A agropecuária é um dos setores da economia mais suscetíveis às variações do clima, podendo sofrer fortes oscilações no volume das colheitas e na qualidade dos diferentes cultivares. Quase 90% da agricultura no Brasil depende da chuva, o que torna a instabilidade climática um risco econômico e social para a cadeia de produção agrícola, tanto para exportação, quanto para consumo interno. O tema do aquecimento global e das mudanças climáticas ganhou destaque na mídia, principalmente na discussão sobre os efeitos negativos do desmatamento na Amazônia. Porém, a relação entre as mudanças do clima em diferentes escalas geográficas e a produção agropecuária ainda é pouco compreendida por muitos produtores e profissionais do agro. Esse texto tem como objetivo introduzir para um público amplo o tema das mudanças climáticas na agropecuária, partindo da explicação dos conceitos de tempo e clima, trazendo a distinção entre mudanças climáticas globais e regionais, e apontando soluções. Apesar do tema das mudanças climáticas e desmatamento serem tratados por alguns como uma demanda ambiental que beneficia outros países, a conservação da vegetação nativa com a implementação do Código Florestal é antes de tudo uma medida para garantir condições climáticas favoráveis à produção agropecuária no Brasil.
Por Raoni Rajão, Argemiro Leite-Filho e Britaldo Soares-Filho
Tempo e Clima
Inicialmente, para entender o problema é necessário compreender que tempo e clima possuem significados diferentes na meteorologia. O tempo se refere às condições atmosféricas registradas em um momento específico (ex. dia chuvoso). Já o clima representa as condições atmosféricas que podemos esperar em dada região geográfica durante um período específico (ex. clima seco durante o inverno). Sendo assim, enquanto é possível perceber o tempo através de uma observação direta, o clima é necessariamente um agregado temporal (ex. milímetros de chuva esperados para o mês) e espacial (ex. clima do cerrado). Daí que o clima muitas vezes é descrito utilizando conceitos estatísticos, como média, máxima, mínima e variabilidade, o que dificulta o seu entendimento para o público de não especialistas. Por exemplo, podemos afirmar que o clima da Caatinga é semiárido, mas isso não significa que se ocorrer um tempo chuvoso nessa região por alguns dias o seu clima tenha mudado. É somente a partir da observação sistemática das condições meteorológicas por um grande intervalo de tempo que é possível caracterizar o clima, e consequentemente, medir eventuais mudanças climáticas ocorridas em uma dada região.
Mudanças climáticas globais
As mudanças climáticas sempre existiram devido a diversos fatores naturais, tais como erupções vulcânicas, oscilações na atividade solar ou mesmo devido à variabilidade interna do clima. Dois eventos são ilustrativos dessas variações naturais. A Pequena idade do Gelo, entre os anos 1300 e a década de 1850, na qual a Europa e América do Norte sofreram com um período marcado por frio intenso e consequente uma expansão das geleiras. Em outro momento (950-1250 d.C.), 40% da superfície da Terra registrou aumentos significativos de temperatura, principalmente na Europa, o Período Quente Medieval.
Nas últimas décadas tem se observado mudanças climáticas globais com caraterísticas bem distintas das vistas nos períodos anteriores. Em primeiro lugar, enquanto as mudanças climáticas naturais são relativamente lentas, as mudanças climáticas observadas desde 1880 têm ocorrido de forma abrupta, com a elevação da temperatura média em 1,1º, sendo que aproximadamente metade desse aumento ocorreu nos últimos 20 anos. A velocidade das mudanças é preocupante pois ela reduz a possibilidade de adaptação dos seres vivos e tecnologias às novas condições. Em segundo lugar, existe um claro consenso na ciência que essas mudanças ocorreram em consequência do aumento dos gases de efeito estufa. Esses gases são elementos químicos como o dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) entre outros que estão presentes naturalmente na atmosfera, representando menos de 0.1% da sua composição.
Porém, ao contrário do nitrogênio e oxigênio, que representam respectivamente 78% e 21% da composição do ar que respiramos, os gases de efeito estufa retêm o calor gerando um efeito similar ao das estufas usadas na agricultura. Desde o final do século 19 diferentes estudos apontam que uma pequena variação na composição da atmosfera com o aumento da presença de gases de efeito estufa pode gerar um aumento significativo na temperatura média do planeta. As evidências de uma alteração antrópica do clima se acumulam provenientes de diversas fontes: os anéis dos troncos de árvores, amostras de gelo, sedimentos em lagos e corais, por exemplo, trazem consigo um registro histórico do clima no passado que não nos deixam dúvidas de que as mudanças atuais não possuem precedentes e não são naturais.
Portanto, é extremamente provável que mais da metade do aumento observado da temperatura média da superfície global entre 1951 e 2010 tenha sido causado pela influência humana sobre o clima através das emissões de Gases Efeito Estufa- GEE (IPCC, 2021).
Até certos limites de concentração, o aumento do CO2 faz as plantas serem mais eficientes na produção de matéria orgânica, o chamado efeito de “fertilização de CO2”. Assim, as plantas precisam de menos água para produzir a mesma quantidade de matéria orgânica por meio da fotossíntese. Entretanto, há muitos outros fatores controlando a eficiência fotossintética e, no conjunto de todos os fatores ambientais, a fertilização de CO2 em induzir aumento da produtividade não é capaz de compensar o severo impacto negativo na produtividade causado pela sinergia entre as mudanças climáticas locais, regionais e globais na maior parte do país.
Sendo assim, o aumento da temperatura média do planeta em 1,1º pode parecer pouco, mas essa mudança já trouxe impactos significativos. Nos últimos 125 mil anos a Terra nunca foi tão quente como é hoje, e há muita confiança de que o aumento da frequência dos extremos climáticos, como secas e inundações ocorridas na segunda metade do século 20, está diretamente ligado ao aquecimento global causado pelo homem. Existem evidências que as mudanças climáticas já ocorridas entre 1961-2020 reduziram a produtividade da agricultura globalmente, cancelando parcialmente os ganhos de produtividade obtidos com a introdução de novas tecnologias. Essas perdas foram sentidas principalmente no Brasil, que apesar de ter aumentado a produtividade média em 190% nesse período, teria tido um aumento adicional entre 20-25% na ausência das mudanças climáticas. Esse resultado corrobora as previsões feitas nos anos 2000 que apontam para o aumento das perdas agrícolas, principalmente no sul do Brasil e na segunda safra do centro-oeste.
A queima de combustíveis fósseis é o principal causador das mudanças climáticas. Desde a Era Industrial, houve um aumento de 50% da quantidade de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera, o mais abundante entre os GEE. Porém, o desmatamento, uso de fertilizantes e emissões entéricas da criação de animais também são causadores significativos das mudanças climáticas, gerando 24% das emissões totais. O Brasil se diferencia dos outros países do mundo pois possui uma matriz energética relativamente limpa e com baixas emissões per capita ligadas à queima de combustíveis fósseis. O Brasil é o país com os maiores índices de desmatamento e o segundo maior rebanho bovino do mundo, fazendo com que a agropecuária e o desmatamento representem 70% das emissões do país em 2020. E apesar do Brasil estar entre os 4 maiores países geradores de GEE, ele representa somente 5% do total emitido no planeta. Os Estados Unidos são responsáveis por 20% do total de emissões. A China aparece em segundo lugar, como responsável por 11% do CO2 global e a Rússia vem em terceiro com 7% das emissões. Além de emissor, o Brasil é também vítima das mudanças climáticas globais, já que mesmo com a neutralização das emissões nacionais, sem a cooperação dos maiores emissores, a agropecuária brasileira ainda sofrerá consequências negativas.
Mudanças climáticas locais e regionais
Aparte das mudanças observadas a nível global, os climas local e regional também estão se alterando em muitas partes do mundo. Essas alterações ocorrem principalmente em resposta a distúrbios na interação entre a atmosfera local/regional e a cobertura da terra. A conversão de ecossistemas naturais (florestas, savanas e etc) em usos antrópicos para expansão urbana e agrícola causa uma série de alterações físicas e químicas que desestabilizam a atmosfera, através de modificações nos fluxos de energia e umidade, o que chamamos de mudanças climáticas regionais e locais. Ao contrário das mudanças climáticas globais, nas quais a agropecuária é coadjuvante, nas mudanças regionais e locais o desmatamento causado pela expansão da fronteira agrícola é o fator predominante.
A maior parte da umidade que gera as chuvas em todo território nacional vêm dos oceanos. Porém, para que a chuva chegue às principais áreas agrícolas do país que se localizam longe da costa, essa umidade precisa ser transportada por um complexo mecanismo que envolve a interação entre a atmosfera e a cobertura da terra. Nesse contexto, a vegetação nativa realiza um papel crucial de reciclagem da umidade, ao reter a água e permitir sua evaporação gradual, além de lançar componentes na atmosfera necessários para a formação das nuvens e chuva. Essa massa de ar úmido, então, é empurrada pelo vento primeiro para a direção oeste e depois, ao atingir a Cordilheira dos Andes, para o sul. O fenômeno, denominado por cientistas como os rios voadores da Amazônia, contribui para as chuvas nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste do Brasil, além de outros países como a Bolívia, a Argentina e o Paraguai, sendo responsável por 70% dos recursos hídricos da bacia do Rio da Prata. Em efeito, a umidade gerada no equador chega em forma de chuva no centro-oeste e sul do Brasil, permitindo um clima favorável à agropecuária mesmo nas regiões continentais tipicamente secas, a exemplo do Outback na Austrália.
Desde as primeiras observações por Alexander von Humbodlt na Venezuela em 1799, um número crescente de estudos aponta para a relação entre o desmatamento e a mudança local no padrão de chuvas. Diferentes estudos que buscam separar os efeitos globais dos locais das mudanças climáticas mostram que o desmatamento da Amazônia já reduziu em 24% o volume de chuvas durante a estação seca (agosto a outubro), alterou a sazonalidade e reduziu a duração da estação chuvosa em média em 28 dias por ano, acrescentou 2,5°C na temperatura média da região, além de ter intensificado os eventos extremos de seca. Na escala local a vegetação protegida contribui para a manutenção de vazões menos extremas, uma vez que favorece o processo de infiltração, recarga das águas subterrânea e reduz a velocidade do escoamento superficial. Com isso, contribui para reduzir a intensidade e impacto das enchentes em épocas de chuva e também ajuda a manter níveis mínimos de vazão nos rios durante as secas.
O aumento da frequência e intensidade dos extremos climáticos e hidrometeorológicos, como ondas de calor, secas, chuvas intensas, inundações, entre outros, pode levar a grandes perdas econômicas e mesmo de vida, como o ocorrido em 2022, ou seja, principalmente em anos nos quais as condições climáticas sejam desfavoráveis. Nesses anos, a alteração no regime de chuvas terá impacto direto na capacidade do país de manter o plantio de duas safras anuais, hoje responsável por boa parte do aumento de produção de grãos. Se nos primeiros estágios de desenvolvimento das mudas o clima fica instável, e não chove na hora esperada ou a temperatura sobe muito, há uma queda na produtividade das safras e pastagens.
Caso seja mantida a atual tendência de desmatamento, as mudanças climáticas regionais e locais irão gerar prejuízos que superam os ganhos com a expansão da fronteira agropecuária. Ao considerar um cenário de desmatamento crescente na porção sul do bioma Amazônia até 2050, as novas áreas abertas para a pecuária e produção de grãos irão gerar US$ 20 bilhões adicionais. Porém, esse mesmo desmatamento irá impactar toda a produção agropecuária já instalada na região, causando um prejuízo de US$ 186 bilhões, o que resulta em uma perda para a sociedade de US$ 166 bilhões.
Caminhos para a agropecuária do futuro
Em vários países, são crescentes os investimentos públicos e privados em pesquisa para o desenvolvimento de sistemas de produção mais resilientes à mudança do clima. Entre as práticas e os sistemas aplicados no Brasil, pode-se destacar: o plantio direto, o manejo integrado da fertilidade de solos, a captação de água nos sistemas agrícolas, a irrigação inteligente, a agricultura de precisão e agricultura orgânica, assim como estratégias de intensificação da pecuária. Em particular, se destaca a corrida pelas diversas técnicas e tendências para o desenvolvimento de novas variedades de plantas mais resistentes a condições adversas, como secas, altas temperaturas e pragas, e com absorção mais eficiente de nutrientes, ou seja, pelo melhoramento genético ou transgênico.
Entretanto, embora as estratégias de adaptação agronômica possam, com certeza, aliviar alguns desses impactos, a manutenção da vegetação nativa deve ser parte crítica da solução para a estabilização do clima. As florestas são fundamentais para mitigar os efeitos das mudanças climáticas regionalmente e localmente e até diminuí-la, uma vez que são o principal elemento da biota terrestre que atua como sumidouro de carbono, removendo atualmente cerca de 36% das emissões antropogênicas de CO2 da atmosfera e regulando o clima local. Em um país onde a maior parte da produção agrícola depende das chuvas – só 5% da produção total e 10% da produção de grãos são irrigados, isso significa que o futuro do agronegócio brasileiro depende da preservação da Amazônia.
A Amazônia tem papel fundamental na regulação do clima não apenas localmente, mas também em todo o Brasil e no mundo, logo sua preservação se torna uma estratégia fundamental pela busca da resiliência da agricultura nacional. Diante dessa importância, são necessárias medidas mais rígidas, como zerar o desmatamento legal e ilegal imediatamente, não somente na Amazônia, mas também no Cerrado e por todo o país. O Brasil é capaz de fazer essa redução. Entre 2004 e 2012, o país reduziu em 84% o desmatamento anual na Amazônia, de 27 mil km² para 4,5 mil km². Além de conservar uma rica sociobiodiversidade e muitos outros serviços ecossistêmicos providos pelas matas brasileiras, sua preservação e recuperação também são necessárias para não agravar os impactos negativos ao clima na portentosa agricultura brasileira. A proteção da vegetação nativa brasileira apesar de ser defendida principalmente como medida altruísta do Brasil para ajudar o mundo, é antes de tudo, uma condição essencial para se garantir a prosperidade da agropecuária brasileira.
Fonte: Fórum do Futuro
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