O Ministério do Meio Ambiente publicou nas últimas semanas dois documentos no âmbito do programa Floresta + que tratam do ainda complexo tema do mercado de carbono e dos pagamentos por serviços ambientais, com a finalidade de fomentar “uma nova economia verde”, mas que, na prática, têm o objeto de fortalecer a participação do setor privado no corte de emissões de carbono. Em um cenário de fragilização das políticas públicas com tal fim e de aumento das taxas de desmatamento e queimadas, a medida foi vista com cautela por especialistas.
Na última segunda-feira (5), o Ministério do Meio Ambiente (MMA) publicou uma nota técnica sobre a implementação do programa Floresta+Carbono, que tem por objetivo “engajar o setor privado na conservação de floresta nativa via compensação de emissões no mercado voluntário”.
O mercado voluntário de carbono surgiu de forma paralela aos mercados regulados, para permitir que recursos financeiros possam fluir a partir de empresas, instituições e indivíduos (compradores) – que de forma autônoma e voluntária determinam metas próprias de compensação de emissões de gases de efeito-estufa (GEE) – para desenvolvedores e implementadores de projetos (vendedores) que produzam resultados verificados de mitigação da mudança do clima.
Na nota técnica, o MMA salienta que, considerando o potencial de mitigação do setor de uso da terra e florestas no Brasil – setor responsável por mais de 50% do total das emissões brasileiras – “o contexto apresenta uma oportunidade valiosa para que se possa atrair grandes investimentos em projetos que atuem diretamente no território, prestando serviços ambientais de monitoramento, vigilância e proteção ambiental das áreas […]”
Mais adiante, o MMA diz que a Comissão Nacional para REDD+ “reconhece a contribuição do mercado voluntário de carbono florestal para redução do desmatamento e degradação da vegetação nativa, visando fomentar a mobilização de capital privado para a estruturação de capacidade e de projetos para a comercialização de créditos de carbono de floresta nativa. O fomento ao mercado voluntário não implica em qualquer regulamentação governamental e funciona nos moldes do livre mercado conforme a oferta e demanda, com os critérios postos por certificadoras, desenvolvedores e compradores”.
Segundo a pesquisadora Biancca Scarpeline de Castro, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e co-autora do livro “Quanto Vale o Verde”, ao deixar nas mãos da iniciativa privada a regulamentação deste mercado, o governo, de certa forma, se isenta de suas responsabilidades nas ações que levam à redução de emissões.
“Parece uma tentativa de reforçar a ideia de estado mínimo, ou seja, se o estado não agir, a preservação ambiental vai ocorrer sozinha, nos termos do livre mercado. Contudo, isso não é verdade. Se não há fiscalização sobre os impactos ambientais dos agentes privados e se não há fiscalização sobre as obrigações ambientais desses mesmos agentes, bem como sua punição pelo descumprimento da legislação ou pelo dano ambiental, por que esses agentes privados vão usar seus recursos para a preservação ambiental? Caso o estado não esteja presente garantindo a maior estabilidade política acerca da aplicação e cobrança (enforcement) da regulamentação ambiental, o mercado voluntário permanecerá muito pequeno, com resultados pouco significativos”, explicou, a ((o))eco.
No entendimento da pesquisadora, o documento do MMA traz outro ponto controverso: a possibilidade de que o mercado voluntário seja englobado no programa de recebimento de doações internacionais que ocorre de governo para governo e é conhecido como REDD – sigla que significa Redução de Emissões Decorrentes do Desmatamento e Degradação Florestal –, e prevê o pagamento internacional para países em desenvolvimento que reduzem o desmatamento.
“A nota técnica a nº 353/2021-MMA parece beneficiar grupos privados em detrimento da sociedade como um todo. Isso porque quando a Comissão Nacional para REDD+ reconhece e inclui projetos empreendidos pela iniciativa privada dentre os possíveis beneficiários das doações internacionais a título de REED, o governo, que era o principal beneficiário e utilizava os recursos para políticas ambientais, abre mão de uma parte dos mesmos”, diz.
Além disso, Biancca ressalta as fragilidades da Nota Técnica, como falta de clareza sobre quais instâncias governamentais seriam responsáveis pelo recebimento dos recursos e posterior repasse para a iniciativa privada e quais os critérios para aprovação e fiscalização dos projetos voluntários.
A falta de clareza também é apontada pela especialista sênior em Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo. “A modalidade Floresta + Carbono é praticamente indecifrável”, diz.
Segundo ela, o arcabouço normativo que baseia o programa é muito frágil, pois não esclarece adequadamente a modalidade, não a regula, nem a fomenta. A própria Nota do MMA diz que aguarda a futura consolidação do regramento de mercados internacionais com base no Acordo de Paris (artigo 6º), o que pode acontecer na conferência do clima em Glasgow, a COP-26, em novembro deste ano. “Ou seja, não vai acontecer nada por enquanto no Floresta + Carbono, no máximo registro de alguns projetos”.
Floresta+ Empreendedor
Também no âmbito do Programa Floresta+, o MMA lançou, no final de março passado, a modalidade “Floresta+Empreededor”, que, em tese, possui como diretriz incentivar o empreendedorismo voltado ao pagamento por prestação de serviços ambientais e prevê uma parceria com o Sebrae para a capacitação de “líderes empreendedores”. Segundo documento do MMA sobre a modalidade, tal capacitação seria voltada para pequenos e médios empreendedores (pessoas jurídicas) com o objetivo de disseminar o conceito de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) e “gerar demanda relevante para atingir todo o volume de área preservada no Brasil”.
O Extrato de Cooperação Técnica entre governo federal e Sebrae foi publicado no último dia 30, mas não há qualquer detalhamento de como se dará esta parceria. ((o))eco entrou em contato com o MMA e o Sebrae perguntando, entre outros questionamentos, como o governo pretende englobar os pequenos agricultores, comunidades indígenas e tradicionais detentoras de terras passíveis de receber programas de PSA, considerando que a maioria destes não têm pessoa jurídica constituída; se as capacitações serão gratuitas ou não; e de que forma os serviços oferecidos pelos empreendedores capacitados serão pagos.
O MMA não respondeu aos questionamentos. O Sebrae informou que ainda não tinha resposta para tais questões e que “O Sebrae e o Ministério do Meio Ambiente estão desenvolvendo um plano de trabalho para a implementação das ações previstas na parceria. A expectativa é de concluir o plano em abril e iniciar as atividades do Projeto “Floresta +” em maio”.
Para Suely Araújo, as recentes movimentações na esfera federal em relação ao assunto são um indicativo de que o governo está se preparando para um mercado internacional de carbono bastante livre. “Enquanto isso, o projeto piloto Floresta+ original, com recursos de US$ 96 milhões do Fundo Verde do Clima, permanece sem direcionar recursos de PSA dois anos após sua assinatura”, complementa. “O que estão esperando para iniciar o pagamento das comunidades tradicionais e pequenos agricultores?”, questiona.
Transferência de responsabilidade
Enquanto aposta nas iniciativas privadas para a preservação, o governo brasileiro segue sem cumprir metas de emissões estabelecidas em acordos internacionais e com uma política de desmonte ambiental, o que estimula a ilegalidade e tem como resultado o aumento das atividades que impulsionam as emissões de GHG no país, como o desmatamento.
O Brasil é o sexto maior emissor mundial de gases de efeito estufa e possui um grande papel na luta contra as mudanças climáticas. Por isso, a revisão da chamada Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) brasileira, prevista no Acordo de Paris para acontecer ao final de 2020, frustrou expectativas.
Ao contrário do que era esperado, a NDC apresentada em 8 de dezembro por Ricardo Salles representou um retrocesso em relação à NDC fixada em 2015. A nova meta brasileira traz quatro pontos problemáticos, sendo o primeiro deles a permissão de emissões mais altas em 2025 e 2030, em relação ao que havia sido fixado na meta anterior.
Por conta de uma mudança na estimativa de emissões no ano-base, o Brasil se permitiu chegar a 2030 emitindo até 400 milhões de toneladas de CO2 a mais do que o projetado em 2015. A meta apresentada pelo governo brasileiro é consistente com taxas de desmatamento na Amazônia na casa de 10 mil quilômetros quadrados, o que significa, na prática, ser possível atingi-las mesmo deixando a floresta queimar nos níveis de hoje.
Além disso, o Brasil eliminou do anexo da NDC qualquer menção de zerar o desmatamento ilegal na Amazônia até 2030, como era antes previsto, e tirou do texto a parte que dizia que o país não exigia nenhum aporte externo de recursos para cumprir a redução planejada de emissões. O novo texto afirma apenas que “a partir de 2021, o Brasil demandará pelo menos US$ 10 bilhões por ano para lidar com os numerosos desafios que enfrenta”.
De fato, o ministro Ricardo Salles já afirmou que o país só reduzirá o desmatamento se começar a receber recursos. Há mais de um mês, o governo de Jair Bolsonaro vem conversando com o governo de Joe Biden e a expectativa é que um acordo entre os dois países seja anunciado na cúpula do clima convocada pelo presidente americano para os próximos dias 22 e 23.
Esta negociação “a portas fechadas” fez com que um grupo de 199 organizações da sociedade civil brasileira publicasse, na última terça-feira (6/4), uma carta ao governo americano, alertando sobre o risco que um acordo de cooperação entre os Estados Unidos e o governo Bolsonaro traz ao meio ambiente, aos direitos humanos e à democracia.
O posicionamento do Brasil em relação a suas metas nacionais no acordo climático internacional já havia provocado a manifestação contrária do setor ambientalista. No final de janeiro deste ano, uma coalizão de mais de 1.300 organizações ambientalistas entregou uma carta à ONU pedindo que o governo brasileiro fosse responsabilizado pelo retrocesso na meta nacional para o Acordo de Paris.
Na carta, a rede Climate Action Network pedia que a convenção destacasse publicamente os pontos de retrocesso na NDC apresentada pelo governo brasileiro e que a ONU apelasse ao Brasil para apresentar uma nova meta aprimorada ainda este ano, de forma a cumprir os requerimentos do Acordo de Paris.
O anúncio de metas insuficientes por parte do governo brasileiro acontece em meio a um cenário catastrófico para o meio ambiente.
Nos últimos anos, o país tem assistido a uma escalada nos índices de desmatamento e queimadas na Amazônia. Segundo números do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), entre agosto de 2019 e julho de 2020 a floresta amazônica perdeu 11.088 km², o maior número em 12 anos. A cifra também é 2,8 vezes superior à meta fixada pela Política Nacional de Mudança do Clima para 2020, de 3.925 km², prevista na lei 12.187 de 2009.
E não há perspectivas de que o quadro melhore em 2021. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), já aprovado e esperando sanção presidencial, prevê o repasse de apenas R$ 1,72 bilhão para o Ministério do Meio Ambiente este ano, o menor valor em 21 anos, o que foi considerado por especialistas como mais uma manifestação do descaso do atual governo com a área ambiental.
Segundo o IPCC, o painel do clima da ONU, a humanidade precisa reduzir suas emissões em 45% até 2030, se quiser ter pelo menos 66% de chance de cumprir o objetivo mais ambicioso do Acordo de Paris e limitar o aquecimento global neste século em 1,5ºC em relação à média pré-industrial. Isso significa cortar 7,6% as emissões globais de todos os anos entre 2020 e 2030.
Apesar de a pandemia da Covid-19 ter dado um respiro acidental ao derrubar as emissões globais em cerca de 7%, para que estas emissões sigam em queda seria preciso que as metas nacionais tivessem um ganho brutal em ambição. Não foi o que aconteceu. Um relatório lançado no final de fevereiro pela Convenção do Clima das Nações Unidas (UNFCCC) sobre as novas metas de combate ao aquecimento global apresentadas por 48 países no ano passado, entre eles o Brasil, mostrou que o aumento de ambição no corte de emissões de carbono prometido para 2030 foi de apenas 2,8%.
A implementação das NDCs atualmente sobre a mesa nos levaria a um mundo 3ºC mais quente, com o Brasil sendo um grande responsável por este cenário.
Fonte: O Eco
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