O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, pediu demissão do cargo, e deixa o governo do presidente Jair Bolsonaro após 2 anos e meio à frente da pasta. No comando do Ministério desde o primeiro dia do mandato de Bolsonaro, a saída de Salles já havia sido especulada e cobrada inúmeras vezes em resposta às infames “boiadas” eternizadas na fala e nas ações do agora ex-ministro. Resumir a jornada de Ricardo Salles como ministro do Meio Ambiente entre 2019 e junho de 2021 é falar de dezenas de ações tachadas de retrocesso, é lembrar o estrangulamento dos órgãos ambientais sob tutela do MMA; o esvaziamento dos colegiados; a asfixia dos mecanismos de fiscalização e dos fiscais; o avanço recorde do desmatamento na Amazônia; a tentativa de esvaziar normas de proteção mais rígidas como a Lei da Mata Atlântica e do estabelecimento de Áreas de Preservação Permanente; a contínua defesa de madeireiras e do agronegócio; a reestruturação profunda no Ministério do Meio Ambiente e das autarquias vinculadas e a tentativa de extinguir o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Salles promoveu a maior e mais profunda desregulamentação do setor ambiental do país e por isso já tem seu lugar garantido na história.
Veja:
A chegada: acusação sem provas
A frase sobre “passar a boiada”, vinda a público no final de maio de 2020, coroou uma gestão marcada por crises criadas pelo próprio Salles, a começar pelo histórico dele na Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo, que terminou com uma condenação em primeira instância por improbidade administrativa, em dezembro de 2019, revertida no Tribunal de Justiça de São Paulo, que o inocentou em 04 de abril de 2021.
No Ministério do Meio Ambiente, a primeira crise formal foi a acusação, feita por Salles, de que o contrato de aluguel de veículos para o Ibama tinha um “valor elevado”. O episódio terminou com a antecipação da saída da então presidente do Ibama, Suely Araújo, que entregou o cargo, não sem antes deixar claro sua opinião sobre as ilações.
“A acusação sem fundamento evidencia completo desconhecimento da magnitude do Ibama e das suas funções. O valor estimado inicialmente para esse contrato era bastante superior ao obtido no fim do processo licitatório, que observou com rigor todas as exigências legais e foi aprovado pelo TCU. Os valores relativos aos veículos para fiscalização na Amazônia são custeados pelo Fundo Amazônia, gerido pelo BNDES”, disse Suely, por meio da nota.
Na mesma linha, ainda em seu primeiro mês no gabinete, Ricardo Salles suspendeu por 90 dias todos os contratos e parcerias com ONGs sem apresentar nenhuma justificativa maior do que a “necessidade de reexame” dos contratos. A perseguição de Salles com as ONGs ganhou contornos ainda mais dramáticos com a paralisação do Fundo Amazônia – o maior programa de pagamento por serviços ambientais do país – sob a alegação, nunca comprovada, de que existiriam irregularidades e “inconsistências” no uso dos recursos, que em parte são destinados a projetos executados por ONGs. A “auditoria” que o ministro alegou ter feito para basear suas acusações nunca foi publicada.
O Fundo Amazônia foi criado em 2008, através de um decreto presidencial, com o objetivo de captar dinheiro como contrapartida à redução do desmatamento na Amazônia e a consequente redução dos gases de efeito estufa. Ao longo de quase 12 anos, o Fundo Amazônia destinou R$ 1,86 bilhão para apoiar 103 projetos. Desse montante, 61% foram destinados para financiar projetos de órgãos públicos (federais, estaduais ou municipais), 38% de ONGs e 1% de outros países. Desde 2010, o Fundo passa por auditorias anuais.
Funcionando sem muitos problemas por mais de dez anos, o Fundo foi paralisado após o governo forçar uma mudança brusca na maneira como funcionava, feita sem consulta e anuência dos principais países financiadores: Noruega e Alemanha. Mesmo com tentativas, inclusive com a saída de Salles de cena e a entrada do vice presidente Mourão nas negociações, o Fundo segue paralisado.
Política Nacional de Lixo do Mar transformada em “depois a gente vê isso aí”
Antes mesmo de completar 3 meses de governo, o ministro Ricardo Salles publicou sua primeira obra: o lançamento do Plano Nacional de Lixo do Mar, que veio a público após o governo extinguir, seis semanas antes, a comissão que deveria aprovar o plano. A justificativa era a necessidade de inclusão de outros órgãos integrantes “da nova estrutura governamental”. O documento, lançado com pompa em evento na Ilhabela, no dia 22 de março de 2019, tinha 41 páginas “cuja qualidade, detalhamento, é algo sem precedentes na história do ministério, da agenda política, com prazo, com metas, com índice de resultado, demonstrando que o tempo do discurso passou. Agora é hora da ação”, discursou o ministro. Na verdade, tratava-se de um arremedo de plano, que possuía metas vagas, sem diagnóstico preciso e sem orçamento definido.
Revogaços
Em abril de 2019, o governo extinguiu todos os colegiados da administração pública federal instituídos por decreto ou ato normativo inferior. No âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA), não estão incluídos o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen) e o Comitê Gestor do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC), instituídos por Lei. Os demais colegiados que incluem, por exemplo, o Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC), o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg) e sua respectiva Comissão (Conaveg), a Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) e a Comissão Nacional de Florestas (Conaflor), foram extintos, assim como todos os demais colegiados não instituídos por Lei.
Por paralisar políticas públicas ou por pressão social, alguns conselhos foram recriados antes da COP de Madri, todos menores e com quase nenhuma participação da sociedade civil. São nos conselhos e comissões que políticas públicas são discutidas e aprovadas. Ao recriá-las com quase nenhuma representação da sociedade civil, retirando cadeiras da academia, de órgãos não ligados ao setor econômico e das minorias, o governo garante voto sem discussão. Com a aparência de legalidade e legitimidade, a proposta passou pelo conselho criado para deliberar o assunto.
Nessa leva de esvaziamento, a mais famosa foi a diminuição do Conselho Nacional de Meio Ambiente, o Conama. A composição do colegiado foi de 93 para apenas 23 membros. Todos os setores representados no colegiado foram modificados e só Ministérios ligados ao desenvolvimento e economia mantiveram cadeira. Resultado: no ano passado, em reunião extraordinária, o Conama revogou duas resoluções normativas que protegiam áreas de preservação permanente (APPs) de restingas e manguezais, e outra sobre licenciamento para irrigação. A validade da reunião foi cassada pelo STF.
A alteração na composição e funcionamento do Conama também está sob análise de inconstitucionalidade no STF. O julgamento está suspenso desde março, devido a pedido de vista feito pelo ministro Nunes Marques.
Intervenção no Fundo Clima
O Ministério do Meio Ambiente usou toda a verba disponível em 2020 na modalidade não reembolsável do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (FNMC) em um único projeto. Sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 17 de janeiro deste ano, a Lei 13.978 – Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2020 – reservou o montante de R$ 6,2 milhões para o FNMC apoiar sete projetos. Porém, o valor integral destinado à modalidade não reembolsável do fundo foi direcionado somente ao projeto Lixão Zero, do governo de Rondônia, estado governado pelo coronel da PM Marcos Rocha (PSL), um dos mais fiéis aliados do presidente Bolsonaro. ((o))eco revelou essa história em três reportagens especiais.
Se o desmatamento não cai, implique com quem faz o monitoramento
O ministro Ricardo Salles implicou com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que faz o monitoramento do desmatamento na Amazônia, desde que assumiu. Em janeiro de 2019, o ministro chegou a anunciar que criaria um sistema de monitoramento em tempo real para ajudar na fiscalização do Ibama, pela bagatela de 100 milhões, que sairia do Fundo Amazônia. O sistema já existe desde 2004, realizado pelo INPE.
Depois, a briga foi porque o governo achava que tinha alguém do INPE passando números para a imprensa sobre os dados do desmatamento (o sistema é atualizado automaticamente na internet, pois os dados são públicos). Na briga do ex-presidente do INPE, Ricardo Galvão, com o presidente Bolsonaro, Salles teve o papel de fingir ensinar monitoramento para o órgão que criou as bases do monitoramento de florestas por satélite. Toda discussão sobre como os dados do sistema de alerta de desmatamento são imprecisos e não podem ser usados para falar de desmatamento caiu por terra quando saiu os dados oficiais do Prodes, indicando que o desmatamento havia subido 29,5% entre agosto de 2018 e julho de 2019, alcançando 9.762 km².
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Militarização e reestruturação
Desde que assumiu, Salles colecionou indicações de policiais militares, em especial aqueles de São Paulo, das Forças Armadas ou do Corpo de Bombeiros, para cargos técnicos e de chefia nos órgãos ambientais e dentro do Ministério. A militarização do Ibama e do ICMBio, com PMs no comando de superintendências estaduais e de unidades de conservação, foi uma pauta constante na leitura do Diário Oficial da União. Em novembro de 2020, uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que tais nomeações seriam irregulares. Ainda assim, pouca coisa mudou no modus operandis de nomeações. O atual presidente do ICMBio, por exemplo, Fernando Lorencini, é um coronel da Polícia Militar de São Paulo, no cargo desde setembro de 2020. Na chefia do Ibama, após o afastamento do advogado Eduardo Bim como resultado da Operação Akuanduba, está outro PM de São Paulo, o coronel da reserva Luiz Carlos Hiromi Nagao.
O controle dos órgãos ambientais na base da patente não foi a única ação de Salles para garantir que os servidores de ICMBio e Ibama iriam “andar na linha” determinada por ele. Estabelecida nos primeiros meses da sua gestão, a lei da mordaça, como ficou conhecida, centralizou a comunicação das autarquias nas mãos do Ministério do Meio Ambiente e proibiu que servidores falassem com a imprensa sem autorização prévia. Mais recentemente, em março deste ano, uma portaria determinou que toda produção científica dos servidores do ICMBio precisa ser autorizada por superiores antes de ser divulgada. O ato foi visto como censura e criticado fortemente por organizações socioambientais e associações de pesquisa.
Outra grande mudança promovida durante a gestão de Salles no ICMBio foi a reestruturação da autarquia, com a substituição das 11 Coordenações Regionais (CR) por 5 Gerências Regionais (GR), uma para cada região, e a ampliação dos Núcleos de Gestão Integrada (NGIs), que concentram a administração de diversas unidades de conservação num único centro.
O próprio Ministério do Meio Ambiente também passou por uma – ou melhor, duas – reestruturação geral, em agosto de 2020. As mudanças incluíram a criação de uma secretaria voltada para a Amazônia, pasta que foi chefiada por Joaquim Álvaro Pereira Leite, o novo ministro do Meio Ambiente. À época, a reestruturação foi defendida pelo Ministério como uma medida para “trazer maior transparência, agilidade e eficiência na gestão ambiental”, mas especialistas classificaram as mudanças estruturais como meramente “cosméticas”.
Futuro do ICMBio em risco
Ricardo Salles pode ter deixado o Ministério do Meio Ambiente, mas ações iniciadas com ele seguem em pauta para seu sucessor. Uma das principais é o futuro do ICMBio. A fusão da autarquia com o Ibama foi o tema de um Grupo de Trabalho criado por Salles em outubro de 2020 e renovado até junho deste ano. As reuniões, feitas sem transparência, como revelou reportagem feita por ((o))eco, já ocorreram 26 vezes. O prazo para os trabalhos do grupo se encerrou no começo de junho, mas nenhum parecer foi divulgado até então. A incerteza sobre o futuro da autarquia que cuida de 334 unidades de conservação em todo o Brasil, ao contrário de Salles, não deve ir embora do Ministério tão cedo.
Fonte: O Eco
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