A crise climática vai atingir a todos, mas de forma diferente. E, em um país como o Brasil, ela só aumenta as desigualdades e a pobreza
Por Leila Salim
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Na semana passada, fortes chuvas voltaram a atingir o litoral norte de São Paulo, deixando moradores em desespero. Isso menos de mês depois que a maior chuva já registrada no Brasil matou 65 pessoas na região, em 18 de fevereiro, castigando especialmente a cidade de São Sebastião, com 64 mortes (a última das 65 mortes foi em Ubatuba).
A tragédia, ocorrida em um destino de veraneio da elite paulista, expôs cruamente a desigualdade característica da crise climática: enquanto ricospagavam até R$ 95 mil para fugir de helicóptero, nas áreas vulneráveis os deslizamentos de morros e alagamentos seguiam matando pobres.
O que se viu em São Sebastião está longe de ser exceção. Apenas do verão passado até agora, desastres mataram pelo menos 498 pessoas no Brasil: além das 65 mortes no litoral paulista no mês passado,foram 26 vidas perdidas no Norte de Minas Gerais e Sul da Bahia durante as fortes chuvas de dezembro de 2021 e janeiro de 2022; 255 na tragédia em Petrópolis, em janeiro do ano passado; outras 130 em Recife, em maio; e 22 nas chuvas que atingiram oito estados em dezembro de 2022.
Quase 500 mortes que têm classe, raça, gênero e CEP. “Neste Dia Nacional da Conscientização sobre as Mudanças Climáticas, a mensagem mais importante é a de que essa não é uma discussão apenas científica, técnica e diplomática: é social. A crise do clima vai atingir a todos, mas de forma diferente. E, em um país como o Brasil, ela só aumenta as desigualdades e a pobreza”, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.
A data celebrada hoje, 16 de março, foi instituída em 2011 com o objetivo de ampliar debates e mobilizações na sociedade brasileira sobre o tema. Segundo Astrini, o recado fundamental para este 16 de março é o de que as mudanças climáticas já estão acontecendo, afetando de maneira concreta aqueles que são menos responsáveis pelas causas do aquecimento do planeta: “As mudanças climáticas impactam o seu salário, o seu emprego, o seu prato de comida, a sua conta de luz, piorando a qualidade de vida das populações mais desassistidas”, afirma.
Para que uma chuva extrema, como a ocorrida em São Sebastião, se torne um desastre humano, é preciso que as condições meteorológicas acentuadas impactem áreas vulneráveis, as conhecidas “zonas de risco”.
Moradias precárias construídas em encostas e margens de rios, por exemplo, são a única alternativa habitacional para milhões de brasileiros que, já privados de garantias sociais básicas, viram estatística todos os anos em tragédias dramaticamente previsíveis.
Agricultura e alimentação em risco
Além das chuvas, eventos extremos como as secas e ondas de calor tendem a se intensificar no cenário das mudanças climáticas. No início do ano passado, uma estiagem recorde atingiu a região centro-sul do Brasil, afetando principalmente os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul.
Segundo dados levantados por pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), somente para a safra de soja de 2021/2022, a estiagem causou prejuízo de mais de R$ 70 bilhões.
Isso sem falar nos impactos na agricultura familiar, que, segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, de 2017, corresponde a 77% dos estabelecimentos agrícolas do país e é responsável pelo valor de produção de grande parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, como 80% da mandioca, 69% do abacaxi e 42% do feijão.
Existem estudos relacionando um evento extremo específico — como a chuva em São Sebastião e Recife ou a seca no centro-sul — às mudanças climáticas. No caso da tragédia de maio de 2022 em Recife, por exemplo, uma análise de atribuição mostrou que o aquecimento pode ter aumentado em20% a intensidade das chuvas (o cálculo aponta se, e em que grau, um evento extremo específico foi tornado mais ou menos provável devido à mudança climática).
De todo modo, os cientistas concordam que é impossível ignorar que todos esses eventos ocorrem em um planeta que já está 1,1ºC mais quente do que antes da Revolução Industrial.
A segunda parte do Sexto Relatório de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU), lançada em fevereiro de 2022, enfatizou que, de 2010 a 2020, a mortalidade causada por enchentes, secas e tempestades foi 15 vezes maior nas regiões mais vulneráveis do mundo.
A primeira parte do relatório do IPCC, de agosto de 2021, estimou o quanto os eventos extremos já estão mais intensos e frequentes. O relatório mostrou que cada meio grau a mais de aquecimento aumenta a frequência de ondas de calor, tempestades e secas que afetam a agricultura.
O texto do IPCC cita a chamada Região da Monção da América do Sul, que compreende parte do Centro-Oeste brasileiro, da Amazônia, da Bolívia e do Peru, apontando que deverão ter os maiores aumentos de temperatura nos dias mais quentes do ano – até duas vezes mais que a taxa de aquecimento global.
Segundo o relatório, há um aumento da seca agrícola e ecológica causada por ação humana na região Nordeste da América do Sul, que abrange regiões produtoras agrícolas brasileiras como o chamado Matopiba (formado pelo Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
O relatório também mostrou que os eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes expuseram milhões de pessoas à insegurança alimentar e hídrica, sobretudo na África, na América Latina, na Ásia, nos pequenos países insulares e no Ártico. Ou seja: os maiores culpados são os países ricos, industrializados, enquanto os países em desenvolvimento são os mais prejudicados. Não é possível debater soluções para a mudança climática sem que isso passe por soluções para a desigualdade social.
Ação climática
“Há dois caminhos para enfrentar a crise climática: o primeiro é parar de alimentar o problema, diminuindo as emissões de gases de efeito estufa. No mundo, isso passa pelo fim do uso de combustíveis fósseis. Já no Brasil, o principal problema é o desmatamento, que precisa ser eliminado ”, defende Márcio Astrini.
“O segundo caminho é adaptar. Mesmo que paremos de gerar aquecimento no planeta a partir de agora, já existe um aquecimento ‘contratado’, resultado do que foi feito até hoje. E esse aquecimento traz problemas à biodiversidade, aos ecossistemas em geral e às populações mais vulneráveis”, completa o secretário-executivo do OC.
Obras de infraestrutura, como contenção de encostas, criação de planos de defesa civil e reassentamento de moradores de áreas de risco são exemplos de ações de adaptação.
Também quanto a esse segundo aspecto, há muito o que se avançar. O IPCC estima que de 3,3 bilhões a 3,6 bilhões de pessoas vivam hoje em locais ou contextos altamente vulneráveis à mudança do clima no mundo, sendo gênero, etnia e renda fatores de aumento de vulnerabilidade.
No Brasil, segundo levantamento do Cemaden (Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), são 10 milhões de pessoas vivendo em 40 mil locais de risco — compreendendo municípios, conjuntos de municípios ou até distritos específicos.
No fim de fevereiro, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, propôs que a base de dados do Cemaden seja utilizada para decretar emergência climática e, a partir daí, desenhar ações de adaptação a eventos extremos em 1.038 municípios prioritários. (LEILA SALIM)
Texto publicado originalmente em Observatório do Clima
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