Crime pode disseminar doenças entre populações selvagens, levar animais à extinção e ocasionar prejuízos ecológicos e à saúde humana. Todas as espécies são venenosas, alertam especialistas
Pesquisadores descobriram uma escalada do tráfico internacional de anfíbios em grupos de Facebook impulsionada por compras crescentes e falta de fiscalização sobre as Redes Sociais. O crime pode trazer espécies estranhas aos ambientes naturais e até disseminar doenças entre animais selvagens, causando prejuízos ecológicos e ameaçando a saúde das pessoas.
Ler sobre o tráfico de vida selvagem nos faz lembrar de bichos como onças-pintadas e tigres-de-bengala, peixes e aves da Amazônia e outros biomas, elefantes e rinocerontes. Mas nem os sapos e outros anfíbios escapam do crime. A busca por “animais diferentes” inclui espécies multicoloridas e de preferência pequenas para criação em cativeiro.
Assim, compradores ávidos para enjaular animais que viviam livres fizeram o número de espécies de anfíbios traficadas saltar seis vezes nos últimos 5 anos, quando comparado a análises de uma década. O aumento foi de 5 para 32 espécies comercializadas no período. Algumas têm longa história de tráfico, como a salamandra mexicana Axolote e a sul-americana perereca-da-folhagem.
Conforme o trabalho publicado hoje por cientistas brasileiros na revista Herpetological Conservation and Biology, o comércio de anfíbios ganhou espaço crescente em grupos abertos no Facebook. O crime também pode acontecer em grupos fechados e no espaço para compra e venda de produtos da plataforma, além de em canais semelhantes do mundo todo.
“Vendedores orientam interessados a entrar em contato para maiores informações. Alguns são cautelosos e nada comentam sobre a forma de aquisição do animal. Outros são mais abertos e compartilham informações sobre outras espécies à venda”, descreveu Isabel de Morais Máximo, do Laboratório de História Natural de Anfíbios Brasileiros da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
A especialista integra um time financiado por agências governamentais brasileiras atento ao tráfico de vida selvagem que também já pesquisou de sapos invasores cegos no arquipélago de Fernando de Noronha (PE) a doenças em rãs norte-americanas em criatórios comerciais ou livres na Mata Atlântica.
“Fizemos um primeiro levantamento no Orkut (2004-2014), a rede então mais usada por traficantes. Com apreensões recentes e uma espécie asiática localizada no Nordeste, refizemos a busca para tentar entender a fonte e o destino desses animais, e a rede social mais atraente foi o Facebook”, explicou Luís Felipe Toledo, doutor em Zoologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP).
A mídia social mais usada no Brasil é o Facebook, com 130 milhões de usuários, seguida por WhatsApp (120 milhões) e YouTube (105 milhões). O sapo encontrado em junho de 2020 no município de Campo Formoso, na Caatinga baiana, era de uma espécie nativa da Ásia e da Oceania (foto abaixo).
Depois de negociados eletronicamente, os anfíbios são trocados em estações de metrô e de trem e até em paradas de ônibus, sobretudo por dinheiro vivo. Tudo para evitar o rastreamento de transações bancárias ou por cartão de crédito. Alguns animais são despachados pelo Correio.
O trabalho revela que a maioria dos traficantes de anfíbios age desde os estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco. Cerca da metade das espécies vendidas são nativas e o restante vem do Exterior. Essas chegam ao Brasil em navios, aviões ou por estradas transfronteiriças.
“Estradas e portos possuem menos controle do que aeroportos. Por isso, o tráfico por essas vias tem se intensificado. Mais apreensões em rodovias e cobras exóticas encontradas em portos sugerem essa nova realidade”, ressaltou Reuber Brandão, professor de Manejo de Fauna e de Áreas Silvestres na Universidade de Brasília e colunista de O Eco.
Onde mora o perigo
Traficar animais e plantas para o Brasil ou daqui para outros países ameaça espalhar doenças e prejuízos ecológicos e econômicos. Além disso, muitas espécies estão ameaçadas de sumir do planeta e tantas outras são perigosas para as pessoas.
Os pesquisadores não encontraram em animais traficados ao Brasil um fungo que atingiu 501 tipos de anfíbios no mundo todo. Ele não contamina humanos e outros animais. Nem sempre um sapo infectado desenvolve a quitridiomicose, mas se adoecer, pode morrer ou contaminar populações inteiras.
“Como consequência do declínio dos anfíbios, (pode faltar alimento e) seus predadores e outros animais também acabam por declinar. Além disso, a incidência de malária e de outras doenças transmitidas por mosquitos (devorados por anfíbios) aumentou em países da América Central quase que imediatamente após a redução das populações de anfíbios”, ressaltou Felipe Toledo, da UNESP.
Mas além de doenças, salamandras, sapos e seus parentes são muito sensíveis à poluição de águas e solo e às mudanças de temperatura causadas pela crise do clima e desmatamento. O tráfico engrossa o caldo de ameaças aos anfíbios, mesmo que criminosos procurem mais aves, mamíferos, peixes e répteis.
“A movimentação ilegal de anfíbios pelo mundo pode estar disseminando doenças e potencializando declínios no Brasil. Por isso, não dá pra pensar no tráfico simplesmente do ponto de vista do indivíduo vítima do tráfico, mas também dos patógenos e do potencial que a espécie tem de se tornar invasora depois de solta no ambiente”, destacou Isabel Máximo, da UNICAMP.
Vendedores e compradores também correm risco ao manusear anfíbios, traficados ou não. O mais seguro é deixá-los livres na natureza.
“Todo anfíbio possui uma glândula de veneno e, portanto, algum grau de toxicidade, e estes supercoloridos (os mais procurados por traficantes), geralmente são os mais venenosos”, alertou Joice Ruggeri Gomes, doutora em Zoologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Falta controle
O esforço dos cientistas demonstra que rastrear vendedores e compradores ilegais não é uma missão impossível e pede um controle mais rigoroso sobre o tráfico nas Redes Sociais. Eles já encontraram 13 espécies de anfíbios brasileiros à venda em sites estrangeiros.
“Está muito fácil obter esse tipo de informação e gostaríamos de ver mais iniciativas policiais neste sentido”, pediu Isabel Máximo, da UNICAMP.
Apreensões ao longo dos anos também desenham rotas criminosas. Em 2016, uma pesquisadora foi detida em Guarulhos (SP) tentando embarcar rumo à França com dezenas de sapos, sem autorização. Em setembro passado, sapinhos ponta-de-flecha apreendidos em Miami (Estados Unidos) dois anos antes retornaram ao Brasil. Confiscos de espécies exóticas e nativas de anfíbios ocorrem pelo menos desde 1998.
Diante do crescente comércio ilegal de animais e suas partes, empresas de tecnologia e mídias sociais precisam adotar medidas mais severas contra o crime e governos devem mobilizar mais orçamento e pessoal às forças policiais e ambientais para enfrentar o problema. A fraca legislação brasileira mantém traficantes de vida selvagem longe das cadeias.
“Com poucos efetivo e recursos, como a polícia irá priorizar esse comércio ilegal em detrimento de um assalto, tráfico de drogas e violência doméstica. O ideal seria ter uma força tarefa dedicada a isso e com jurisdição nacional. A Covid-19 está aí para mostrar que devemos ter mais atenção com o comércio de fauna ilegal no mundo e em especial em países tropicais e megadiversos”, destacou Felipe Toledo, da UNESP
Trabalhos científicos apontam que o tráfico e o consumo de animais selvagens podem estar conectados ao surgimento de zoonoses como a Covid-19. Até sete em cada dez pandemias modernas atingiram pessoas por meio de vírus transmitidos por animais.
Questionado sobre suas políticas e medidas de combate ao tráfico de vida silvestre, o Facebook afirmou à reportagem que proíbe anúncios e outros conteúdos sobre comércio ou troca de animais silvestres ou ameaçados de extinção e que remove esses itens tão logo os detecte ou receba denúncias de usuários.
“Além disso, trabalhamos com especialistas e organizações de proteção de animais silvestres e estamos à disposição de autoridades para cooperar em investigações”, afirmou a empresa por meio de sua Assessoria de Imprensa no Brasil.
Nos últimos dois anos, 3,3 milhões de anúncios com espécies ameaçadas de extinção foram removidos ou bloqueados por grandes empresas de tecnologia e de comércio online. As quase 40 companhias da Coalizão para Acabar com o Tráfico Online de Animais Selvagens somam mais de 9 bilhões de contas de usuários.
Os padrões do Facebook também sugerem que não sejam publicados conteúdos sobre caça de animais ou de suas partes e quanto ao comércio ou troca entre pessoas físicas de outros bichos vivos “não ameaçados de extinção, com exceção do gado”. A política não cita a troca de mensagens entre usuários ou em grupos fechados, onde ilegalidades podem ocorrer.
Ao mesmo tempo, uma fonte da área de tecnologia que prefere não ser identificada por sua relação com as Big Techs, comentou que a plataforma não denuncia proativamente os criminosos que identifica e só fornece informações detalhadas sobre o tráfico quando são demandadas por autoridades públicas.
Na prática, o Facebook usa uma lei estadunidense que defende o livre discurso online para driblar globalmente medidas que trariam mais vigilância e reduziriam crimes como o tráfico de vida selvagem. “O Facebook é como um policial que fica do lado de fora de uma casa que está sendo roubada”, disse ao Mongabay a pesquisadora independente Patricia Tricorache.
E diante da expansão do universo do comércio online e da criatividade dos meliantes para seguir burlando a lei, especialistas avaliam que as ações oficiais e privadas contra o tráfico tocam apenas na “ponta de um enorme iceberg de ilegalidades”.
“A impunidade contra o tráfico e comportamentos repreensíveis na Internet estimulam nas pessoas uma perspectiva e um desejo de possuírem animais exóticos. A vaidade é um dos motores desse mercado. Os compradores dizem adorar animais, mas na verdade adoram possuir e exibir animais, causando impactos sobre populações naturais e alimentando uma longa cadeia criminosa”, finalizou Reuber Brandão, da Universidade de Brasília.
Fonte: O Eco
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