Onças-pretas do Cerrado: Mistério e fascínio no reino de Guimarães Rosa

No Cerrado brasileiro, onde os estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia se encontram, onças-pretas são surpreendentemente prevalentes, desafiando conceitos ecológicos e inspirando pesquisas. Esses felinos, embora ricos em mistério e ligados às obras de Guimarães Rosa, enfrentam ameaças crescentes de caçadores e desmatamento.

As onças-pretas, envoltas em enigmas semelhantes aos sertões retratados por Guimarães Rosa, desafiam o entendimento ecológico e governam uma região nomeada em homenagem ao renomado escritor brasileiro. Estes animais, extremamente raros e vistos como fantasmas, predominam no Cerrado, onde os estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia se cruzam, e ainda carecem de uma explicação para tal fenômeno.

População e distribuição

Estimativas sugerem que as onças de coloração preta ou melânica, devido à alta presença de melanina, formam cerca de 9% do total de onças-pintadas (Panthera onca). Contudo, no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, em Minas Gerais, uma região nomeada em referência à notória obra de Guimarães Rosa, e nas proximidades da Pousada Trijunção, na junção dos três estados, elas compõem entre 40% e 48% da população desta espécie.

Trilha no Morro Tres Irmaos Parque Nacional Grande Sertao Veredas. Foto de Ricardo Andrade
Trilha no Morro Três Irmãos, Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Foto de Ricardo Andrade

Esforços de pesquisa

Essa revelação veio através da dedicação e fascinação do biólogo Eduardo Fragoso, coordenador científico da ONG Onçafari, por estes felinos. O estudo é uma colaboração entre a Onçafari, a Trijunção e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), utilizando tanto armadilhas fotográficas quanto radiocolares com GPS.

Surpreendente concentração

Embora a área fosse já identificada como um possível habitat para essas panteras negras, o que realmente surpreende, conforme destaca Fragoso, é a concentração ser quase quatro vezes maior que as estimativas iniciais. Fragoso comenta: “Sempre quis estudar o Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Estava ciente da presença de onças lá, via seus rastros.”

Regiao onde as oncas pretas sao mais abundantes. Foto Editoria de Arte
Região onde as onças-pretas são mais abundantes. — Foto: Editoria de Arte

De acordo com Guimarães Rosa, a região é descrita como o lugar onde a “cangussu preta pisa em volta”. “Cangussu” é uma das denominações para as onças-pintadas. Fragoso iniciou seu estudo gradualmente em 2020, ouvindo os sons emitidos pelas onças. No entanto, foi apenas em 2021 que ele avistou sua primeira onça-preta, através das imagens capturadas por uma armadilha fotográfica.

Em 2022, com a ajuda de 34 armadilhas fotográficas, os primeiros resultados do trabalho de Fragoso começaram a surgir. Durante o período de janeiro de 2022 até agosto de 2023, foram registrados de 25 a 31 animais. A incerteza deste número ocorre devido à dificuldade em identificar as onças-pretas. Cada onça-pintada pode ser distinguida por suas rosetas ou “pintas”, que são tão únicas quanto impressões digitais. No entanto, em onças-pretas, essas rosetas são difíceis de identificar durante o dia. Curiosamente, é à noite que as onças-pretas se tornam mais visíveis, pois as rosetas são claramente visíveis no espectro infravermelho, captado pelas câmeras das armadilhas.

A onça-preta. — Foto: Editoria de Arte

Onças-pretas do Cerrado: Mistério e fascínio no reino de Guimarães Rosa
A onça-preta. — Foto: Editoria de Arte

Genética e adaptação ao meio ambiente

As onças-pretas têm rosetas, mas uma mutação genética causa uma maior pigmentação em seu pelo e pele. O gene responsável por essa coloração escura é dominante, o que significa que pelo menos um filhote de uma onça-preta acasalada com uma onça de coloração normal será preto. Isso levanta a questão de por que elas são tão raras. Uma razão é que a coloração escura não favorece aspectos ambientais, como a temperatura e a alta radiação solar, que aumentam o estresse térmico. Além disso, em campos abertos, elas se tornam mais perceptíveis para suas presas, comprometendo sua habilidade de caça por emboscada.

O enigmático Guirigó

No sertão de Rosa, no entanto, as coisas são diferentes. Os pesquisadores têm observado de perto um macho chamado Guirigó. Contrário ao personagem negro de “Grande Sertão Veredas”, a onça Guirigó não é um jovem, mas sim um macho mais velho e vigoroso.

Assim como o jovem personagem de Guimarães Rosa, Guirigó vive à margem das regras e se acomoda ao ambiente que o rodeia. Apesar de seu tamanho impressionante de 81 quilos, ele prefere os campos abertos e é uma visão marcante, com uma cabeça quadrada e olhos dourados que se contrastam com sua pelagem escura.

Guirigo no meio da vegetacao do Cerrado. Foto Eduardo Fragoso
Guirigó no meio da vegetação do Cerrado. — Foto: Eduardo Fragoso

Guirigó representa a onça-preta, ou pixuna, um personagem recorrente nas obras de Rosa. Em “Meu tio o Iauaretê”, que se passa em um sertão similar ao que Guirigó habita, as onças-pretas desempenham papéis significativos, com várias delas sendo mencionadas e descritas com características distintas e personalidades marcantes.

Onças no Cerrado

Guirigó e as demais onças do Cerrado, devido à sua raridade e misticismo, trazem à vida real o mundo imaginário de Rosa, desafiando cientistas e conservacionistas a decifrar o enigma das panteras negras do sertão.

— “Não temos certeza se o comportamento de Guirigó é representativo de todas as onças da região, mas é certamente intrigante,” observa Fragoso.

Surpreendentemente, a refeição favorita de Guirigó é o tamanduá-bandeira, um formidável e vistoso predador de formigas e cupins. Apesar de seu tamanho e garras afiadas, Guirigó, devido à sua robusta saúde, parece não ter problemas ao enfrentá-lo.

Distribuição das Onças-Pretas

Existem registros desses felinos em outras regiões do Cerrado, como Pirenópolis e Chapada dos Veadeiros, ambas em Goiás, e também há relatos no Jalapão, em Tocantins. Fragoso considera promissor o potencial de encontrar onças-pretas em áreas protegidas como o Parque Nacional das Cavernas do Peruaçu (MS), o Refúgio da Vida Silvestre das Veredas do Oeste Baiano (BA) e a Reserva do Desenvolvimento Sustentável Veredas do Acari (MG). Acredita-se também que haja uma considerável população desses animais na Amazônia, mas os estudos são escassos.

— “O problema principal é a contínua caça às onças em todo o Brasil. A impunidade é um grande desafio. No Cerrado, existem muitos caçadores, e as onças são frequentemente vistas como troféus. Embora o ICMBio combata essa prática, os caçadores são bem equipados e organizados, com armamentos caros”, salienta Cardoso.

Diante da constante ameaça de caçadores e do crescente desmatamento, animais em risco de extinção, como as onças-pintadas, encontram refúgio principalmente em áreas de conservação restrita. Como bem expressou Guimarães Rosa, para esses animais, “viver é muito perigoso”.

Matéria original de Um Só Planeta

Redação BAA
Redação BAA
Redação do portal BrasilAmazôniaAgora

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