Uma das mais severas estiagens já registradas no Rio Negro, em Manaus, trouxe à tona um legado ancestral que, por muito tempo, permaneceu escondido sob as águas: artefatos rupestres com cerca de 2.000 anos.
As gravuras, que retratam rostos humanos, foram descobertas inicialmente em 2010, durante a última grande baixa do rio. São dezenas de rochas gravadas que normalmente estão submersas, mas que agora podem ser vistas e admiradas pelos habitantes locais.
Lívia Ribeiro, uma administradora local, contou à AFP que muitos manauaras, até o momento da revelação, consideravam as histórias sobre as gravuras como mero folclore. “Era quase uma lenda para nós, mas agora estamos diante dessas incríveis artes”, disse.
Apesar da fascinação com a descoberta, a seca que trouxe esses tesouros à luz é motivo de grande preocupação. Lívia expressa temores compartilhados por muitos: “Se essa seca continuar nesse ritmo, temo que não teremos mais o rio em nossa cidade em 50 ou 100 anos”.
Elas são uma expressão fortíssima de como esses povos viram e representaram elementos importantes de suas culturas. Esse complexo arqueológico se situa justo à frente do encontro das águas, lugar de muita potência em diversos sentidos, desde os tempos antigos até hoje em dia. Não à toa, Lajes foi o primeiro sítio arqueológico registrado em Manaus.
Helena Pinto Lima, doutora em arqueologia pela USP e pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi
Imagem de cabeça gravada no sítio arqueológico Lajes, em Manaus Foto: Valter Calheiros/Arquivo pessoal
Essa é a mais acentuada estiagem desde que se começou a registrar o nível do Rio Negro, em 1902. A situação levou à mobilização de ajuda emergencial para a região. Muitos barcos, que desempenham papel crucial no transporte de pessoas e mercadorias, estão atualmente encalhados. A incapacidade de navegar deixa os habitantes locais privados de bens essenciais e dos meios de ganhar a vida.
Especialistas atribuem a intensidade da seca a fatores como o fenômeno El Niño e o aquecimento do Pacífico Norte. Enquanto a população local e pesquisadores se maravilham com os antigos artefatos agora visíveis, a esperança é que se tomem medidas para mitigar as mudanças climáticas e proteger o ecossistema e a rica história da região.
Seca do rio Negro no sítio arqueológico Lajes, em Manaus – Foto: Valter Calheiros/Arquivo pessoal
Arte ancestral em Manaus: revelações da seca e legado dos primeiros habitantes
Artefatos rupestres descobertos na Praia das Lajes, em meio à estiagem, nos oferecem um vislumbre da arte e da cultura dos primeiros habitantes da região.
Jaime Oliveira, representante do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), relatou à AFP que os entalhes nas pedras são de imensa importância arqueológica. Essas gravuras foram descobertas em 2010, quando o Rio Negro atingiu um recorde anterior de baixa, expondo as pedras a uma profundidade de 13,63 metros.
Arqueólogo Jaime Oliveira é mestre em arquelogia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI) — Foto: Hariel Fontenelle
O que chama a atenção é a representação dominante de rostos humanos nas gravuras. Algumas imagens possuem formas retangulares, enquanto outras são ovais. Elas variam desde expressões que esboçam sorrisos até semblantes mais sinistros. Oliveira destacou que, apesar de se tratar de arte rupestre, as imagens têm uma ressonância contemporânea. “É um sítio que expressa emoções e sentimentos. Ressoa com obras de arte da atualidade”, afirmou.
Beatriz Carneiro, historiadora e também membro do Iphan, vê na Praia das Lajes um recurso inestimável para a compreensão dos primeiros habitantes da Amazônia. Segundo ela, esse é um campo ainda pouco explorado nos estudos acadêmicos. Entretanto, Beatriz lamenta as circunstâncias que trouxeram esse tesouro de volta à luz. Ela reforça que, além das dificuldades que a seca impõe à população local, o retorno das águas ao nível habitual é fundamental para a preservação dessas gravuras.
A descoberta reforça a riqueza cultural e histórica da região, mas também serve como um lembrete das mudanças climáticas e da necessidade de proteger e preservar o ecossistema amazônico e seus tesouros escondidos.
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