Em novo fascículo do livro comemorativo dos 60 anos da Fapesp, pesquisadores avaliam como a ciência pode responder aos grandes desafios nacionais para o desenvolvimento sustentável
“Ainda é possível transformar o Brasil em protagonista global na área de ciência, tecnologia e inovação”, afirma o físico Luiz Davidovich, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, até recentemente, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), no artigo de abertura do décimo e último fascículo do livro Fapesp 60 anos: Ciência, Cultura e Desenvolvimento. A publicação busca trazer temas importantes da ciência e a atuação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) no financiamento e incentivo à pesquisa.
Na publicação, Davidovich alerta que o protagonismo dependerá de “políticas públicas arrojadas, lastreadas na abrangente estrutura institucional da ciência nacional e no cabedal de conhecimento nas instituições de ciência e tecnologia, consolidado ao longo de décadas”.
Trata-se de um enorme desafio para um país com escolaridade precária, com apenas 16% dos egressos do ensino superior graduados em áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática e cerca de 900 pesquisadores por milhão de habitantes – os países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) têm, em média, 4 mil por milhão – e com uma agenda econômica que “menospreza” o papel da ciência e da inovação no desenvolvimento nacional, sublinha Davidovich. “Não basta correr, é preciso correr mais que os outros”, adverte.
Com o título De olho no futuro, o último fascículo do livro examina as oportunidades oferecidas pela ciência e os grandes desafios para fazer o Brasil avançar em áreas estratégicas do desenvolvimento sustentável.
O capítulo Transição verde e transição digital aponta dois dos vetores de pesquisa que já integram a agenda da Fapesp para o futuro: as mudanças climáticas e as tecnologias digitais – notadamente a inteligência artificial. “Este momento é orientado por alguns grandes eixos da economia mundial, entre eles o da transição verde”, afirma Marco Antonio Zago, presidente da Fapesp. “Pesquisas sobre a região amazônica estão na ordem do dia”, completa Paulo Artaxo, um dos coordenadores do Programa Fapesp de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG).
Para responder a esses grandes desafios a Fundação financia grandes programas de pesquisa, como o PFPMCG, o Bioen (sobre bioenergia), o BIOTA (sobre biodiversidade), o eScience (sobre computação) ou ainda os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids), que envolvem centenas de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, trabalhando em colaboração.
O Bioen, por exemplo, já investiga o uso da técnica de edição gênica Crispr/Cas9 para alterar características genéticas da cana-de-açúcar e aumentar a produtividade da produção de biocombustíveis.
Também o uso da inteligência artificial promete ter um enorme impacto na produção agrícola, na geração de energia e nos transportes, prevê Roberto Marcondes Cesar Júnior, coordenador do programa Cepids. Em 2020, a Fapesp inaugurou um Centro de Pesquisa em Engenharia (CPE) voltado à pesquisa em inteligência artificial em parceria com a IBM e sede na USP.
A expectativa é que os avanços nas áreas de inteligência artificial impactem ainda outras áreas de pesquisa, como a genômica, por exemplo, permitindo a compreensão muito mais ampla de como os genes humanos interagem entre si, com o organismo e com o ambiente, na avaliação de Jorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor).
As tecnologias digitais irão requerer análises críticas de seus efeitos sobre a cultura e a sociedade, exigindo a articulação de pesquisadores de diferentes áreas. “Está cada vez mais nítido que o diálogo interdisciplinar é fundamental para lidarmos com problemas contemporâneos”, sublinha Márcio Barreto, da Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Novos desafios da ciência
O segundo capítulo do 10º fascículo – Novos critérios para novos desafios da ciência– examina o impacto da revolução tecnológica, impulsionada por meios digitais, para a produção, avaliação e divulgação da ciência.
No caso das agências de fomento, as modulações vão desde a avaliação inicial dos projetos até a análise de seu impacto da pesquisa para a sociedade, exigindo também análise sobre o uso de preprints e reflexões sobre a ética de se conceder a revistas comerciais a propriedade sobre dados de pesquisas financiadas com recursos públicos.
O porte dos desafios tende a obscurecer o dilema histórico entre ciência básica e ciência aplicada. “O que todas as agências do mundo hoje procuram é fazer um blend entre a pesquisa movida pela curiosidade e a pesquisa movida por problemas”, diz Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP.
Neste novo cenário, também ganha força o conceito ciência aberta, que se aplica não apenas à publicação de papers, mas também à disponibilização de todas as informações relacionadas a uma linha de pesquisa. A FAPESP, aliás, foi a primeira agência da América Latina a investir fortemente nessa ideia.
O último capítulo do fascículo – O tecido do conhecimento – trata das estratégias exigidas de agências de fomento à pesquisa para acolher projetos articulados com os novos tempos. Um exemplo é o programa LinCAr – Abordagens inovadoras na pesquisa em Linguagem, Comunicação e/ou Artes –, lançado pela Fapesp em fevereiro de 2022. De acordo com Luiz Eugênio Mello, diretor científico da Fapesp, o ritmo de transformação da vida “torna urgentes as investigações sobre o ser humano – e o lugar da essência humana – em um universo em mutação”.
Os novos tempos exigem mudanças na reorganização dos campos da ciência e nas formas de produção científica. E a palavra-chave é colaboração. “A pandemia da covid-19 escancarou algo que já se apresentava quando mostrou que é possível avançar de forma muito mais rápida e dentro de um esforço integrador muito mais amplo de práticas, de metodologias e de conhecimento”, afirma Glauco Arbix, da USP, um dos coordenadores do projeto Rede Solidária da Pesquisa covid-19, que reuniu quase uma centena de pesquisadores de várias áreas do conhecimento para examinar e propor políticas públicas de controle da pandemia.
Para Arbix, não há como trabalhar com inteligência artificial, robótica e big data sem o olhar da sociologia, da psicologia, da ética, entre outros. Essa perspectiva desafia as ciências humanas. “Quais são os limites éticos da tecnologia? Quais são seus desdobramentos sociais?”, questiona a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, vice-reitora da USP. “Temos que retomar a questão da vida humana e o que ela significa.”
O desafio tem desdobramentos na comunicação digital, com as fake news, algoritmos que viralizam conteúdos em detrimento de outros. “De que maneira a sociabilidade digital muda a maneira como as pessoas fazem política, como as famílias se organizam e as pessoas se relacionam amorosamente? Ou como o Estado se organiza?”, indaga Marcos Nobre, da Unicamp, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). O resultado desta investigação poderá levar à identificação de tendências e à descoberta de quais caminhos podem ser tomados.
O 10º fascículo traz também artigo de Lilia Moritz Schwarcz, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, com o título Virá que eu Vi: Pensamentos, sem certezas, sobre o futuro.
Os nove primeiros fascículos do livro – Seis décadas de realizações, DNA da ciência paulista, Pioneirismo digital, Grandes projetos, grandes resultados, Políticas públicas baseadas em evidências e Contribuição social, cultural e artística , Inovação e empreendedorismo, Diversidade e inclusão e Lições da Pandemia estão disponíveis neste link.
Fonte: Jornal da USP
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