É preciso que a sociedade esteja atenta não só para resistir às ações insustentáveis do atual governo e seus atos antidemocráticos, que se manifestam de forma negacionista e disfuncional, mas também para conter os sinais desta mesma disfuncionalidade que se acentua no âmbito da Câmara dos Deputados
“O Ministério Público deve atuar como defensor do Estado Constitucional de Direito, de forma livre, firme e corajosa na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis, contra quaisquer pessoas físicas ou jurídicas, independentemente de sua condição econômica ou política” (Moção de Repúdio contra a PEC 05/21, em trâmite na Câmara dos Deputados).
A sociedade brasileira está se mobilizando contra a edição da Proposta de Emenda à Constituição 5/2021 (PEC 5/21), que tramita na Câmara dos Deputados. A PEC 5/21 ataca a independência do Ministério Público, pretendendo alterações nocivas na composição do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o que resultaria na captura da instituição por forças políticas exteriores.
A Câmara Federal não só propõe uma medida eivada de vícios e de inconstitucionalidades, mas demonstra também tendência ao retrocesso democrático, contrariando princípios fundamentais de transparência, elementos essenciais ao Estado Democrático de Direito.
Recentemente o arcabouço conceitual democrático do mundo civilizado avançou com a edição do Acordo de Escazú, que estabelece diretrizes para o aprimoramento de mecanismos de acesso à informação, participação pública e acesso à justiça em assuntos ambientais.
Na contramão civilizatória, o Brasil passa por uma série de retrocessos normativos. Durante a gestão do governo Jair Bolsonaro, foram notórios e explícitos os ataques à normativa ambiental no âmbito infralegal, cometidos pelo Ministério do Meio Ambiente, por meio de decretos, resoluções, portarias e despachos. A prática foi confessada, em reunião ministerial, pelo ex-ministro Ricardo Salles, ao admitir o uso de pareceres e canetadas para fazer “passar a boiada”.
É lamentável que essa prática predatória, que ocorria na área infralegal, tenha migrado para o âmbito do legislativo, o que foi possível após um amplo acordo político que ocorreu com farta distribuição pelo Executivo de cargos e outras benesses para o chamado “Centrão”. A prática de abrir porteiras prossegue. Ganhou espaço no Poder Legislativo, e outras facilitações ocorreram atingindo o licenciamento ambiental e permitindo a complacente anistia ao desmatamento e à invasão de terras pública — e consequentemente estimulando a prática da grilagem.
Nota-se que o Legislativo nacional segue minado por interesses econômicos das bases agrárias pouco lúcidas que também dão suporte ao Executivo. A realidade demonstra que a sociedade brasileira deve redobrar as atenções sobre o Legislativo, já que as recentes decisões sinalizam estado de alerta. Dentro desta tendência, não é surpresa que a Câmara dos Deputados avance contra o fiscal da lei, o Ministério Público. Em vez de propor maior transparência e o aprimoramento da instituição, como promotora da cidadania e responsabilizadora dos agentes públicos, ocorre o contrário: a PEC 05/21 busca destruir a essência do MP, sua independência, na qual repousa a garantia da defesa da coisa pública.
Entre as pérolas destrutivas da PEC 05/21, há pretensão de que a corregedoria do CNMP seja indicada pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal; vedar aos membros do Ministério Público “a interferência na ordem política e nas instituições constitucionais com finalidade exclusivamente política”; e ainda outorgar poderes ao CNMP para rever e desconstituir atos dos membros do MP.
Os contornos de atuação do CNMP estão perfeitamente definidos na Constituição Federal (controle administrativo e financeiro), o que já foi pacificado pela jurisprudência do STF (MS 28028) e não podem representar controle sobre sua atividade-fim, preservando-se, portanto, a independência funcional dos membros do Ministério Público.
Em nota emitida na última quinta-feira, dia 8 de outubro, 37 subprocuradores gerais da República afirmam que, se a PEC 05/21 for aprovada, irá representar “a desfiguração do Conselho Nacional do Ministério Público como órgão de controle externo isento, descaracterizando sua destinação constitucional autêntica e reduzindo-o a sombrio instrumento de opressão e intimidação dos membros do Ministério Público”.
A PEC 05/21 abriga em suas entranhas a tentativa disfarçada de uma intervenção branca. De forma sub-reptícia, pretende submeter o Ministério Público aos caprichos políticos do Poder Legislativo, o que, por si só, já é inconstitucional, uma vez que constitui ofensa ao princípio constitucional da independência institucional do Ministério Público. Para aumentar o descalabro, a PEC 05/21 sequer foi submetida à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, onde certamente já entraria natimorta.
Como consequências da PEC 05/21, a nota dos procuradores-gerais aponta:
“A eliminação da salutar prática democrática do Ministério Público, ao permitir que cada procurador-geral escolha 2/3 do Conselho Superior do órgão, asfixiando todo debate criterioso e ocasionando uma tendenciosa hegemonia na revisão dos atos e na punição dos membros de cada Ministério Público, com o agravante de se dar a um CNMP alterado a possibilidade de revisão dos atos de cada Conselho, golpeando a autonomia institucional; a interferência da política, ao permitir que o corregedor nacional do Ministério Público – que será também o vice-presidente do CNMP – seja indicado pelo Congresso, e que o CNMP revise ou anule atos do Ministério Público que “interfiram” na ordem pública, ordem política, organização interna e independência das instituições e órgãos constitucionais – conceitos cujas inexatas fronteiras autorizariam todo tipo de repreensão; e a criminalização dos membros do Ministério Público, já que, instaurada sindicância ou processo disciplinar contra membro do Ministério Público, a prescrição interromper-se-á até a decisão final – critério mais implacável que o vigente aos processados em ações penais. Notam, de resto, que a PEC 05 ostenta o sugestivo atributo de não adicionar benefício algum ao Estado de Direito e à cidadania – antes, ao reverso –, a revelar seu real propósito e a prenunciar seu destino rumo à rejeição”.
Submeter o CNMP à discricionariedade do Legislativo seria ato temerário, conforme demonstram recentes e sucessivas votações antiambientais manobradas por três quartos da composição da Câmara dos Deputados. Há demonstração de que a absoluta maioria dos parlamentares apresenta desinteresse em defender prioritariamente o patrimônio ambiental público, na defesa dos direitos difusos.
Importante pontuar a necessidade de o Legislativo brasileiro não retroceder, mas sim avançar em conceitos de democracia e sustentabilidade. Na última sexta-feira, a Comissão de Direitos Humanos da ONU reconheceu, sob aplausos, “que a degradação ambiental, as mudanças climáticas e o desenvolvimento insustentável constituem algumas das mais urgentes e sérias ameaças à capacidade das gerações presentes e futuras de usufruir dos direitos humanos, incluindo o direito à vida”.
Diante da atual realidade civilizatória da emergência climática e de uma intensa crise ambiental, aumenta a exigência dos mecanismos de controle social e do fortalecimento dos meios democráticos. É preciso que a sociedade esteja atenta não só para resistir às ações insustentáveis do atual governo e seus atos antidemocráticos, que se manifestam de forma negacionista e disfuncional, mas também para conter os sinais desta mesma disfuncionalidade que se acentua no âmbito da Câmara dos Deputados.
Diante destes fatos, mais de uma centena de instituições, cientistas e pesquisadores da área ambiental estão manifestando seu repúdio contra a PEC 05/21, por meio de uma moção com robustos argumentos técnicos e jurídicos. Espera-se assim a obtenção de um mínimo de bom senso da Câmara dos Deputados, com a imediata retirada do projeto da pauta de votação.
A realidade atual, especialmente nesta fase pós-Covid 19 e de crise ambiental, exigirá qualidade na gestão pública brasileira. Manter e aprimorar salvaguardas, conforme expressa o Acordo de Escazú, representa livrar a sociedade e as instituições do obscurantismo rumo à transparência, permitindo ao povo o acesso à justiça. Isso não se fará sem um Ministério Público que, como fiscal da Lei, possa contar com a independência necessária ao exercício de seu papel institucional como promotor da cidadania e defensor do Estado Democrático de Direito.
Fonte: O Eco
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