As práticas socioambientais no sistema financeiro são o tema da entrevista de março do Escolhas e quem comenta o assunto é o mestre em Economia Roberto Dumas, que já trabalhou em instituições como UBS, Citigroup, Lloyds Bank e Itaú BBA, atuou no banco dos BRICS (New Development Bank) e soma mais de trinta anos de experiência no mercado financeiro brasileiro e internacional.
“É preciso desromantizar o termo sustentabilidade e diferenciá-lo de altruísmo”, diz Dumas, explicando que, apesar do termo ESG (sigla em inglês para práticas ambientais, sociais e de governança) ser relativamente novo, a preocupação com as questões socioambientais é, já há algum tempo, essencial para que instituições financeiras e bancos não percam a lucratividade.
Dumas ressalta a importância da atuação do governo com políticas de tributação e incentivo sobre as externalidades positivas e negativas dos negócios e confirma que a entrada de uma nova matriz de riscos ambientais obrigatória, como proposta pelo Instituto Escolhas, pode trazer benefícios, mas argumenta sobre a necessidade de o sistema ser top-down, com o convencimento do presidente e do conselho de administração das instituições financeiras, para dar certo.
A entrevista completa você lê abaixo. Em seguida, clique aqui e contribua com a proposta que obriga bancos e instituições financeiras a avaliarem os riscos ambientais nos financiamentos para projetos de infraestrutura (até 10/3):
ESCOLHAS – Muito tem se falado das práticas ambientais no mercado financeiro brasileiro e o termo ESG parece estar na moda. Ano passado, o Banco Central lançou uma agenda de sustentabilidade e os bancos Itaú, Santander e Bradesco divulgaram um compromisso com a Amazônia. Como esses documentos se traduzem na prática?
ROBERTO DUMAS – Apesar de acharmos que seja um modismo, ESG nada mais é do que uma análise de crédito amplificada. Os bancos, principalmente os brasileiros, já estão há algum tempo se adaptando. Isso acontece primeiro por um risco legal: a Lei do Meio Ambiente (6938-81) coloca os bancos e as instituições financeiras como civilmente corresponsáveis por qualquer problema ambiental em projetos que tenham fornecido um financiamento. Segundo, por um risco de crédito, já que projetos grandes costumam ser de tal tamanho que o acionista não consegue carregá-lo no balanço e a principal fonte de pagamento do banco vem do fluxo de receitas do projeto. Terceiro, risco de reputação.
Porém, precisamos desromantizar o termo sustentabilidade e não confundir sustentabilidade com altruísmo. Sustentabilidade é ser sustentável em todos os aspectos, inclusive no lucro. Sem retorno, é altruísmo e não é possível ter um portfólio de investimentos só com empresas altruístas. Investimento é coisa séria. Se olharmos para um stakeholder e durante os próximos 10, 20, 30, 40, 50 anos ele não trouxer dividendos nem lucro, como é que podemos fazer um follow-on [ou seja, abrir uma nova oferta] dessa ação? Como atrair novos investidores?
O governo poderia ajudar tentando incorporar as externalidades positivas e negativas nos negócios. Por exemplo, se estão fazendo uma termoelétrica a carvão, então ela deveria pagar o custo da emissão de CO2, com um imposto por emissão de CO2, e a energia gerada por termoelétricas seria mais cara. Se, em vez disso, fizerem uma usina fotovoltaica, ela receberia um benefício fiscal. Ou seja, aquilo que por muito tempo nós tomamos como certo (“você não paga por poluir e também não ganha parabéns por preservar”) não está adiantando para mudar o mundo.
ESCOLHAS – Apesar de haver algumas práticas voluntárias entre o setor financeiro para avaliar fatores socioambientais nos financiamentos de grandes obras, ainda convivemos com os impactos de projetos como a Usina Hidrelétrica de Belo Monte e dos desastres de Mariana e Brumadinho. Assim, não seriam necessários mecanismos mais rígidos e obrigatórios para avaliar a questão ambiental e evitar esses impactos?
ROBERTO DUMAS – Aqui entram dois conceitos: razoabilidade e proporcionalidade. O que é razoável? Até onde a gente pode chegar? Nos financiamentos é preciso mesmo olhar [a questão socioambiental] porque sabemos onde a empresa vai colocar o dinheiro. E, segundo a Lei do Meio Ambiente, a 6938/81, o banco é corresponsável pelos financiamentos.
Agora, vamos falar de um capital de giro. Se formos dar dinheiro para a Vale, por exemplo, por meio de capital de giro, que é válido por um dia, ou ainda por um derivativo, que tipo de licença ou due diligence vamos fazer? Se a gente apertar muito o comando e controle nos bancos, eles vão achar uma forma de administrar. Se você disser que ao dar um capital de giro, um swap ou um mercado a termo a uma empresa e, se ocorrer um acidente, ele [o responsável pelo banco] vai preso, a decisão será: “então não vou dar mais dinheiro para essa empresa”.
ESCOLHAS – Quais são os principais desafios para a incorporação de uma matriz de riscos ambientais pelos bancos e instituições financeiras?
ROBERTO DUMAS – Para que uma matriz [de riscos ambientais] funcione, é necessário haver uma tabela de dupla entrada: produtos financeiros e valores de risco. Por exemplo, para um swap financeiro cambial, ou para um hot money [para investimentos de curto prazo], devemos usar uma matriz? Não. Mas, para todos os outros produtos, sim. Também é preciso se certificar de que a empresa não está na lista proibida (alguns bancos não financiam munições, por exemplo; outros não financiam armamentos para nações) ou na lista restrita, em que é dado o crédito, mas acompanhando o que ela está fazendo. Por exemplo, há empresas em que as terceirizadas usam mão-de-obra análoga à escravidão. Cabe a nós, analistas, gerentes, diretores, apontar isso.
Outra coisa que eu sempre falo é sobre a governança ambiental e social (environmental and social governance) nos bancos. É preciso haver uma governança. O analista ou o diretor não tem poder de veto [para um financiamento]. Isso deve ser feito pelo presidente ou conselho de administração. Por isso, essa matriz tem que vir de cima para baixo (top-down). Se o presidente ou o conselho de administração não entenderem a importância ou o conceito de sustentabilidade ou de risco reputacional, estaremos perdendo tempo. Então, antes de fazer uma matriz é importante falar sobre conscientização, deixando bem claro para todo mundo os riscos que estamos correndo (riscos de crédito, de reputação e legal), para mostrar onde nós estamos pisando, dando exemplos. Na hora em que isso for combinado, quando o vice-presidente do conselho de administração soltar [uma matriz de riscos ambientais], é possível começar a trabalhar.
ESCOLHAS – Que mudanças será possível ver a partir da adoção de uma matriz de riscos ambientais, para uso obrigatório na seleção de projetos e na decisão sobre financiamentos no Brasil?
ROBERTO DUMAS – Se a matriz [de riscos ambientais] de fato tiver um peso no risk rating [classificação de risco] do cliente, será importante. Por outro lado, temos o risco de o banco falar “eu tenho a matriz”, mas dar um peso tão insignificante para ela que impacte em nada no risk rating do cliente. E daí de nada adianta. Por exemplo, se colocar na matriz só um peso de 0,05%, isso terá um impacto zero no risk rating, mesmo atendendo à legislação. A matriz tem que ser relevante no risk rating do cliente, porque senão, mesmo que falemos que está tudo destruído [em relação ao meio ambiente], o impacto será zero. Ou seja, não adiantou nada.
ESCOLHAS – Você acredita que os bancos estão dispostos a abrir mão do lucro em prol do meio ambiente?
ROBERTO DUMAS – Na verdade, é o contrário; é essa visão que está errada. Sustentabilidade não é abrir mão do lucro. Mas, quando não olhamos o meio ambiente, o lucro cai. Por exemplo, se não olharmos o aspecto socioambiental [de uma empresa] e descobrirem que estamos dando dinheiro para alguém que usa a mão-de-obra escrava, é um tuitaço e pronto, lá se foi o lucro.
Se ignoramos o meio ambiente e o lado social, o preço das ações caem. Consequentemente, não será possível fazer um follow-on [uma nova oferta de ações] e a lucratividade também cairá. Olhar para o meio ambiente não vai melhorar o lucro, mas vai ajudar a manter o acompanhamento de resultados. Se não olharmos para o meio ambiente, perderemos dinheiro.
ESCOLHAS – Como fica a questão dos bancos e do setor financeiro neste cenário? A bandeira do desinvestimento (retirar o seu dinheiro de bancos ou empresas que financiam atividades vinculadas à queima de combustíveis fósseis) pode se tornar uma bandeira também no Brasil? E qual seria uma alternativa para o mercado se adequar à economia de baixo carbono e causar o menor impacto possível nas pessoas que dependem dessas atividades?
ROBERTO DUMAS –Isso agora está virando uma bandeira na Europa e nos Estados Unidos. Se vai ter ou não, é inexorável, já é certo. As operações da Tesla estão valendo mais do que as da Ford, da GM e de todo mundo. Se vai ser agora? Em quanto tempo? É difícil dizer. O famoso economista Schumpeter, criador da frase sobre “destruição criativa”, diz que o desenvolvimento parte do princípio de que algumas coisas são destruídas e são inovadas.
Por exemplo, a gente falava da digitalização, que iria tirar empregos, e que nós iríamos começar a trabalhar em casa. A gente falava isso e a pandemia simplesmente antecipou o inexorável. Um ano depois e, agora, estamos aqui. Uma vez por semana eu vou trabalhar de casa. Outra forma de ver isso é: será que vamos continuar usando petróleo cada vez mais? Não. Isso é uma tendência. No Chile, já são consideradas as externalidades negativas e há multas para determinadas atividades. Ou seja: não é que algo está proibido, mas que se você fizer, vai pagar mais. E essa é uma tendência inexorável. Antigamente a gente tinha que mudar a cada cinco ou dez anos. Hoje temos que nos reinventar a cada semana.
Fonte: Instituto Escolhas
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