O pleno exercício do poder de polícia ambiental pode parecer um mero detalhe ou filigrana jurídica. Todavia, isso faz toda a diferença nas atividades de policiamento ambiental, pois lhes permitem exercer na plenitude a sua função de polícia de segurança ambiental, inclusive com a aplicação das multas administrativas
Todas as vezes em que eu tenho a oportunidade de falar em público, eu início a minha palestra com uma indagação mais ou menos assim: “vocês sabiam que as polícias militares possuem uma unidade especializada e dedicada à proteção da natureza”? Invariavelmente a maioria responde que não. Disso, decorrem vários problemas, como veremos mais adiante.
Antes, porém, é preciso entender resumidamente como se iniciaram as tentativas de conservação da natureza no Brasil. Após a saga expansionista no século XV em busca de ouro e prata, principalmente, a qual culminou com o descobrimento do Brasil, Portugal enviou uma expedição em 1501. Ela retornou com uma grande quantidade de uma madeira, chamada pelos índios tupis de ibirapitinga (árvore vermelha) da qual se extraía um corante cor de brasa, que os portugueses chamaram de pau-brasil.
Esse corante era excelente para o tingimento dos tecidos de lã e de seda e, por essa razão, muito apreciado pelos europeus. A valorização comercial desse produto tornou-o altamente lucrativo e atraiu a cobiça de outros países. Assim, as nações não contempladas pelo Tratado de Tordesilhas, em particular a França, a Holanda e a Inglaterra, passaram a extrair clandestinamente a madeira. Estimou-se que durante o século XVI foram extraídas em torno de doze mil toneladas por ano de pau-brasil da Mata Atlântica.
O Rei Filipe III (1598-1621) mandou elaborar uma legislação específica para a exploração e conservação deste produto florestal, pois, estava preocupado não apenas com os interesses econômicos da Coroa luso-espanhola, mas também com os prejuízos promovidos pelo descaminho do pau-brasil e com a má utilização dos solos, os quais poderiam acarretar na redução da produtividade e, consequentemente, nos lucros do reino. Nascia assim, a primeira lei conservacionista do Brasil, o Regimento do Pau-brasil (1605). Vale ressaltar que foi nesse dispositivo legal, onde pela primeira vez se fez menção à função de guarda florestal, ou seja, aquele que indicaria e fiscalizaria as árvores que poderiam ser cortadas.
Se passaram mais de trezentos anos até que uma legislação brasileira voltasse a fazer menção a uma força de aplicação da lei destinada à proteção da natureza. Isso ocorreu no Código Florestal de 1934, que previu a criação de uma polícia florestal da União. Entretanto, ela não foi efetivada por absoluta falta de verbas federais, e em seu lugar esperava-se que as forças policiais estaduais assumissem esse papel como missão acessória.
Isso, com efeito, ocorreu no final da década seguinte. Em 1949, a Polícia Militar de São Paulo criou a primeira unidade policial militar especialmente dedicada à conservação da natureza, o Pelotão de Policiamento Ambiental. Nos anos seguintes surgiram mais três unidades dessa natureza no Paraná (1957), Santa Catarina (1962) e Minas Gerais (1966). No ano de 1970, a União atribuiu explicitamente às polícias militares a responsabilidade pelo policiamento florestal, o de mananciais, fluvial e lacustre.
A consciência ambiental global aumentou nos anos que se sucederam. Nesse período foram produzidos dois documentos icônicos que mudaram a percepção tanto da Humanidade quanto da sociedade brasileira, sobre as relações do Homo sapiens com a natureza. O primeiro foi relatório do Clube de Roma, denominado “Limites do Crescimento”; e o segundo foi o relatório da primeira conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente e o desenvolvimento, ocorrida em 1972, intitulado “Nosso Futuro Comum”. Vinte anos depois, em 1992, ocorreu a cimeira Eco-92, realizada no Rio de Janeiro. Todos esses eventos globais fizeram não apenas aumentar a consciência ambiental, mas também intensificaram as críticas ao modelo de desenvolvimento econômico adotado até então. No final desse período, o meio ambiente já era apontado pelos jovens como a segunda maior preocupação nas grandes cidades brasileiras.
Foi durante o surgimento desse caldo cultural e dentro desse contexto geopolítico que surgiu a maioria das unidades de polícia militar ambiental (PMAm), bem como o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), em 1981, e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), em 1989. As décadas de 1980 e 1990 foram virtuosas para as PMAm, pois, foi quando foram criadas dezenove das 27 unidades existentes hoje. O SISNAMA, entretanto, foi criado sem que o seu papel na conservação da natureza fosse levado em consideração dentro do que previa a legislação infraconstitucional.
Depois disso, ainda houve mais duas tentativas de se criar uma polícia (guarda ou força) nacional ambiental. A primeira foi em 2008, quando se instituiu no âmbito do Ministério do Meio Ambiente o programa da Guarda Ambiental Nacional; e depois em 2020 quando foi anunciada a criação de uma Força Nacional Ambiental no âmbito do Conselho Nacional da Amazônia Legal. Efetivamente, nenhuma delas foi implementada, novamente por falta de recursos financeiros.
Enquanto isso, as PMAm continuaram a exercer quase anonimamente o seu duplo papel: o de polícia de segurança pública e o de polícia de segurança ambiental. Para se ter uma ideia da dimensão desse serviço, somente no ano de 2017 elas registraram mais de 111 mil ocorrências ambientais, apreenderam mais de 84 mil animais, aproximadamente 250 toneladas de pescado ilegal e quase 180 mil metros cúbicos de madeira ilegal, entre outras. O resultado dessas ações foi o equivalente a apreensão de: um animal a cada seis minutos, setecentos quilos de pescado ilegal por dia, e a setenta piscinas olímpicas cheias de madeira ilegalmente cortada. Os dados ora apresentados, antes de serem comemorados como um demonstrativo da sua atuação operacional, dão a infeliz dimensão de como a nossa biodiversidade está sendo dilapidada de forma acelerada, uma vez que, segundo alguns especialistas, esse montante representa somente entre dez e vinte por cento de tudo o que foi traficado.
Elas, contudo, não trabalharam somente na repressão, mas também na prevenção de crimes ambientais. As atividades de educação ambiental que praticaram em 2018 atenderam a quase seiscentas mil pessoas, entre jovens e adultos. Para a realização de suas ações repressivas e preventivas, as PMAm somavam em 2018 um efetivo total de mais de 7,2 mil policiais, enquanto o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o IBAMA contavam com cerca de 900 e 780 fiscais, respectivamente. Ademais, todo esse trabalho vem sendo realizado sem o apoio de fontes de financiamento externas, tanto nacionais quanto internacionais, bem como uma boa parte dos seus integrantes procuram se aperfeiçoar tecnicamente por meio de cursos de graduação e pós-graduação realizados em seus momentos de folga, que arcam com os seus próprios recursos.
A mesma lei que estabeleceu a Política Nacional do Meio Ambiente e que criou o SISNAMA, o estruturou em vários órgãos das três esferas administrativas de poder. Entre eles os órgãos de execução federais, IBAMA e ICMBio; os órgãos seccionais, em âmbito estadual; e os órgãos locais, a nível municipal. Alguns anos depois, o poder de polícia ambiental foi delegado ao IBAMA e ao ICMBio, e mais recentemente foram fixadas as normas de cooperação entre os entes federativos nacionais em relação às suas competências comuns de licenciamento e atuação. Salvo raras exceções, tais como as do Distrito Federal e de Santa Catarina, as PMAm não são reconhecidas como integrantes do SISNAMA, o que promove uma série de embaraços com os demais órgãos com poder de polícia ambiental dos três níveis de poder. O pleno exercício do poder de polícia ambiental pode parecer um mero detalhe ou filigrana jurídica. Todavia, isso faz toda a diferença nas atividades de policiamento ambiental, pois lhes permitem exercer na plenitude a sua função de polícia de segurança ambiental, inclusive com a aplicação das multas administrativas. Dessa maneira, elas vêm prestando esse serviço muito aquém de suas possibilidades e de forma capenga.
Esse desconhecimento sobre as PMAm, no entanto, possui raízes profundas. Inicialmente, as suas corporações-mães, as polícias militares, são vistas e cobradas pela sociedade somente por seu papel na segurança pública urbana. Por essa razão, consequentemente, elas dirigem a maior parte da sua atenção, de seus esforços, e seus efetivos à segurança dos centros urbanos. O resultado dessa cobrança conduz a uma situação peculiar: quanto maior a taxa de mortes violentas intencionais estaduais, menor é o percentual que as polícias militares dedicam ao policiamento ambiental, e ainda assim, seus efetivos são muito superiores aos do IBAMA e ICMBio somados. Depois, as próprias PMAm divulgam precariamente os seus resultados, ou o fazem isoladamente, o que não apresenta, efetivamente, a dimensão nacional dos serviços ambientais que elas prestam, como por exemplo a reintrodução de espécies apreendidas ao seu habitat natural. Por fim, elas tampouco se articulam com as suas congêneres de outros estados da federação.
Fazer um resgate histórico neste momento é importante para descontruir algumas falácias que vêm sendo propagadas por algumas pessoas e instituições, em um momento político sensível, polarizado por ideologias, bem como quando se discute no Congresso Nacional um projeto de lei que propõe inserir as PMAm explicitamente como integrantes do Sisnama. Assim, considerando o exposto até aqui, emergem algumas importantes conclusões.
A primeira, é que as PMAm são instituições de Estado, e não de Governo, e vêm prestando relevantes e anônimos serviços ambientais ao País. Sendo assim, elas não podem ser consideradas milícias ambientais como querem fazer crer algumas pessoas.
Segundo, o seu papel na conservação da natureza brasileira vem sendo desconsiderado quando afirmam essa posição, bem como o que aquele projeto de lei propõe é nada mais do que reconhecer de direito o que de fato tem sido realizado por elas por mais de setenta anos, ininterruptamente.
Terceiro, faz-se necessária uma discussão técnica, desprovida de paixões e ideologias, considerando, primordialmente, o interesse maior em jogo, qual seja, a conservação da natureza. Há que se avaliar como uma força de aplicação da lei dessa dimensão, com um efetivo tecnicamente profissional e operacionalmente capacitado, e com um desdobramento nacional, se integrando ao Sisnama, potencializaria as ações de seus órgãos, em especial na Amazônia, onde mais de oitenta por cento da região é de competência de fiscalização estadual. Estas são as premissas que devem nortear os legisladores e todos aqueles que debatem a conveniência e a oportunidade de se inserir as PMAm, de forma clara, como integrantes do SISNAMA.
Fonte: O Eco
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