“Relembrando nossa história, com o passado escravocrata como um pano de fundo sombrio, é imperativo considerar a atualização dos direitos trabalhistas como um fator não apenas econômico, mas moral. Que a discussão continue, sob o olhar atento da sociedade, até que as leis reflitam os avanços que a nossa realidade exige.”
Por Régia Moreira Leite
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Coluna Follow-Up
O debate em torno da jornada de trabalho 6×1 — seis dias de trabalho seguidos de um dia de descanso — vem ganhando fôlego na sociedade brasileira. Com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que propõe reduzir a jornada para quatro dias e 36 horas semanais, assinada por mais de 2,2 milhões de cidadãos, é clara a crescente demanda popular por uma revisão das práticas laborais tradicionais no país. Enquanto o vice-presidente Geraldo Alckmin afirma que a redução da escala 6×1 é uma “tendência no mundo inteiro”, muitos questionam se estamos prontos para abrir mão de um modelo que, em essência, pode ser entendido como uma herança da cultura escravocrata.
Sistema marcado pelo passado
A jornada semanal de 44 horas, aplicada em muitas empresas brasileiras, é fruto de um contexto histórico que se transformou, mas cujas raízes permanecem profundamente ligadas à exploração. Há pouco mais de um século, a escravidão era uma prática institucionalizada e, desde então, as mudanças legislativas têm ocorrido de maneira lenta e fragmentada. As reformas trabalhistas, embora necessárias, muitas vezes focaram-se mais na competitividade das empresas e menos na qualidade de vida dos trabalhadores. Esse modelo, que pressupõe a dedicação total do trabalhador ao seu emprego, está cada vez mais desalinhado com o que a tecnologia e os estudos sobre produtividade e bem-estar sugerem ser o ideal.
Tendência global e a nova realidade brasileira
Em muitos países, já se observa um movimento de redução das horas de trabalho, alinhado aos avanços tecnológicos e à preocupação com a saúde mental e física dos empregados. Com a tecnologia, o que antes exigia a força de muitos agora pode ser feito com menos pessoas, em menos tempo. Para Alckmin, este é um caminho inevitável, mas ele ressalta que o governo ainda não tomou uma posição oficial sobre a PEC.
Enquanto isso, movimentos como o VAT (Vida Além do Trabalho), liderado por figuras como o vereador Rick Azevedo, propõem que o foco se desloque para uma distribuição mais justa do tempo. Esse movimento visa garantir que os trabalhadores tenham uma vida digna e equilibrada, onde o trabalho seja uma parte da vida, mas não a essência dela.
Implicações legislativas e desafios políticos
Caso a proposta seja aprovada, a mudança exigirá uma revisão profunda nos artigos 58 e seguintes da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), conforme aponta o advogado constitucionalista Godofredo de Souza Dantas Neto. Para ele, a reforma na CLT é essencial para que a nova jornada possa ser implementada e regulamentada de forma eficaz. “Sob uma análise jurídica, a proposta é compatível com a Constituição, já que não se trata de uma cláusula pétrea” explica Dantas Neto, especialista em direitos do trabalho.
No entanto, a aprovação da PEC depende de uma maioria qualificada no Congresso, o que representa um desafio significativo para a articulação política. Como destaca o jurista José Mendonça, reunir apoio nas duas casas legislativas é uma tarefa complexa, especialmente considerando o impacto dessa mudança sobre o mercado de trabalho. Mendonça aponta que, apesar dos possíveis benefícios para o bem-estar dos trabalhadores, há uma resistência natural de setores que veem na redução de jornada um risco econômico.
Benefícios e desafios da redução da jornada
A implementação de uma jornada de quatro dias, com oito horas diárias, poderia reduzir o cansaço acumulado e aumentar a produtividade. Pesquisas internacionais têm demonstrado que menos horas de trabalho podem significar um aumento na eficiência e na satisfação dos empregados. No entanto, é inegável que as empresas enfrentarão ajustes para acomodar essa mudança. Custos de transição, readequação de processos e até a necessidade de contratação de pessoal extra para manter o mesmo nível de operação são desafios a serem considerados. A CNI defende que trabalhadores e investidores discutam caso a caso e o que pensa a sociedade?
Para setores de intensa carga horária e baixo nível de automação, como a indústria e o comércio, a adaptação pode ser ainda mais complexa. Mas, apesar dos custos, os ganhos sociais poderiam ser expressivos: aumento no bem-estar dos trabalhadores, redução no absenteísmo e maior dedicação à vida pessoal e familiar.
Debate para toda a sociedade
Reduzir a jornada de trabalho, abolindo o regime 6×1, é uma decisão que extrapola o campo legislativo, exigindo o envolvimento direto da sociedade. Trata-se de avaliar se estamos dispostos a priorizar o bem-estar humano e a qualidade de vida como elementos centrais de nossa economia. A resistência, como em qualquer transformação profunda, virá de setores que argumentam que a economia brasileira pode sofrer com um impacto negativo sobre a produtividade. No entanto, essa visão ignora a capacidade do país de inovar e adaptar-se a novos paradigmas de trabalho que respeitam os direitos humanos.
O passo seguinte
A possível abolição do 6×1 levanta a questão sobre até que ponto nossa estrutura econômica deve ser mantida à custa do desgaste humano e do bem-estar social. O tema, embora complexo, representa um avanço fundamental para uma sociedade mais equitativa e justa. Relembrando nossa história, com o passado escravocrata como um pano de fundo sombrio, é imperativo considerar a atualização dos direitos trabalhistas como um fator não apenas econômico, mas moral. Que a discussão continue, sob o olhar atento da sociedade, até que as leis reflitam os avanços que a nossa realidade exige.
Régia é economista, administradora, empresária, coordenadora da Comissão ESG e conselheira do CIEAM, Centro da Indústria do Estado do Amazonas
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