Serão necessários gestores competentes e ampla participação social para retomar e aprimorar as políticas públicas ambientais
Os tempos do governo de Donald Trump e de Jair Bolsonaro representam um refluxo civilizatório. Romperam sistemas legais e institucionais e trouxeram retrocessos sociais e estagnação científica, comprometendo o bom desenvolvimento dos EUA e do Brasil em curto e médio prazo.
Há autores que enfatizam o lado do aprendizado social dos refluxos civilizatórios, um movimento conhecido como “backlash”, ou a “folga” provocada pelo refluxo depois de um período de avanços sociais.
No Brasil o refluxo atingiu seu paroxismo. A tomada dos centros de decisão da política ambiental para promover resultados piorados levou a ministra Carmem Lucia, do Supremo Tribunal Federal (STF), a referir-se ao governo como uma “caquistocracia”, ou o “governo dos piores”.
A insatisfação é generalizada. O governo não representa o pensamento majoritário dos setores sociais e econômicos, preocupados com requisitos ambientais, sociais e de governança exigidos pela modernidade. Enquanto o governo vem entregando a floresta nas mãos da devastação, nada menos que 80% dos brasileiros defendem a proteção da Amazônia.
O Brasil tem suas raízes em um modelo colonialista e espoliador da natureza. A exploração ambiciosa do território teve sua chama estancada por avanços culturais e normativos, mas ainda sobrevivia nas cinzas. Diante de um lapso de fragilidade histórica, saudosistas remanescentes do colonialismo sem peias tomaram o poder — e a área ambiental do Brasil foi capturada pelo pior do agronegócio.
Os efeitos nocivos são visíveis e o clamor por normalidade vai do Itamaraty às representações científicas, da sociedade civil brasileira aos pleitos internacionais em defesa dos tratados climáticos, da proteção de direitos humanos, das comunidades indígenas, das florestas e de sua biodiversidade. São tempos obscuros para mentes progressistas, sejam estas da área econômica/ambiental ou de tendência democrática, que têm se manifestado contra a redução do Brasil a uma “república das bananas”.
A má governança acabou por infringir limites legais – provocando um status de insegurança jurídica que não poderia sobreviver no seio de um Estado Democrático de Direito. Diante dos danos ambientais irreparáveis, o governo está sendo responsabilizado. As ações em julgamento no STF apontam a prática de uma “cupinização” institucional e um Estado de Coisas Inconstitucional.
A perda de protagonismo do Brasil nas relações internacionais, como liderança na pauta ambiental ao lado das grandes nações, é tão vergonhosa que merece um capítulo à parte. O governo segue inconsistente e sem propostas. Continua a protagonizar o desmantelamento normativo e institucional. Por omissão e incompetência ceifou vidas durante a pandemia, enquanto sufocava por inanição administrativa e econômica os meios de fiscalização ambiental. A consequência foi a destruição das florestas e o abandono dos povos indígenas à própria sorte, em favorecimento das forças degradadoras.
Serão necessários gestores competentes e ampla participação social para retomar e aprimorar as políticas públicas ambientais. A criminalidade ambiental se fortaleceu na zona de conforto da impunidade. O crescimento do desmatamento na Amazônia atingiu, no primeiro trimestre de 2022, segundo o Imazon, a alarmante cifra de 687 km².
O backlash brasileiro
Um refluxo para a área ambiental e de direitos humanos era previsível dentro da história moderna, depois do notável crescimento dos instrumentos legais e de gestão ocorridos em curtíssimo espaço de tempo, no final do século XX. Foi um grande mérito da ciência, neste início do Antropoceno, apontar limites para o crescimento, demonstrando que os impactos ambientais ampliados estavam fragilizando as estruturas ecossistêmicas globais. A compreensão da existência de limites para a ação humana deu início a um processo estruturante de tratados, normativas e políticas públicas, iniciado a partir da Conferência de Estocolmo, em 1972.
A partir do início do Século XXI, era previsível o jus sperneandi (o direito de espernear) dos setores que se viram restringidos em suas ambições desmedidas, especialmente no Brasil, riquíssimo em patrimônio natural.
Seguindo a linha de Steve Bannon (estrategista-chefe do governo Trump) e do próprio Donald Trump, a chegada ao poder de Bolsonaro acentuou no Brasil um backlash com amplitude adicional, em função do momento eleitoral e de fatores sociais e culturais específicos. Houve uma aglutinação inesperada. Ao lado das forças econômicas prejudicadas em suas ambições sem peias, emergiram ambições políticas oriundas de um massivo desvio religioso de massas e um modelo militarista démodé, saudoso da ditadura militar.
De forma imponderável, fomos arremessados para uma nova dimensão, determinada por um processo sinérgico de forças retrógradas. Vivemos a síndrome de um Brexit ambiental tropical ampliado. O Brasil mergulhou em um refluxo civilizatório febril, com forte perda de direitos fundamentais.
A retomada da razão
Thomas Piketty, economista contemporâneo renomado, citando Donald Trump, o Brexit e a ascensão de nacionalistas autocráticos como Vladimir Putin, Jair Bolsonaro e Narendra Modi (primeiro-ministro da Índia), aconselha que se retome o comprometimento com as estruturas institucionais democráticas que ao longo da história promoveram a igualdade.
Observamos os fundamentos constitucionais do Brasil. A institucionalização de ampla participação social na gestão do meio ambiente elevou a democracia a um status de igualdade, assim como defendia Aristóteles mais de dois milênios antes de Piketty.
Demonstrando total alienação com relação ao processo civilizatório e às conquistas sociais constitucionais, Bolsonaro interrompeu um processo virtuoso de consolidação da democracia. Promoveu um cerceamento democrático com perdas para a participação social em várias agendas, assim como neutralizou processos resolutivos referentes a minorias, racismo e injustiça social.
Os signos do backlash devem ser observados. Vivemos tempos obscuros, de culto bélico. É preciso atentar para simbolismos reveladores, como as “motociatas bolsonaristas”. Demonstram um perfil nacionalista autocrático travestido de culto à maquinaria, como ocorreu há quase um século no fascismo de Benito Mussolini. A maquinaria representa, entre outras perspectivas de massificação pelo autoritarismo, a estetização da política, com pretensões de uma sociedade assemelhada à eficiência da máquina, onde cidadãos são partes destinadas a um padrão-fim. Da verve fascista não poderia surgir algo mais antiecológico e antidiversidade.
Esses sinais fora do tempo lembram a insanidade suportada por Chaplin em Tempos Modernos. Um século depois, fazem parte de um refluxo anômalo, sem concretude ou sustentação e em contraponto ao humanismo progressista.
Historicamente o Brasil trilhou um longo caminho rumo à democracia. Resta agora a tarefa de corrigir os rumos, evitando que efeitos da atual constelação anômala possam continuar a assolar a democracia e desconstruir a sustentabilidade do Brasil.
A natureza segue seu curso
Soma-se ao retrocesso democrático, a gravidade da aceleração imprevisível das mudanças climáticas, que avançam em ritmo muito mais intenso do que a ciência esperava.
Neste contexto, o governo Bolsonaro representa um atraso irrecuperável para o Brasil, pois a política de ação climática foi completamente esvaziada em seu período mais precioso: o limiar da oportunidade para agir e promover a urgente transição rumo à resiliência climática. Os preciosos tempos para adaptação estão sendo relegados a um profundo descaso.
Enquanto isso, os súditos do agronegócio instalados no poder não são só incompetentes no trato da coisa pública. Não dimensionam também os impactos que serão ocasionados no futuro para o seu próprio setor, por exemplo, com a devastação da Amazônia. Sem percepção de sustentabilidade temporal, a característica lobística primária não passa de imediatismo autofágico.
A reconstrução
Considerando a necessidade de remoção democrática do Bolsonarismo, deve-se prever uma reconstrução cautelosa do aparato normativo infralegal, dos instrumentos de gestão e da participação social, o que demandará anos de trabalho sério. A reestruturação exigirá muito mais tempo e energia se os interesses nocivos continuarem nos bastidores do poder pressionando para manter as facilitações lobísticas obtidas durante a atual gestão.
A grande demanda será encontrar meios para romper a zona de conforto da criminalidade ambiental, especialmente na região amazônica. Fragilizada em seu sistema ecológico e cada vez mais próxima do tipping point (ponto de não retorno), a Amazônia abriga um estado de ilegalidade fortalecido com a sensação de impunidade. As forças da grilagem, mineração, extração de madeira, invasão de terras indígenas e expansão agrícola contaram com intensa sinalização de impunidade pelo governo, reforçadas com a contribuição das atividades lobísticas protagonizadas pelo legislativo federal.
Thomas Piketty é um otimista e assim devemos ser. Acaba de lançar o livro “Uma breve história da Igualdade”. Em suas considerações, tem avaliado que o Brexit e outras influências nacionalistas nocivas ao progresso civilizatório demandam a construção de propostas concretas que permitam neutralizar as forças mais retrógradas e nocivas das sociedades.
O Brasil tem lição de casa para fazer: corrigir o refluxo civilizatório no qual se instalou o governo de Jair Bolsonaro — e gerar cultura ambiental para impedir, de forma democrática, que tais eventos nocivos venham a se repetir.
Fonte: O Eco
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