Um plano decenal de Desenvolvimento Sustentável para a Amazônia: Uma utopia em busca de uma solução

A Amazônia pode alcançar, em 15 anos, padrões de vida comparáveis aos do Sudeste? A resposta, para Paulo Roberto Haddad, está em um plano ousado, capaz de unir crescimento, inclusão social e preservação ambiental. Neste artigo, o ex-ministro propõe uma agenda de futuro que dialoga com os compromissos da COP30 e com as lições de décadas de experiências em planejamento regional.

Com um tom realista, mas alimentado pela força da utopia, Haddad aponta caminhos para que a região deixe de ser vista como fronteira de exploração e passe a ser centro de uma grande transformação sustentável para o Brasil.

É utópico. Talvez. Mas sem utopia ninguém muda o mundo

Será possível que, em um prazo de 15 anos, os brasileiros residentes nos nove Estados da Amazônia Legal possam ter as mesmas condições de vida, em média, que os brasileiros residentes no Estado de São Paulo têm atualmente? Neste texto, procuramos mostrar que a resposta é positiva, baseada em experiências de mais de 40 anos de trabalhos de consultoria na Região e na promoção de desenvolvimento de regiões brasileiras.

Segundo o IBGE, o Bioma Amazônia ocupa cerca de 49% do territóriobrasileiro. A Amazônia possui a maior floresta tropical do Mundo, equivalente a1/3 das reservas tropicais úmidas, que abrigam a maior quantidade deespécies da flora e da fauna sendo: mamíferos – 311; anfíbios – 163; répteis -550; aves – 1000; peixes – 3000; flora – 13.229. Contém 20% da disponibilidadede água doce e de grandes reservas minerais. O delicado equilíbrio de suasformas de vida é muito sensível à interferência humana, como ilustra o processo da intensa degradação ambiental da Floresta Prístina, ao longo dos últimos cinquenta anos, ordenada pela ação antrópica.

Um Bioma pode conter diferentes ecossistemas. A Amazônia contém trêsecossistemas: 1. Mata de Igapó – margens dos rios permanentementeinundadas, plantas adaptadas à umidade (hidrófilas); 2. Mata de Várzea –inundações em alguns períodos; 3. Mata; com toda diversidade de recursos naturais renováveis e não renováveis inigualáveis em escala mundial.

A Amazônia Legal é uma área que engloba nove Estados do Brasilpertinentes à Bacia Amazônica, instituída pelo Governo Federal visando a melhor planejar o desenvolvimentosocioeconômico da Região Amazônica. A área de abrangência da AmazôniaLegal corresponde às dos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, MatoGrosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, perfazendo umasuperfície correspondente a cerca de 61% do território brasileiro e com umapopulação estimada de 38 milhões de brasileiros (13% da populaçãobrasileira). Na classificação clássica de regiões (homogêneas, polarizadas, programadas), a Amazônia Legal é uma área-programa ou uma área de planejamento, a qual deve ser referenciada em todas as situações em que se trate de políticas de desenvolvimento regional.

As estimativas do PIB da Amazônia Legal mostram que é imenso o seu potencial produtivo, pois quando o Governo Federal iniciou sistematicamente o processo de planejamento de seu desenvolvimento, a partir do II PND do Governo Geisel, ocorreram melhorias da infraestrutura econômica e social da Região e a atração de grandes projetos de investimentos diretamente produtivos. A partir dos anos 1970, o PIB da Amazônia Legal saltou de 9,37% (1970) para 31,1% (2022) em relação ao PIB Total do Estado de São Paulo, o mais desenvolvido do País. Contudo os indicadores de pobreza e de extrema pobreza na Região ainda são muito dramáticos, podendo chegar a quase 50% no total da população em algumas das 9 Unidades de Federação.

Vista aérea da BR-319 atravessando a floresta amazônica, rodovia que liga Manaus a Porto Velho.
Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real.

O PIB da Amazônia Legal foi estimado em 1,112 trilhões de Reais em 2024, desde que mantida a sua posição relativa de 9,5% (valor de 2022) no PIB do Brasil igual a 11,700 trilhões de Reais (2024). A partir desse valor realizamos  inúmeros cenários de crescimento da Região, variando de 3% (cenário tendencial) a 7% (um novo ciclo de expansão); crescendo a 7% ao ano de 2025 a 2040, ou seja, em quinze anos a população da Amazônia Legal poderia atingir o PIB que o Estado de São Paulo tinha registrava em 2024 (3,282 Trilhões), um espelho das condições atuais de vida da população do Estado de São Paulo. Será viável um ciclo de expansão da Economia Amazônica que viabiliza o catch up com o desenvolvimento atual de São Paulo?

Uma leitura cuidadosa da história econômica do desenvolvimento dos Estados e das regiões brasileiras mostra que todas as vezes que os Governos Estaduais ou locais, apoiados pelos órgãos da Administração Direta e da Administração Indireta do Governo Federal, planejaram o processo de desenvolvimento de regiões com inquestionável potencial de desenvolvimento, conseguiram organizar e implementar um ciclo longo de crescimento com taxas anuais iguais ou superiores a 7%.Como exemplos: a nova industrialização dos Estados de Minas Gerais (a partir de 1968) e do Ceará (a partir de 1985), as áreas do Centro-Oeste e do Nordeste do Brasil que foram beneficiadas, a partir dos anos 1970, pela “revolução verde dos Cerrados”: Centro-Norte do Mato Grosso, Noroeste de Minas Gerais, Sul de Goiás, Rondônia, Gurguéia (PI), Balsas(MA), Mato Grosso do Sul, Triângulo e Alto Paranaíba em Minas Gerais, Oeste da Bahia, etc.

Em relação à Amazônia, há dois fatos a destacar: 1. são inumeráveis as oportunidades de investimentos diretamente produtivos, com base em vocações definidas historicamente ou em vantagens competitivas construídas socialmente, já identificadas nas áreas da Bioeconomia, em Grandes Projetos de Investimentos (GPIs), em novos negócios (terras raras), nas novas rotas da seda, etc.;

2. muitas dessas oportunidades têm sido tratadas como se a Amazônia fosse um mega almoxarifado de recursos naturais renováveis (madeira, alimentos, fibras, etc.) e não renováveis (minérios, metais, etc.) ou como um mega lixão onde as sociedades depositam (substâncias químicas nas bacias hidrográficas, por exemplo) ou de onde emitem ?(gases de efeito estufa, por exemplo) dos processos nãosustentáveis de produção, de consumo ou de acumulação de capital técnico.

Medida pelas taxas de crescimento do PIB, a economia da Amazônia vem tendo bom desempenho. Entretanto, a economia cresce, mas não se desenvolve. Uma sociedade se encontra em uma trajetória histórica de desenvolvimento sustentável quando a economia está crescendo de forma sustentada, sem ciclos alternados e recorrentes de expansão e de recessão, mas com progresso científico e tecnológico; quando os frutos do crescimento expressos nos níveis de renda e riqueza, estão distribuídos com inclusão social; e quando são adotados processos resilientes de preservação, de conservação e de reabilitação dos ecossistemas. Entre os muitos indicadores socioeconômicos e socioambientais que caracterizam o baixo nível de desenvolvimento sustentável da Amazônia Legal podemos destacar que, entre as 20 maiores favelas brasileiras, nove estão nessa Região sendo que entre essas a maior está em Manaus (AM) com 55.821 habitantes e que Belém, sede da COP30, tem mais de 50 por cento de sua populaçãomorando em áreas faveladas.

A COP 30 E OS COMPROMISSOS PARA O FUTURO DA AMAZÔNIA

No encerramento da COP30, o Governo do Brasil deverá assumir compromissos quanto ao futuro da Amazônia, particularmente em relação a processo de desenvolvimento sustentável da Região. Caso esses compromissos se limitarem ao objetivo de controle das mudanças climáticas em escala planetária, é possível que eles venham a encontrar muitos obstáculos para se tornarem realidade em um prazo razoável de tempo histórico, pois:

  1. em um ambiente mundial dominado por grandes conflitos bélicos, as políticas econômicas dos países mais desenvolvidos tendem a reescalonar os seus objetivos e metas, dando maior prioridade aos objetivos e metas de interesse nacional e menor prioridade à solução de questões de interesse global, como é o caso do aquecimento planetário;
  2. quando o principal player do comércio mundial desencadeia um processo de protecionismo econômico e de nacionalismo radical, propaga esse processo por muitos outros países sob a forma de retaliação ou de igual proteção das indústrias nacionais com solução prioritária para os problemas nacionais de interesse nacional; quebram-se assim os elos institucionais da solidariedade universal;
  3. o avanço dominante do “negacionismo relativo às questões das mudanças climáticas” em escala de sua dramaticidade em termos socioeconômicos e socioambientais com o avanço dos partidos políticos conservadores de direita, em cuja agenda prevalecem as decisões dolaissez-faire, laissez-passerou das políticas de “porteiras abertas”, destacando-se na realização da COP30 a antipolítica ambiental dos EE.UU., a segunda nação mais poluidora do Mundo depois da China.

A fim de que a discussão sobre o grau de implementabilidade dos compromissos a serem assumidos em Belém por uma centena de nações não caia nas atitudes panglossianas descritas por Voltaire onde “tout va bien pour le meilleur des mondes” ou nas atitudes pessimistas do capítulo das negativas de Brás Cubas, é preciso avaliar se as propostas finalísticas da COP 30 passam em um teste da Rede de Precedência, um teste da tempística (o tempo ótimo para a realização de algum objetivo ou meta), o qual constitui um dos progressos na metodologia moderna de planejamento através do que poderíamos chamar “elaboração do relatório de percepção”Esse relatório constitui uma avaliação prévia, sólida e realista sobre as efetivas possibilidades de um plano de vir a ser, de se concretizar ao longo do tempo.

Quais os conceitos básicos que devem nortear a construção de uma Rede de Precedência? Iremos ilustrar uma configuração dessa Rede a partir de experiências do SEBRAE com a assistência do BID e da PROMOS (uma instituição da Câmara de Comércio de Milão, dedicada à promoção das médias, pequenas e micro empresas). São mencionados três diferentes aspectos que compõem uma Rede de Precedência:

Sequênciadas ações: por sequência, entende-se o conjunto de ações e iniciativas que deveriam vir antes ou depois, e sua ordem de inserção no plano, com implicações relativas ao momento em que uma ação deve ser idealmente aplicada com relação a outras, que também deverão ser executadas. Esse deve ser o objetivo essencial de um bom cronograma, que será mais sofisticado e preciso quanto mais se tiver uma boa ideia de timing, uma conjugação entre o tempo certo requerido para cada ação e o momento ideal de sua execução.

Cadenciamento das ações: definido como a rapidez com que um sistema econômico real consegue se transformar, assimilar novas práticas, técnicas e atitudes e, assim, criar uma nova realidade. Esse conceito oferece aos planejadores condições de refletir sobre o ritmo dos diferentes componentes do plano.

Intensidade das ações: dimensionada pela concentração do uso de recursos (humanos, materiais, institucionais, etc.) no tempo. As intensidades das ações dependem de sua exequibilidade em razão da disponibilidade dos recursos, do grau de mobilização de atores sociais e protagonistas do plano e do estágio de evolução de seus componentes.

Foto aérea da cidade de Belém (PA). Apesar de pressão internacional. governo decide manter a cidade como sede da COP30.
Imagem aérea da cidade de Belém (PA). Foto: SEMAS/PA.

A REDE DE PRECEDÊNCIA: ALGUMAS ILUSTRAÇÕES

A incorporação da metodologia da Rede de Precedência nas etapas prévias à implementação das atividades programadas em um plano poderá dar uma perspectiva crítica sobre sua implementabilidade e evitar que o plano se transforme em um cemitério de obras não concluídas, paralisadas e sem as indispensáveis complementações. Vejamos algumas ilustrações:

No início dos anos 1980, o Polonoroeste, um programa de desenvolvimento regional integrado financiado pelo Banco Mundial, previa, além da pavimentação da rodovia Cuiabá-Porto Velho, um conjunto de projetos de desenvolvimento sustentável relativos à preservação dos ecossistemas nas suas áreas de influência, à questão cultural das comunidades indígenas, ao desenvolvimento do capital institucional regional, etc. Como o ritmo das empresas construtoras foi mais rápido nas obras da infraestrutura rodoviária do que o avanço na execução dos demais componentes, o Polonoroeste acabou por induzir um intenso processo de degradação ambiental (desmatamento, exploração predatória de cassiterita, etc.) no eixo amazônico de Cuiabá a Porto Velho,  que veio a ser reabilitado nas três décadas seguintes.

Da mesma forma, intensidades diferentes de execução de projetos, em função da disponibilidade de recursos ou do grau de mobilização dos atores locais, podem provocar efeitos não esperados. Por exemplo: experiências recentes de arranjos produtivos locais (APLs) de turismo no Nordeste brasileiro, que pretendem gerar emprego e renda em localidades específicas com valioso capital natural, podem estimular a migração de seus recursos humanos escassos e potencialmente empreendedores, se a intensidade do seu componente de treinamento e de capacitação for maior e mais rápido do que os investimentos nas redes de hospedagem, na infraestrutura econômica e social, em sua promoção onde serão geradas as novas oportunidades de emprego e renda. Foi o que ocorreu na primeira etapa do projeto de turismo sustentável dos Lençóis Maranhenses.

Na mesma direção, Joseph Stiglitz, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2001, ao avaliar as experiências das políticas propostas pelo FMI e pelo Banco Mundial para países emergentes*, afirma que programas bem sucedidos requerem cuidado extremo no sequenciamento – a ordem em que os programas ocorrem – e no seu cadenciamento. “Se, por exemplo, os mercados são abertos para concorrência muito rapidamente, antes que sólidas instituições financeiras sejam estabelecidas, então empregos são destruídos mais rapidamente do que novos empregos são criados. Em muitos países, erros no sequenciamento e no cadenciamento levam a desemprego crescente e a maior pobreza”. Em muitos projetos de investimentos, dá-se prioridade à aquisição de equipamentos sem se preocupar com a capacidade de gestão e a formação do capital humano nas localidades*.

O sequenciamento, o cadenciamento e a intensidade das ações de um plano ou de um projeto compõem os parâmetros básicos da sua Rede de Precedência. A construção de uma Rede de Precedência envolve não apenas a organização e a gestão de um cronograma físico-financeiro do plano ou projeto, mas a definição de critérios que possibilitem executá-lo no tempo ideal, com os melhores resultados possíveis.

Aparentemente, as fronteiras entre os três parâmetros de uma Rede de Precedência são fluidas, mas não quando se examinam situações concretas. Veja os dilemas presentes no Projeto de construção dos canais para a transposição do Rio São Francisco. Foi preciso decidir se as ações de revitalização do Rio devem preceder, em sequência, as ações da engenharia de obras dos canais, o que não é um problema apenas de fluxograma, mas de concepção fundamental do Projeto. Foi preciso decidir se o ritmo das obras dos canais devem estar condicionado (pela liberação de recursos, por exemplo) ao ritmo de avanço dos demais componentes do Projeto que garantam a sustentabilidade da biodiversidade do Rio. Foi preciso decidir se vale a pena intensificar (ou modular) recursos nos investimentos de infraestrutura do Projeto em ações que possam ter caráter irreversível para os ecossistemas da Bacia (princípio da precaução e do risco mínimo das políticas ambientais). Enfim, na construção da Rede de Precedência do Projeto, podem estar presentes dois amplos campos ideológicos do ambientalismo: o tecnocentrismo e o ecocentrismo; é fundamental, pois, que se observem as interdependências estruturais entre as diferentes etapas das diversas atividades das políticas, programas e projetos.

Há um grande risco político-institucional dos compromissos a serem assumidos pelos países que assinarem acordos na COP30 constatarem que os acordos podem não ser implementados da forma mais abrangente e efetiva por razões de rupturas na intensidade, sequenciamento e cadenciamento das ações programadas e negociadas.

Do lado brasileiro, os trabalhos realizados pelos nossos cientistas e analistas são de excelente padrão técnico, podendo-se afirmar que está bem definida a agenda do que fazer e como fazer para promover um processo de desenvolvimento sustentável na Amazônia.O ponto de estrangulamento político-administrativo está na crise fiscal e financeira pela qual passam os nossos três níveis de governo. O modelo de equilíbrio fiscal expansionista, que vem sendo adotado de uma forma ou de outra, desde 2014, no Brasil, restringe gastos públicos, limita ritmo de crescimento da economia, restringe a expansão da base tributável. Contingenciamentos e cortes dos gastos de custeios e de investimentos criam incertezas e descontinuidades nas etapas de implementação. Ao fim e ao cabo, acaba-se por não executar os cronogramas físicos e financeiros das ações programadas e, frequentemente, resultados finalísticos não são obtidos por se realizar de todas atividades apenas pouco de cada uma sem se obterem resultados finalísticos..

Não se trata,do lado brasileiro,de negar a relevância das ações programadas já definidas, mas sim de registrar a sua coevolução considerando a sua intensidade (políticas sociais compensatórias podem ser incapazes de provocar mudanças nos regimes de desigualdades, por exemplo), o seu sequenciamento (não basta realizar apenas aquelas atividades para as quais há recursos fiscais vinculados, por exemplo) e o seu cadenciamento(as flutuações e as instabilidades presentes na atual conjuntura da economia brasileira, por exemplo, podem tornar o ritmo das atividades errático e aleatório).

É imensa a lista de problemas sociais, ambientais e econômicos da Amazônia.Mas é também imensa a lista das potencialidades de desenvolvimento sustentável da Amazônia. É possível construir um modelo de desenvolvimento de longo prazo para a Região que integra três processos: crescimentoeconômico globalmente competitivo equidade social na distribuição da renda e da riqueza geradas, preservação, conservação e reabilitação dos ecossistemas. Essa construção deve ocorrer segundo um modelo de desenvolvimento endógeno, em um estilo de planejamento participativo e deplanejamento para negociação.

Philip Lawn* considera que, em um processo de desenvolvimento sustentável, há uma interdependência coevolucionária dos sistemas social, econômico e ecológico. Assim, ao buscar soluções para as mudanças climáticas do Planeta, as lideranças políticas empresariais e comunitárias devem estar atentas ao trilema global que deve presidir o desenvolvimento sustentável: crescer + distribuir + preservar.

São recomendações do Papa Francisco na Encíclica LAUDATO Si’, de setembro de 2015.A Encíclica defende uma Ecologia integral, uma vez que o ambiente humano e o ambiente natural se deterioram conjuntamente. Não estamos diante de duas crises separadas, uma ambiental e outra social, mas de uma crise que é, ao mesmo tempo, social e ambiental. “Estratégias para uma solução demandam uma abordagem integrada para combater a pobreza, restaurar a dignidade dos excluídos e, ao mesmo tempo, proteger a natureza”.

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Grande parte das áreas queimadas na Amazônia viram pastos. Foto: Getty Images.

AMAZÔNIA SEM UTOPIA: A GRANDE TRANSFORMAÇÃO.

Não se pode esperar que o processo de desenvolvimento sustentável da Amazônia venha a ocorrer através de ações isoladas, projeto por projeto; que os problemas estruturais da Região se equacionem através de ações ad hoc; que a questão da interdependência coevolucionária dos sistemas social e econômico e ecológico se resolvam pela soma das ações isoladas. Fica a impressão de que quando ao se resolver um problema, a trajetória de desenvolvimento vai avançando, quando, na verdade, muitas vezes quando se resolve um problema dois novos podem estar sendo criados. Não se pode ter ilusão pois até um relógio parado marca a hora certa duas vezes por dia.

O estilo de condução das políticas públicas para resolver os nossos problemas socioeconômicos e socioambientais tem sido, desde 2014, o que se denomina de ajustes incrementais. Segundo esse estilo de governar, mesmo sem uma visão do futuro, sempre que os formuladores das políticas públicas encontram um hiato ou um descompasso entre uma realidade observada e uma situação ideal, adotam, em seguida, medidas de comando e controle ou de mecanismos de mercado para preencher esse hiato. Ao se fechar um hiato, contudo, sempre se abrem outros; ao se resolver um problema, criam-se outros, e então esses passam, num momento seguinte, a serem percebidos politicamente como problemas e são realizadas novas tentativas com o objetivo de fechar os hiatos entre as situações ideais e a realidade.

Segundo Kenneth Boulding, esse estilo pragmático de governar, com foco no curto prazo e em ações casuísticas, pode ramificar-se quase indefinidamente, e há muitas situações em que se torna razoavelmente bem-sucedido como padrão de resolver problemas e mobilizar os potenciais de desenvolvimento de um país ou de uma região. E os gestores públicos se sentem gratificados com sua habilidade e pragmatismo quando vão vencendo as batalhas do dia a dia, em uma sequência interminável de novos problemas. Enfrentam uma avalanche de problemas, mas a cada dia bastam os seus cuidados.

A situação muda totalmente de figura quando a exaustão de um ciclo de prosperidade ocorre e a economia perde sua dinâmica de crescimento. O crescimento econômico não é um subproduto cronológico de um ajuste qualquer. Em um contexto no qual prevalecem, simultaneamente, uma crise social e uma crise ambiental, como é o caso da Amazônia, surgem problemas de grande dimensão, complexidade e transversalidade que podem não ser percebidos e muito menos resolvidos por nenhum protagonista ou instituição isoladamente, que se encontram, muitas vezes, autocentrados nos seus interesses específicos de curto prazo ou imediatistas.

Emerge, pois, a necessidade complementar de um novo e indispensável estilo de governar baseado em um enfoque de perspectiva ou de visão de futuro, através do processo de planejamento de longo prazo, no qual as ações programáticas sejam de natureza reestruturantes e não incrementais; vocacionadas para grandes mudanças e transformações econômicas, político–institucionais; inovadoras no sentido de buscar alternativas para a solução dos problemas estruturais. Esse novo estilo aparece nas experiências históricas de desenvolvimento de muitos países, com a denominação de Grande Transformação, organizada em um processo de planejamento de longo prazo.

Karl Polanyi, que analisou a Grande Transformação do capitalismo nos EE.UU. e na Suécia, a partir da crise de 1929, concluiu que: “A crença no progresso espontâneo pode cegar-nos quanto ao papel do governo na vida econômica. Esse papel consiste, muitas vezes, em alterar o ritmo de mudança, apressando-o ou diminuindo-o, conforme o caso. Se acreditarmos que tal ritmo é inalterável ou, o que é pior, se acreditarmos ser um sacrilégio interferir com ele, então não existe mesmo campo para qualquer intervenção”*.

A administração econômica do Governo Federal vem trabalhando,desde 2014,com o modelo de austeridade fiscal expansionista, o qual parte do esforço de equilíbrio das contas consolidadas do setor público e se apoia nas reformas da Previdência, do sistema tributário e do próprio Estado. Espera criar um ambiente de expectativas favoráveis e de incertezas mitigadas que poderiam induzir a retomada do crescimento econômico. Embora seja indispensável que se realize a consistência macroeconômica de nossa economia, a fim de que se elimine de vez o fantasma da inflação e se reverta a percepção de que o País caminha para a insolvência financeira, há ações programáticas fundamentais para que a atual década dos anos 2020 não se perca também em uma sequência interminável de ajustes de curto prazo.

O Brasil precisa voltar a crescer de forma sustentada e sustentável. E também de forma acelerada para cobrir as dívidas e os déficits socioeconômicos e socioambientais acumulados no passado. A nossa história mostra que os problemas sociais e econômicos podem ser melhor resolvidos quando o País está crescendo significativamente e não apenas através de espasmos ocasionais. A Amazônia tem condições socioeconômicas e socioambientais de contribuir significativamente para um processo de desenvolvimento sustentável do Brasil e até mesmo liderar esse processo, desde que as políticas, os programas e projetos estejam integrados em um Plano Decenal de Desenvolvimento Sustentável.

À medida que a economia cresce, dependendo do modelo de desenvolvimento adotado, é relativamente mais fácil utilizar o excedente econômico em expansão para financiar adequadamente as oportunidades de investimentos, gerando emprego de qualidade e renda. Torna-se mais fácil, também, ampliar e consolidar as transferências de renda das políticas sociais compensatórias para os pobres e os miseráveis, assim como as transferências fiscais para as áreas economicamente deprimidas. Mas, principalmente, que se concebam e implementem mudanças estruturais segundo os compromissos do País com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Não se pode esperar que essas transformações venham a ocorrer de ajuste em ajuste no curto prazo.

O papel do tempo na análise dos problemas econômicos sempre foi uma questão controversa. Em 1923, Keynes, procurava estabelecer uma noção clara do que seria o curto prazo. Para ele, no curto prazo, há um passado que já transcorreu e trouxe, para o presente, a acumulação de um estoque de capital físico (fábricas, áreas agricultáveis, infraestrutura econômica e social), um dado perfil de distribuição de renda e de riqueza, uma força de trabalho com diferentes qualificações, os fundamentos das instituições políticas e sociais e certo grau de degradação do capital natural, etc. Trouxe também, no caso brasileiro, problemas acumulados da crise social e da crise ambiental*.

Políticas econômicas de curto prazo devem ser operadas dentro das restrições impostas por um tempo histórico e irreversível. Entretanto, uma sequência quase interminável de políticas de estabilização, como vem ocorrendo nos últimos anos, pode impactar, através de efeitos inesperados, a distribuição funcional e pessoal da renda nacional, a estrutura e a qualidade da oferta de serviços públicos tradicionais, os níveis de riscos e de incertezas dos investimentos diretamente produtivos, etc. Ou seja, de ajuste em ajuste, o que se pensava ser tão somente políticas explícitas de curto prazo vai se tornando, silenciosamente, políticas implícitas de médio e de longo prazo. Parafraseando Keynes, de curto em curto prazo, no longo prazo estaremos todos mortos.

Como diz o poeta Mário Quintana: “O passado é lição para refletir. Não para repetir”. E a nossa lição é colocar em marcha um novo paradigma de desenvolvimento sustentável, cujas ações programáticas possam vingar em um ambiente macroeconômico de ajustes fiscais e financeiros, rigorosos e recorrentes. O que torna necessário resgatar as experiências de planejamento de longo prazo. Segundo Peter Drucker, o planejamento de longo prazo não lida com decisões futuras, mas com o futuro das decisões presentes.

Como, no Brasil, a maioria dos planos e políticas públicas elaboradas pelos governos não chega a ser implementada, não basta concebê-los adequadamente, com rigor técnico e participação dos que serão impactados pelos seus custos e benefícios, mas é fundamental também que tenham uma gestão eficiente e eficaz. Uma gestão que acompanhe os valores do milênio segundo Ítalo Calvino, leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência*.

Não se pode esperar que, de curto em curto prazo, as atuais políticas econômicas nos levarão ao tempo do desenvolvimento. Como diz Alice no País das Maravilhas: “Dizem que o tempo resolve tudo. A questão é: quanto tempo?”.

Concluindo: através da concepção e da implementação de um plano decenal de desenvolvimento sustentável, construído através das metodologias mais avançadas de planejamento e com base nos princípios da endogenia, da participação e da negociação política, será possível estruturar um novo ciclo de expansão econômica da Amazônia Legal e atribuir-lhe a meta de um PIB total em 2040 equivalente ao atual PIB total do Estado de São Paulo.


* PROMOS / SEBRAE / BID – Metodologia de desenvolvimento de Arranjos Produtivos Locais – Brasília, 2004, cap.5

Caporalli, R e Volker, P. Uma reflexão sobre o problema do tempo em projetos de desenvolvimento, SEBRAE, 2006

Joseph E. Stiglitz – Globalization and its discontents. Norton, 2003.

* Philip Lawn – Frontier Issues in Ecological Economics Parts I and II, EE, 2007.PNUD- TEEB, 4 volumes, Routledge, 2010.

* Karl Polanyi – A Grande Transformação, obra de 1944, Editora Campus

Mark Blyth – Great Transformations – Economic Ideas and Institutional Change in the Twenticth Century – Cambridge, 2011.

* Gilles Dostaler – Keynes et ses combats = Albin Michel, 2005

Robert Skidelsky – Keynes: the returno of the máater. Allin Lans, 2009: Money and Govement Penguin, 2019

* Ítalo Calvino – Seis Propostas para o Próximo Milênio, Dom Quixote, 2024. Ver também: Paulo R. Haddad – Meio Ambiente, Planejamento e Desenvolvimento Sustentável – Ed. Saraiva, 2015; e Amazônia: Crise Social e Crise Ambiental, Ed. Caravana, 2023; Três Ensaios Sobre a Economia Brasileira – Livro 1: A  Amazônia e as Ideologias Ambientalistas – Amazon, 2023.

Paulo Roberto Haddad
Paulo Roberto Haddad
Paulo Roberto Haddad é professor emérito da UFMG. Foi Ministro do Planejamento e da Fazenda no Governo Itamar Franco.

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