“Na Amazônia, a questão da criminalidade, ocorre especialmente no formato de desmatamento ilegal e também numa criminalidade que persegue defensores da floresta”
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Véspera das eleições presidenciais de 2022. O atual momento histórico nos fez discutir enquanto país questões mais imediatas, preocupadas, questões famintas e democráticas – e não menos necessárias – mas com isso, em certa medida, deixou-se de debater projeto de país. A questão do desmatamento na Amazônia e a destruição dos outros biomas está nas manchetes todos os dias – sabemos o que não fazer. Mas…então o que devemos de fato fazer?
Convocando uma série de pensadores e personalidades relevantes para os mais variados campos do saber que tangenciam o debate acerca do futuro da Amazônia, criamos aqui uma nova iniciativa para dar enfim mais substância e forma para esse assunto tão oportuno e urgente. Com a pretensão de contar com visões distintas, e até contraditórias, críticas e propositivas, para popularizar e ajudar a trazer ao plano da materialidade esse colossal potencial que o Brasil possui a maior parte.
Que modelo faz mais sentido para tirarmos ao máximo os benefícios econômicos e climáticos do bioma? E quais não fazem mais sentido?
Eis aqui um espaço para o debate. Sinta-se convidado e ajude-nos a responder:
O que a ex-Ministra e presidente do STF, Ellen Gracie, pensa sobre a Zona Franca de Manaus, e a economia legal da Amazônia?
Depoimento:
A Constituição Federal diz praticamente nada sobre a Amazônia. Assim como ela também não diz sobre o Sul, o Sudeste, também não diz sobre o Centro-Oeste. A Constituição traça normas gerais, cuida da administração do país inteiro, da divisão de competências entre os poderes. Mas não entra nessa especificidade. A Amazônia Legal vem em outros documentos posteriores.
Entretanto, há um aspecto interessante: a única coisa que na nossa Constituição é referida é a Zona Franca de Manaus. Isso não está exatamente na própria Constituição, mas no ato das disposições constitucionais transitórias. No entanto se nós lermos adequadamente a Constituição, como ela deve ser lida na sua integridade, nós vamos encontrar a problemática da Amazônia já nos princípios fundamentais, que é o título primeiro.
Diz o título primeiro, no seu artigo terceiro: ”[1] Constituem objetivos fundamentais da República federativa do Brasil; [2] Garantir o desenvolvimento nacional (por desenvolvimento nacional nós temos que entender que é de todos os estados da federação);[3] Erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Portanto aqui já está o propósito de atuação da nação Brasileira sobre todo o seu território – incluída a Amazônia.
Existe uma certa tensão entre o restante do Brasil e a Amazônia. Não é uma nem duas vezes que nós verificamos tentativas de reduzir e de até eliminar a Zona Franca de Manaus. E essas iniciativas em geral partem de parlamentares do sul-sudeste – essa região mais “avançada” do país.
É preciso que a gente tenha uma visão histórica um pouco mais ampla e constate que a nossa colonização e todo o nosso desenvolvimento se deram a partir do litoral. Nós ficamos incrustados no litoral. A população ficou toda concentrada no litoral durante muitos anos. Foi só com a construção de Brasília que realmente a tomada, a efetiva povoação do Centro-Oeste passou a acontecer.
E com relação ao bioma amazônico, até pelas dificuldades naturais de vencer aqueles obstáculos que a selva coloca, se tornou bem mais tardio. Foi próprio Juscelino Kubistchek que, com a inauguração da estrada Belém-Brasília, deu oportunidade de que alguma coisa partisse do Sul para o Norte e viesse também do Norte para o Sul.
De lá pra cá, muito pouca coisa se fez em relação ao desenvolvimento social do bioma amazônico. Mas na Constituição, o título sétimo – que cuida da ordem econômica e social – dá algumas diretrizes que podem nos servir para amparar uma atuação na Amazônia, diz artigo 70: “a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa tem por fim assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [inciso terceiro] a função social da propriedade (ou seja, não se admite grandes propriedades improdutivas, lá deixadas apenas como reserva de valor); [no inciso sexto] a defesa do meio ambiente inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; e o [inciso sétimo] nos impõem a redução das desigualdades regionais e sociais.
Portanto aqui nestes incisos está a necessidade que nós temos desta integração do Brasil, desta integração entre regiões que não é só uma obrigação dos governos, ela é uma obrigação da nação! A carta constitucional é um pacto nacional, portanto todos nós indivíduos, sociedade, empresas, temos estes compromissos que eu acabei de citar. Nós todos precisamos colaborar nesse sentido.
A responsabilidade pela Amazônia é necessariamente uma responsabilidade brasileira. Nós temos recebido críticas internacionais muito pesadas, com repercussão inclusive no nosso comércio exterior por que não cuidamos da Amazônia, e não cuidamos de fato da Amazônia!
Eu lembro que há algum tempo atrás o ministro Raul Jungmann deu uma entrevista na qual afirmou que o Brasil não tinha um projeto para a Amazônia. Apesar de nós termos essas diretrizes o projeto geral e global para a Amazônia nós ainda não temos. Alargando um pouco mais, o Brasil recebe todas as críticas, mas a Amazônia lato sensu não é só a Amazônia Brasileira. Ela se estende por inúmeros outros países, Peru, Bolívia, Equador… de onde vêm as primeiras nascentes – então toda esta rede de países precisa se concertar para proteger o bioma amazônico
Eu tive notícia de que recentemente muitos grupos menonitas originários dos Estados Unidos da América onde – não há mais florestas para devastar – vieram a localizar-se no Peru onde eles fazem exatamente isso, derrubam mata para fazer cultivos. São agricultores vocacionados, trazem tratores grandes e pesados produzem onde antes era floresta. Ali estão as nascentes, é preciso cuidar das nascentes!
Eu acho que o Brasil perde um tempo precioso na diplomacia ao não tomar a iniciativa de não formar um grupo amazônida com todos os países envolvidos na grande bacia e adotar medidas que possam proteger esse fluxo da água – o mais extraordinário que há no mundo, a reserva de Água Doce do mundo; tão forte que até empurra o oceano quando entra no mar – essa fonte de riqueza não é um problema para o Brasil, ela é solução e deve ser utilizada como uma solução!
Mas é preciso que haja projeto para que isso aconteça. Por exemplo, o Pará é completamente diferente do Amazonas. O Amazonas tem 95% da floresta preservada, isso não acontece com o Pará porque se permitiu que houvesse uma abertura para a agricultura. Já existe uma área muito grande devastada. É preciso parar de devastar, é preciso reflorestar, porque vários estudos indicam que é perfeitamente possível ter um bom desempenho no agronegócio sem aumento de território. Apenas com a utilização de tecnologia mais moderna.
Voltando a questão da criminalidade: a maior parte do desmatamento é feita por grileiros, ou seja gente fora-da-lei. Cada vez menos é da agricultura bem situada, agricultura que trabalha para exportação, que tem capital para investir em maquinário pesado, em grandes tratores e colheitadeiras. Não são esses bons agricultores que fazem o desmatamento. A esta agricultura não interessa o desmatamento. Porque eles estão sendo prejudicados no mercado Internacional dada a fama do desmatamento.
O Brasil teve uma grande oportunidade entre 2002, eu creio, e 2013, em que realmente o desmatamento caiu muito no país, foi linha descendente. Os últimos anos não têm sido tão alvissareiros, nós temos visto as notícias, o próprio INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) revela que o desmatamento e a degradação da floresta têm aumentado.
Mas existe a possibilidade de nós retomarmos esse caminho, que não é um caminho sem volta. Eu me lembro de ter lido algum tempo atrás que o Japão, por exemplo, no século XVIII ele estava completamente desmatado, havia-se utilizado toda a madeira existente no Japão, e isso estava causando problemas muito sérios. A época o Japão estava fechado para o Ocidente, era uma nação muito isolada, e por força de normativas do Xogunato Tokugawa se criou uma regulamentação muito rigorosa sobre o aproveitamento de madeira – vocês se lembram bem que as casas japonesas geralmente têm paredes de papel, isso é força daquela regulamentação da época que proibia a utilização de madeira. Em pari passu com isso, ordenou-se até que se parasse de plantar arroz em determinadas localidades para providenciar no reflorestamento do país. Hoje o Japão é um dos países mais florestados do mundo.
Veja que é não é tão grande a distância. É claro que para um ser humano é, mas em termos históricos, de uma situação quase desértica no século XVIII o Japão conseguiu reverter e obter resultados muito satisfatórios.
O mesmo nós devemos fazer com a Amazônia. E para isso é preciso que a gente pense que todos nós temos responsabilidade. É preciso que a Faria Lima se lembre que existe Amazônia! E é preciso tomar providências e fazer investimentos lá. Que investimentos serão esses? Investimentos limpos, em indústria limpa, indústria 4.0…é possível fazer.
A Zona Franca de Manaus significa o único projeto mais organizado que se fez para a Amazônia. E deu bons resultados. Verifica-se que hoje ela é o segundo polo industrial do país. São Paulo e Manaus. Rio de Janeiro vem em terceiro.
Por outro lado também uma das acusações que frequentemente é feita para aquela região é de que as isenções tributárias são muito elevadas. Elas não são. A arrecadação de tributos supera todas as isenções que lá são dadas.
Então criou-se esse modelo. Que certamente não está perfeito. Ele certamente precisa se atualizar. Deve entrar nessa economia 4.0. E por que não replicar esse experimento, ou fazer algum outro de tipo semelhante, em outras cidades da região? É preciso que haja investimento forte em educação, é preciso que haja qualificação da população para poder atender às necessidades dessas indústrias todas.
Mas o Brasil e os brasileiros também precisam acordar e cobrar dos governos os investimentos na Amazônia. O conhecimento da Amazônia antes de mais nada. É preciso conhecer a Amazônia!
Quem vai a Amazônia nunca mais se esquece, nunca mais será a mesma pessoa. Quem vai até, quem navega nos rios, quem sobrevoa, quem vê aquela Floresta imensa, quem ouve os sons da floresta.
E sobre isso tem um depoimento muito bonito do professor Thomas Lovejoy, recentemente falecido – que durante muitos anos trabalhou na Amazônia. Segundo ele, chegava em cada uma das suas expedições e depois de 72 horas ele era uma outra pessoa. Ele compreendia que ele fazia parte de um universo muito complexo, e que não estava mais limitado aquela aridez das cidades grandes, mas via que a vida pulsava ao redor dele nas mais variadas formas. Tudo isso é muito bonito!
As pessoas mandam os seus filhos fazerem intercâmbios em outro país, quando ninguém manda seus filhos a conhecer a Amazônia. Por que não mandar conhecer o interior do Amazonas? Assim nós deveríamos fazer: educar as próximas gerações para conhecer a realidade da nossa Amazônia.
Se não nós vamos continuar o resto da vida ouvindo críticas de estrangeiros – críticas justificadas – porque nós que somos um proprietário desse grande asset que é a Amazônia, nos viramos de costas para ele, não tomamos as iniciativas adequadas.
A Constituição Brasileira nos dá remédios e nos dá orientação neste sentido. Ela nos dá direitos, ela nos dá obrigações em relação ao bioma Amazônia. É obrigação nossa como nação de fazermos cumprir a nossa Constituição.
Fonte: Diálogos da Amazônia Fundação Getúlio Vargas https://youtu.be/r3bkHmCqz_k
Iniciativa: Portal Brasil Amazônia Agora, colaboração de conteúdo: Fundação Getúlio Vargas – Diálogos da Amazônia: Márcio Holland e Daniel Vargas Apoio: FIEAM, CIEAM, ABRACICLO, ELETROS
Edição: Igor Lopes e Cristy Lopes
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