso científico e tecnológico.
A posição empresarial panglossiana ao considerar que, aprovadas as licenças ambientais, a sua responsabilidade social está esgotada, podendo tocar em frente os seus projetos, porque, afinal, paga os seus impostos em dia, é um grande equívoco por diferentes razões:
- desde o processo de redemocratização do Brasil é crescente o grau de participação espontânea e induzida da sociedade civil no processo de decisão sobre o futuro dos grandes projetos de investimento, avaliando os seus custos e benefícios para a sociedade como um todo, considerando os interesses não apenas das gerações presentes mas também das gerações futuras que não estão presentes no mercado mundial. Michael Common and Sigrid Stagl*consideram que os mercados sozinhos não são suficientes e que a governança também é necessária, um conceito mais amplo do que o de Governo.
Governo: refere-se ao Estado, que tem a legítima autoridade para tomar decisões em nome de toda a comunidade. Governança: refere-se à miríade de outras organizações e instituições envolvidas na condução democrática da sociedade na direção do processo de desenvolvimento sustentável. Enquanto num processo de planejamento burocrático, os projetos são avaliados apenas pelos órgãos dos três níveis de governo ainda que com alguma consulta popular, num processo de planejamento democrático participativo os projetos são avaliados pelos governos e outras instituições da sociedade visando a organizar as economias, de tal forma que gerem resultados finalísticos de maior sustentabilidade.
- como operacionalizar os papéis do Governo e dos segmentos organizados da sociedade civil (movimentos sociais, organizações não governamentais, instituições acadêmicas, MP, etc.) no processo decisório sobre um grande projeto de investimento? Através do processo de planejamento para negociação em torno de um documento denominado Licença Social para Operar, na construção do qual já existem metodologias consolidadas internacionalmente e algumas propostas preliminares no Brasil (ver “Metodologia de Gestão da Sustentabilidade de Projetos de Capital” – VALE/JANUS/AMPLO; ver também a Metodologia do IBASE – Instituto Brasileiro de Análise Sociais e Econômicas – fundado por Betinho e companheiros; entre outras instituições).
- como a governança abrange decisões tomadas em conjunto pelo setor público, pelo setor privado e pela sociedade civil, fica a impressão de que o processo será mais prolongado e custoso. Ledo engano. A discussão é conduzida por algumas regras do jogo que permitem decisões com maior agilidade:
- casos há em que se conclui por ajustes incrementais ou por mudanças localizadas em alguma característica do projeto na fase de implementação ou de operação do projeto;
- há casos em que ocorre o uso do princípio de precaução*. Os projetos podem ser postergados pela necessidade de informações adicionais sobre as relações e os impactos entre o sistema econômico e o sistema natural, com a preocupação da eventual ocorrência de danos ou desastres ambientais;
- há casos em que novos projetos de investimentos provocam o depósito de resíduos e de dejetos que comprometem a capacidade assimilativa do meio ambiente, não podendo, pois, serem aprovados em função dos interesses das futuras gerações.
- não devem ser aprovados também projetos que, para atingir uma taxa mínima de rentabilidade financeira, têm de utilizar mãodeobra informalou sem respeito às regras trabalhistas prevalecentes, como tem ocorrido frequentemente em projetos de mineração na Amazônia.
- O Relatório de Licença Social para Operar tem quatro módulos na metodologia de gestão da sustentabilidade( VALE/JANUS/AMPLO):
- Módulo de Relacionamento com Stakeholders (formadores de opinião);
- Módulo de Avaliação de Riscos e Oportunidades Socioambientais;
- Módulo de Agenda de Sustentabilidade;
- Módulo da Qualidade da Licença para Operar.
- Como a Licença Social para Operar se soma às LP, LI, e LO, imagina-se que os custos de transação devem crescer enormemente; mas não quando se consideramos custos de oportunidade* do tempo que demora para se obter um licenciamento ambiental de um projeto que deixa de ser aprovado ou os custos de reparação de eventuais desastres ambientais futuros.
- Na verdade, quando a sociedade civil rejeita um projetopor causa de sua localização em áreas urbanas congestionadas, por causa de sua concorrência com o uso de algum recurso ambiental relativamente escasso (hot point), por causa de suas características de “enclave econômico regional”, etc., ela se mobiliza e induz uma participação e uma negociação ex post, num ambiente imprevisível de tensões, conflitos e controvérsias, muitas vezes de forma anárquica e interminável.
- Há um ditado italiano que diz:“Trail dire e il fare c’è di mezzo il mare”. De fato, a distância entre as palavras e os atos continua a ser particularmente grande em muitos projetos de investimentos. Assim, uma das questões principais da Licença Social para Operar é o sistema de avaliação e controle das ações programáticas para eventuais erros de operação e de gestão.
- Pode-se ilustrar essas reflexões a partir de três casos ocorridos nos últimos anos, nos quais tive a oportunidade de observação privilegiada:
- em 1980,antes mesmo da legislação atual sobre os crimes ambientais, quando se decidiu pela construção do Aeroporto Internacional de Confins, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, houve duas manifestações de grupos da sociedade civil sobre a localização do projeto. A população de Vespasiano reagiu à eventual poluição sonora afetando o seu bem-estar social sustentável. E um grupo de ambientalistas manifestou preocupação com os impactos do projeto sobre as cavernas históricas de calcário na Região. Como resultado de negociações entre sociedade civil, setor público e setor privado (empresas construtoras), foram aprovadas mudanças no projeto: alteração na direção da pista e a realização de obras de contenção para preservar as cavernas calcárias.
- anunciado pela VALE em 2009, o Projeto Apolo é um projeto integrado de mina, usina e ferrovia localizado em Caeté e Santa Bárbara, no Estado de Minas Gerais,prevendo a produção de 14 milhões de toneladas por ano; à época, houve uma forte resistência da população local e dos movimentos organizados da sociedade civil, em função principalmente dos impactos adversos sobre os recursos hídricos da Serra do Gandarela que abastece a Região Metropolitana de Belo Horizonte e sobre os riscos de rompimento de barragem. O projeto foi engavetado e criou-se o Parque Nacional do Gandarela. Os municípios onde haveria localização do projeto lamentaram o seu cancelamento por causa dos empregos a serem gerados na região que tinha um grande número de desempregados, subempregados e desalentados principalmente de jovens de 18 a 24 anos. Hoje, 14 anos depois, com elevado custo de oportunidade para a Vale, após diálogos na ALMG, uma nova versão do projeto está sendo apresentada, principalmente com mudanças nos processos tecnológicos sem barragem e sem o uso de água no beneficiamento do minério de ferro, assim como, reduções significativas na área do projeto.
- há casos, contudo, em que prevaleceu o Princípio da Precaução como fator determinante da decisão finalística sobre o futuro do projeto de investimento. Cita-se, como exemplo, um grande projeto de investimento na exploração de bauxita da Rio Tinto, na Calha Norte (PA). Apesar do apelo de 16 Prefeitos dos Municípios na área de influência do projeto (mina + ferrovia + porto), afirmando que uma das principais alternativas de emprego para a juventude na área tem sido nos mercados de trabalho informal como o tráfego de drogas, o projeto não foi aprovado por deixar incertezas sobre os seus impactos ambientais na Floresta Amazônica. Incertezas que nasceram dos danos e desastres ambientais provocados na Amazônia Legal pelo ciclo dos grandes projetos de investimentos, a partir dos anos 1970, que entraram na Região com “as porteiras abertas” e acesso livre.
- Niall Fergunson identifica cinco formas gerais de negligência política na preparação estratégica para enfrentar e mitigar as diferentesformas de desastres, catástrofes ou colapsos:
- o fracasso em aprender com a história;
- o fracasso de imaginação;
- a tendência para lutar a última guerra ou crise;
- a subestimativa de ameaças;
- a procrastinação ou espera da certeza que nunca vem.
- Especificamente para a questão de encontrar uma geometria fractal que possa destravar a execução dos novos e grandes projetos de investimentos, é importante observar como os países de economias avançadas equacionaram a questão da sustentabilidade em projetos intensivos de recursos naturais.
- Jared Diamond, Professor de Geografia na Universidade da Califórnia, em seu livro “Colapso –Como as Sociedades Escolhem entre o Fracasso e o Sucesso” analisa as sociedades antigas e as sociedades modernas quanto às relações entre crescimento e meio ambiente.
- No capítulo 15, trata das relações entre os grandes negócios e o meio ambiente considerando projetos de investimentos nos setores petróleo e gás, mineração de rocha dura, madeira e a indústria marítima de alimentos. Após examinar a relação dos impactos desses setores com o meio ambiente, ilustra como, com o atual desenvolvimento científico e tecnológico, é possível conciliar a concepção e a implementação dos investimentos com os critérios de sustentabilidade. Um convite para uma reflexão sobre a eventual pavimentação da BR-319 Manaus-Porto Velho e a eventual exploração de petróleo na Amazônia.
- Enfim, não se resolvem os conflitos entre os interesses das empresas na realização de grandes projetos de investimento com os interesses da sociedade quanto a um processo de desenvolvimento sustentável reduzindo a participação dos segmentos organizados da sociedade civil nos órgãos que deliberam sobre a aprovação dos projetos, nem fragilizando as estruturas regulatórias ou desmobilizando as instituições públicas responsáveis pelas políticas ambientais. Tudo que precisa ser feito, tem de ser feito. Não podemos continuar andando de lado. O tempo não para e o futuro sempre vem. Como dizia Alice no País das Maravilhas: “Dizem que o tempo resolve tudo. A questão é: quanto tempo ?”… “Ficou ali sentada, os olhos fechados, e quase acreditou estar no País das Maravilhas, embora soubesse que bastaria abri-los e tudo se transformaria em insípida realidade”.
- Duas observações finais. Jared Diamond destaca que a criminalização das empresas ignora que a responsabilidade última é da sociedade civil ao permitir, diretamente ou através dos seus representantes políticos, que os ativos ambientais e os seus serviços (de provisão, regulatórios, de habitat, culturais) sejam usados de forma não sustentável e que as empresas se transformam quando a sociedade tem a expectativa e induzem comportamentos diferenciados em relação ao meio ambiente. Prediz que, no futuro, mudanças nas atitudes do público serão essenciais para mudanças nas práticas empresariais quanto ao meio ambiente. Daí se configura a importância da Licença Social Para Operar.
- Além do mais, se madeireiros, mineradoras, garimpeiros, fazendeiros acreditam que a pressão política para que se evitem os danos ambientais nas bacias hidrográficas e nas florestas prístinas da Amazônia é uma questão de modismo ou de pressão política internacional,estão equivocados. Basta destacar o avanço da consciência ecológica e a crescente demanda dos serviços ambientais por parte dos formadores de opinião da sociedade brasileira. Evento previsível segundo a Curva Ambiental de Simon/Kuznets,a qual afirma que “quando o crescimento econômico evoluiu além de certo ponto, os indivíduos têm o desejo e os meios para reduzir os impactos do crescimento sobre a qualidade de seu meio ambiente”, Será que poderemos acreditar que “Brumadinho nunca mais?”
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