Curiosamente, o Brasil não tem, neste momento, um arcabouço fiscal, mesmo com dezenas de regras fiscais em vigor. Isso gera incerteza que acaba rebatendo no prêmio de risco-País, na volatilidade cambial e, com isso, nos aportes de investimentos direto estrangeiros para importantes setores da economia, como na infraestrutura.
Por Márcio Holland
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O próximo presidente da República tem um encontro marcado com a agenda fiscal. O Brasil ainda trata esse tema como um fardo, em especial, durante campanha eleitoral. Neste caso, assim que as apurações das urnas se encerrarem o assunto precisará ser enfrentado, gostando ou não dele. Até aqui, tanto do lado da equipe econômica atual quanto de representantes da candidatura de oposição, fala-se em novas regras fiscais ou em revogar a regra do teto de gastos. Ninguém está satisfeito com o que tem, mas não sabe o que quer. A solução de nosso problema fiscal atual não parece estar na criação de novas regras, mas de desenvolvermos a cultura da responsabilidade fiscal como importante bem público.
Tem se repercutido muito uma vaga ideia de se criar um novo arcabouço fiscal, negociado com o Congresso Nacional e amigável ao investimento e ao emprego. Fala-se também em substituir a regra de teto de gastos por outra regra fiscal associada com limites para a dívida pública. Regras o Brasil tem de sobra. A Instituição Fiscal Independente (IFI/Senado Federal) mapeou um manancial de regras fiscais que simplesmente não têm funcionado a contento, ou nem mesmo foram regulamentadas, desde a Constituição Federal de 1988. Há boas regras, como a do limite para gastos com pessoal, que têm sido abertamente sonegadas com truques contábeis.
Curiosamente, o Brasil não tem, neste momento, um arcabouço fiscal, mesmo com dezenas de regras fiscais em vigor. Isso gera incerteza que acaba rebatendo no prêmio de risco-País, na volatilidade cambial e, com isso, nos aportes de investimentos direto estrangeiros para importantes setores da economia, como na infraestrutura. E, de sobra, joga um grande peso sobre as costas da política monetária, que não resta outra alternativa senão manter a taxa básica de juros em patamares elevados. Não é à toa que o Brasil tem uma das maiores taxas reais de juros de curto prazo do mundo.
Regras fiscais simples e transparentes reduzem excesso de discricionariedade dos governantes do momento. A política fiscal é peça chave para o controle da inflação e para a estabilidade da dívida pública. Independentemente de orientações ideológicas, a responsabilidade fiscal deve ser o pilar da política macroeconômica. O Brasil tem de jure duas importantes regras fiscais, a do teto de gastos e a de superávits primários. E elas se complementam. A primeira evita a explosão dos gastos financiados por mais dívida ou por aumento da carga tributária, ambos ruins. A segunda ajuda na estabilização da dívida pública impactando de modo positivo o risco soberano e os custos de captação internacionais. Mas, elas de facto estão sendo desrespeitadas à luz do dia.
Em um breve balanço, entre mortos e feridos, a regra de teto de gastos, instituída com a Emenda Constitucional 95/2016, cumpriu importante função ao estabelecer uma “restrição orçamentária” aos gastos públicos. Vale lembrar que as despesas totais da União saltaram de 14% do PIB, em 1997, para 19,9% do PIB, em 2016. Foram quase 6% do PIB em aumento de despesas que precisaram ser financiadas com aumento de dívida pública, em contexto de altas taxas de juros e, em especial, com aumento da carga tributária.
Neste mesmo período, a carga tributária saiu de 29% do PIB para 32,6% do PIB. Era preciso frear o aumento das despesas e a regra do teto cumpriu essa importante função. Contudo, com as despesas obrigatórias sempre em expansão, a forma mais eficaz encontrada para cumprir a regra do teto de gastos foi cortar os investimentos públicos. Desde então, os investimentos da União se reduziram à metade.
Da mesma forma, as metas de resultado (superávits) primários, colocadas a cabo desde 1999, foram essenciais para derrubar a relação da dívida pública pelo PIB. Com o tempo, os superávits primários vieram carregados de receitas não recorrentes (principalmente com dividendos de estatais e concessões) e, mais tarde, com antecipações de dividendos e pedaladas fiscais. A regra é boa, simples e eficaz, mas a má gestão fiscal destruiu sua credibilidade. De novo, tão importante quanto boas regras, o Brasil precisa de cultura de responsabilidade fiscal.
Regras fiscais precisam se acomodar a situações extremas, como guerra, calamidade pública e pandemias. Essa flexibilidade está prevista nas legislações em vigor. Na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o artigo 65 prevê a dispensa do atingimento dos resultados fiscais, entre outros, e na EC 95/2016 seu artigo 107 § 6º se acomoda ao artigo 167 da Constituição Federal, onde se lê, em seu artigo 3º o seguinte: “A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62”.
Nosso exemplo mais recente foi o reconhecimento do estado de calamidade pública devido à pandemia da covid-19 e a instituição de um “orçamento de guerra” pelo Congresso Nacional conforme a EC 106/2020. Um extrateto foi criado e assim pode-se expandir os gastos públicos para 26,1% do PIB, em 2020, de 19,5% do PIB, em 2019. Graças à regra do teto de gastos, já em 2021, as despesas voltaram a cair para 18,5% do PIB. Lamentavelmente, esse arcabouço fiscal foi ferido de morte com a instituição do orçamento secreto e com o calote dos precatórios (a reestruturação do saldo de dívidas judiciais da União).
Os impactos negativos da pandemia sobre a atividade econômica vêm requerendo medidas fiscais para sustentação da demanda agregada, para combater a insegurança alimentar e o crescimento da pobreza, com medidas legítimas como a expansão do Bolsa Família, agora chamado de Auxílio Brasil. Contudo, parece que a demanda da sociedade é por mais medidas governamentais para sustentar a recuperação da economia, em contexto de grandes desafios internacionais. O ritmo de crescimento brasileiro tem sido frágil. De 2019 a 2021, o Brasil foi uma das economias que menos cresceu no mundo. As expectativas são de crescimento abaixo de 1% para 2023.
Contudo, seria preciso revogar a regra de teto de gastos e dispensar as metas de superávits primários para isso? Não seria o caso de promover ajustes na regra para acomodar as circunstâncias atuais? Por exemplo, não bastaria retirar do teto os gastos com investimentos públicos, dadas as circunstâncias pós-pandemia? E, por que não retomar os anúncios de metas de resultados primários, mesmo que inicialmente mais tímidas, mas suficientes para ancorar expectativas e promover a estabilidade da dívida pública? Tudo indica que não precisamos de mais regras, especialmente aquelas fincadas na já remendada Constituição Federal, mas de mais compromissos com o equilíbrio intertemporal das contas públicas.
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