Conferência da ONU que começa neste domingo em Glasgow, na Escócia, vai debater novas metas e estratégias para frear o aumento da temperatura da Terra. Brasil chega ao encontro desacreditado e com aumento de emissões em 2020, apesar da pandemia
Com a pandemia do coronavírus finalmente sob controle, as atenções do mundo se voltam, mais uma vez, para aquela que muitos consideram ser a maior ameaça que paira sobre o futuro da espécie humana: as mudanças climáticas globais. Milhares de ativistas, cientistas, empresários, diplomatas e lideranças políticas das menores e maiores potências econômicas do planeta vão se reunir em Glasgow, na Escócia, a partir deste domingo (31 de outubro), para a vigésima-sexta Conferência das Partes (COP26) da Convenção do Clima da ONU, com o desafio de talhar uma nova aliança global de combate ao aquecimento global.
As COPs são realizadas anualmente desde 1995, com exceção de 2020, quando a conferência teve de ser cancelada em função da pandemia. Delas nasceram acordos emblemáticos, como o Protocolo de Kyoto, que estabeleceu as primeiras metas de redução de emissões de gases do efeito estufa, no início deste século, e o Acordo de Paris, forjado em 2015, que tem como missão segurar o aquecimento do planeta “bem abaixo” de 2 graus Celsius e, preferencialmente, abaixo de 1,5 ºC, “reconhecendo que isso reduziria significativamente os riscos e impactos das mudanças climáticas”.
As 25 conferências realizadas até agora foram fundamentais para chamar a atenção do planeta para a gravidade do problema; mas os resultados práticos obtidos até o momento são pouco animadores. As emissões de gases do efeito estufa continuam subindo, a temperatura do planeta continua aumentando, os efeitos das mudanças climáticas estão cada vez mais graves, o desmatamento de florestas tropicais voltou a crescer (especialmente no Brasil) e a economia mundial segue fortemente viciada no uso de combustíveis fósseis e outras práticas insustentáveis de consumo e desenvolvimento.
“Seja qual for o resultado, será uma reunião muito importante”, disse ao Jornal da USP o pesquisador Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP, especialista em física atmosférica e mudanças climáticas globais. “A tarefa que temos pela frente é gigantesca e o problema não vai ser resolvido em uma única reunião, mas é importante que haja uma sinalização clara da comunidade internacional sobre uma série de coisas que precisam acontecer daqui para frente. E rápido.”
As atenções deste ano estão voltadas, principalmente, para as novas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), que são os compromissos formalmente adotados por cada país para descarbonizar suas economias ao longo das próximas décadas. As primeiras NDCs foram apresentadas a partir de 2015, no bojo do Acordo de Paris, com o compromisso de serem revisadas a cada cinco anos, no sentido de torná-las mais ambiciosas, à luz de novas evidências científicas. Até o fim desta COP, portanto, espera-se que todas as 192 “partes” (países ou blocos signatários do acordo) apresentem suas novas NDCs.
O que a luz da novas evidências científicas nos mostram é assustador. A situação atual é a seguinte: pelos cálculos do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), a temperatura média do planeta já aumentou 1,1ºC desde o início da era industrial e, para manter esse aquecimento global abaixo de 2ºC, o mundo precisa reduzir suas emissões de gases do efeito estufa em 25% até 2030, comparado ao que era emitido em 2010 (ou em 50%, para respeitar o limite de 1,5ºC, o que muitos já consideram ser uma missão impossível). As NDCs apresentadas até o início deste mês, porém, projetam um aumento de 16% até 2030, o que resultaria num aquecimento de 2,7ºC até o fim deste século, segundo um Relatório Síntese divulgado pela Convenção do Clima no último dia 25. Ou seja, o que os países estão prometendo fazer é muito menos do que precisa, de fato, ser feito para frear o aquecimento e impedir uma derrocada climática de proporções potencialmente catastróficas para a saúde econômica, ambiental e social do planeta.
Coletivamente, esses novos compromissos representam uma redução adicional de emissões de apenas 7,5% em relação às primeiras NDCs protocoladas desde 2015, segundo o último Relatório sobre a Lacuna de Emissões, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), divulgado no dia 26. Em outras palavras: a lacuna entre onde estamos e onde deveríamos estar diminui um pouco, mas continua enorme. Num cenário muito otimista, considerando a implementação completa de tudo o que está previsto nas NDCs, mais as outras metas que vem sendo anunciadas por diferentes países — de se tornarem “carbono neutros” em 2030, ou próximo disso —, seria possível restringir o aquecimento global a 2,2ºC, o que já implicaria em mudanças climáticas gravíssimas, segundo o IPCC. A distância entre o anúncio e o cumprimento de metas é longo, com pouca margem para otimismo. A maioria dos países do G20 (grupo das maiores economias do mundo, incluindo o Brasil) está longe, ainda, de cumprir seus compromissos para 2030.
Ainda assim, há quem tenha esperanças de que essa nova COP inaugure um processo de engajamento político mais efetivo no combate ao aquecimento global, em função das lições aprendidas durante a pandemia e do agravamento das próprias mudanças climáticas, que se tornaram muito mais perceptíveis nos últimos anos — na forma de tempestades, estiagens, ondas de calor e outros eventos climáticos extremos, cada vez mais agudos e frequentes. O professor Pedro Leite da Silva Dias, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, é um desses otimistas cautelosos: “A percepção do risco determina o resultado das negociações, e acho que a percepção do risco hoje é muito maior, em função do que vem acontecendo nesses últimos anos”, afirma Dias, que é meteorologista e acompanha os trabalhos da Convenção do Clima desde os seus primórdios — sempre com muitas frustrações. “Talvez seja ingenuidade de cientista”, brinca ele, “mas é algo que me deixa mais esperançoso daqui para frente.”
Outra grande novidade deste ano é o retorno dos Estados Unidos à linha de frente da diplomacia climática, após quatro anos de negacionismo do governo Donald Trump, que chegou a retirar o país do Acordo de Paris. O enfrentamento das mudanças climáticas é uma das principais bandeiras do presidente Joe Biden, que logo no primeiro dia de sua gestão colocou os EUA de volta no acordo e anunciou um plano multibilionário de descarbonização da economia americana. Os Estados Unidos são o segundo país que mais emite gases do efeito estufa atualmente, atrás da China, e o primeiro do mundo em emissões per capita.
“Não tenho grandes esperanças de que saia alguma decisão importante dessa reunião, mas estou esperançoso de que haja um direcionamento positivo, puxado pelos Estados Unidos”, avalia o meteorologista Tercio Ambrizzi, professor do IAG e coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Mudanças Climáticas da USP. Ele ressalta que as projeções científicas sobre a progressão e os efeitos do aquecimento global têm se mostrado extremamente confiáveis, o que não deixa dúvidas sobre o risco de se manter na trajetória atual de desenvolvimento. “Temos que trabalhar muito mais para reduzir emissões”, diz. “O aquecimento continua e já estamos vendo o aumento dos extremos climáticos e seus impactos na sociedade.”
As emissões globais de dióxido de carbono (CO2), principal gás do efeito estufa na atmosfera, caíram 5,4% em 2020, em função da pandemia de covid-19 — que forçou a paralisação de diversas atividades econômicas e, consequentemente, reduziu o uso de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão mineral) durante esse período —, segundo o Pnuma. Mas nem isso foi suficiente para frear o aumento da concentração de CO2 na atmosfera, que chegou a 413,2 partes por milhão (ppm), segundo o último Boletim de Gases do Efeito Estufa, da Organização Meteorológica Mundial, divulgado no dia 25.
“A última vez que a Terra experimentou uma concentração comparável de CO2 foi entre 3 e 5 milhões de anos atrás, quando a temperatura era 2ºC a 3ºC mais quente e o nível do mar estava 10 a 20 metros mais alto do que agora. Mas não havia 7,8 bilhões de pessoas [no mundo], então”, declarou o secretário geral da OMM, Petteri Taalas.
O caso do Brasil
O Brasil chega à COP26 com sua imagem ofuscada pelo aumento do desmatamento na Amazônia e pelo negacionismo científico do presidente Jair Bolsonaro — que se negou a realizar a COP25 no Brasil, em 2019, e que não participará presencialmente desta conferência em Glasgow, “por motivos de agenda”, segundo sua secretaria de governo. Os primeiros dois anos do governo ficaram marcados na diplomacia climática internacional pelo negacionismo do então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e pela arrogância do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que deixaram uma péssima impressão na comunidade internacional. Para esta conferência, os ministros são outros, mas as políticas do governo continuam as mesmas, caminhando na direção oposta do resto do mundo, segundo especialistas.
Segundo o Pnuma, o Brasil é o único país, até agora, que revisou sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) para emitir mais carbono, em vez de menos, comparado ao que havia sido originalmente proposto. A meta principal não mudou: reduzir as emissões totais de gases do efeito estufa em 43% até 2030, comparado ao que o País emitia em 2005. O problema é que a linha de base mudou. Na primeira NDC, apresentada à Convenção em setembro de 2016, a estimativa era de que o Brasil emitira 2,1 bilhões de toneladas de gás carbônico equivalente (GtCO2e) em 2005. Já na NDC revisada, apresentada em dezembro de 2020, esse valor foi recalculado para 2,8 GtCO2e, com base em uma nova metodologia; mas a meta de redução não foi alterada na mesma proporção, permitindo que o País chegue a 2030 emitindo 400 milhões de toneladas de CO2 equivalente a mais do que estava previsto na NDC original, como explica esta análise do Observatório do Clima. É o que os especialistas passaram a chamar de “pedalada de carbono”, confirmada agora no relatório de Lacuna de Emissões do Pnuma. (O programa da ONU calcula uma pedalada um pouco menor, da ordem de 300 milhões de toneladas de CO2 equivalente.)
Também na contramão do mundo, as emissões de carbono do Brasil cresceram 9,5% em 2020, apesar da pandemia, segundo o mais recente relatório do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima, divulgado na última quinta-feira (28). A causa principal do aumento não poderia ser outra: desmatamento. Segundo o relatório, elaborado por pesquisadores de diversas organizações não-governamentais, a emissão de gases do efeito estufa oriunda de mudanças no uso da terra e florestas no Brasil aumentou quase 24% em 2020, enquanto que as emissões geradas pelo setor de energia caíram apenas 4,5%. Muita coisa parou de funcionar no País durante a pandemia, mas não o desmatamento. Só o estrago feito na Amazônia, segundo o SEEG, lançou mais carbono na atmosfera em 2020 do que a Alemanha inteira.
São números que “completam o ciclo negativo do governo Bolsonaro”, segundo o secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini. “Tudo que o governo plantou em termos de destruição ambiental ele está colhendo agora, em forma de emissões”, disse Astrini, no evento de lançamento do relatório.
Suzana Kahn Ribeiro, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente do comitê científico do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), classificou os dados como um “retrato do atraso” do Brasil, não só com relação ao enfrentamento das mudanças climáticas, mas também à adaptação do seu modelo de desenvolvimento às exigências do mundo atual. “A gente não está se ligando nem numa transição energética nem tecnológica, que é para onde o mundo está caminhando”, disse. “Vamos ficar a reboque das nações que se modernizaram.”
Artaxo acredita que esses 9,5% de aumento trarão muita pressão sobre o Brasil em Glasgow. “Nenhum país vai querer colocar dinheiro no Brasil para reduzir desmatamento com um quadro desses pela frente”, diz o pesquisador, ressaltando que o país não depende de recursos estrangeiros para proteger a floresta, pois já fez isso com muita eficiência no passado, utilizando apenas recursos próprios.
Assim como fez na última COP, em 2019, o governo Bolsonaro deverá condicionar suas ações de combate ao desmatamento e redução de emissões ao recebimento de ajuda financeira externa. “A expectativa, sinceramente, é que vamos passar vergonha de novo”, diz o professor Pedro Luiz Côrtes, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, que conversou sobre o tema com o Jornal da USP e tratou do assunto em sua coluna semanal na Rádio USP (ouça a entrevista aqui). Segundo ele, o governo já viaja para Glasgow com a “desculpa perfeita” para não fazer o que precisa ser feito. “Vai pedir um dinheiro que sabe que não vai ser dado, e depois dizer que não agiu porque não recebeu a ajuda necessária”, diz. “O governo Bolsonaro não tem absolutamente nenhuma credibilidade para pedir seja lá o que for na COP.”
O Programa Nacional de Crescimento Verde, lançado pelo governo no dia 25, é “mais uma fake news” da gestão Bolsonaro, segundo Côrtes. “É um governo que vive de falsos planos, falsas expectativas e nenhuma realização.”
Ao contrário do que se costuma dizer, quando se leva em conta as emissões por desmatamento e da agropecuária, o Brasil é um dos países que mais contribuem para o aquecimento global. A posição no ranking varia dependendo de como é feita a conta, mas fica sempre entre os primeiros, ao lado de China, Estados Unidos, Rússia, Índia e Indonésia. Mesmo na contabilidade per capita (que divide as emissões totais do país pela sua população), o Brasil fica entre os maiores poluidores do mundo. Segundo o SEEG, a média de emissão per capita do Brasil foi de 10,2 toneladas brutas de CO2 em 2020, comparado a 6,7 toneladas da média mundial.
Fonte: Jornal da USP
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