O Jogo do Poder e a Governança Corporativa-“Colegiados: inteligência coletiva ou teatro de aprovação?”

1- Poder e Influência na Governança Corporativa

Na governança corporativa, poder e influência não são sinônimos — mas caminham lado a lado. O poder está formalmente definido nos estatutos, regimentos e estruturas legais: quem delibera, quem aprova, quem responde juridicamente. Já a influência é mais sutil, porém decisiva: ela se manifesta nas relações, na cultura, na capacidade de orientar decisões mesmo sem voto.

Conselhos de Administração exercem poder deliberativo, mas muitas vezes são moldados pela influência de lideranças internas, acionistas relevantes ou conselheiros experientes. 

O Conselho Consultivo, por exemplo, não possui poder formal, mas aconselha e propõe diretrizes que podem ou não ser aceitas pelos sócios e administradores, podendo influenciar profundamente a estratégia quando há abertura para escuta e valorização da diversidade de pensamento. 

O Conselho fiscal, exerce o poder de fiscalização sobre os atos da administração, do cumprimento de obrigações e regulamentos contábeis, financeiros e estatutários, com prerrogativas e responsabilidades definidas nas normas estatutárias e no Código Civil e pode responder legalmente por imperícia ou omissão.

A governança eficaz reconhece que o verdadeiro impacto não está apenas em quem decide, mas em quem consegue provocar reflexão, ampliar perspectivas e gerar consenso. Por isso, cultivar ambientes onde a influência seja legítima, ética e estratégica é tão importante quanto definir claramente os centros de poder.

Em tempos de transformação, o equilíbrio entre poder e influência é o que diferencia conselhos “decorativos”, de conselhos que realmente agregam valor.

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Colegiados: inteligência coletiva ou teatro de aprovação?

Órgãos colegiados são estruturas compostas por múltiplos membros que atuam de forma conjunta na deliberação e orientação de decisões organizacionais. Sua atuação coletiva visa garantir pluralidade de perspectivas, maior transparência e mitigação de riscos. No âmbito da governança corporativa, esses órgãos são essenciais para assegurar o alinhamento entre os interesses dos acionistas, da alta gestão e da sociedade.

Os órgãos de Governança contribuem fortemente para fortalecer a confiança dos stakeholders e a perenidade da empresa.

Decisões Colegiadas – Facilitadores do Processo 

Sendo uma equipe multidisciplinar, o colegiado tende a adotar decisões muito melhores do que um grupo homogêneo.

Sendo a sinergia positiva, a capacidade de decisão qualitativa é maior do que a soma de seus membros, por mais brilhantes que sejam. A partir dos inputs levados ao colegiado, podem surgir alternativas inovadoras.

Para que as decisões colegiadas sejam mais seguras, recomenda-se a observância de comportamentos, habilidades e atitudes elencadas na Figura 1.

       Figura 1: Facilitadores do Processo Decisório – Órgãos Colegiados.

Fonte: Adaptado pela autora

Deveres Essenciais do Conselheiro

Os conselhos, devem cumprir três deveres essenciais:

  • Dever de Cuidar: Os membros devem estar comprometidos com as melhores práticas de governança, participando ativamente das reuniões e dedicando tempo para análise prévia dos materiais.
  • Dever de Obedecer: Os conselheiros devem seguir as diretrizes da organização, conhecendo e respeitando os documentos de governança, como o Código de Ética.
  • Dever de Lealdade: Os membros devem apoiar a missão da empresa, tornando-se embaixadores leais e comprometidos com os valores e objetivos organizacionais. A lealdade do conselheiro é devida aos objetivos da organização, independente dos interesses pessoais ou de quem o indicou.

 

Checklist Estratégico para Conselheiros 

Seu papel vai muito além da aprovação de decisões — é ser agente de futuro, guardião de legado e catalisador de consciência estratégica.

1. Mapeamento de Riscos – Antes de decidir, enxergue o que pode ruir.

Objetivo: Antecipar ameaças antes que se tornem crises.

Pergunta-chaveIntenção
Quem está fora da sala e deveria estar aqui?Incluir vozes diversas e evitar decisões enviesadas
Estamos ignorando riscos por apego ao que funcionou no passado?Evitar miopia estratégica
Há riscos reputacionais invisíveis?Proteger a imagem institucional
Estamos preparados para riscos climáticos, digitais e regulatórios?Garantir resiliência

2. Análise de Tendências – O futuro não grita — ele sussurra.

Objetivo: Ler o presente com olhos no futuro.

Pergunta-chaveIntenção
Quais movimentos sutis estão surgindo no horizonte e ainda não estamos enxergando?Captar mudanças emergentes
Estamos olhando para o futuro ou apenas reagindo ao presente?Evitar decisões reativas
Estamos olhando para a frente ou com os olhos somente no retrovisor?Evitar se prender ao que deu certo no passado.
A empresa está conectada com as novas gerações de consumidores e talentos?Garantir relevância
Estamos atentos aos movimentos do setor e às mudanças culturais que moldam o mercado?Nossas pessoas estão preparadas para novos desafios?Manter vantagem competitiva

3. Prospectar o Futuro – Decisões de hoje constroem o amanhã.

Objetivo: Tomar decisões com foco na sustentabilidade

Pergunta-chaveIntenção
Essa decisão fortalece a transparência ou concentra poder?Promover governança ética
Estamos construindo legado ou apenas resultados trimestrais?Pensar além do curto prazo
O que fazemos hoje será irrelevante em curto/médio prazo?Eliminar práticas obsoletas
Estamos ouvindo o mundo ou apenas o que queremos ouvir?Evitar viés de confirmação
  •  A Influência da Cultura Organizacional nos Órgãos de Governança

A cultura organizacional representa o conjunto de valores, crenças, práticas e comportamentos que moldam a forma como uma empresa opera e se relaciona com seus stakeholders. Essa cultura exerce influência direta sobre o funcionamento dos órgãos colegiados, podendo atuar como ponte ou muro para a competitividade e perenidade empresarial.

🧩 Cultura como Ponte

Quando a cultura organizacional valoriza a transparência, o diálogo, a ética e a meritocracia, os órgãos de governança tendem a operar com maior fluidez e eficácia. Nesses ambientes:

  • As decisões são tomadas com base em dados e argumentos, não em hierarquias rígidas.
  • Os conselheiros sentem-se à vontade para questionar, propor e colaborar.
  • Há abertura para inovação e adaptação estratégica.
  • A governança é percebida como um instrumento de fortalecimento institucional, não como mera formalidade.

🧱 Cultura como Muro

Por outro lado, culturas organizacionais autoritárias, centralizadoras ou avessas à mudança podem comprometer a atuação dos órgãos colegiados. Nesses casos:

  • O Conselho de Administração pode se tornar passivo ou meramente homologador.
  • O Conselho Consultivo pode ser ignorado ou subutilizado.
  • A falta de confiança e abertura dificulta o fluxo de informações.
  • A governança é vista como ameaça ao poder estabelecido, gerando resistência interna.

Alinhamento Cultural e Governança

Para que os órgãos colegiados cumpram seu papel estratégico, é fundamental que haja alinhamento entre a cultura organizacional e os princípios da boa governança. Isso inclui:

  • Incentivar a diversidade de pensamento e a escuta ativa.
  • Promover a accountability em todos os níveis.
  • Estimular o protagonismo dos conselheiros como agentes de transformação.

Empresas que cultivam uma cultura de governança sólida tendem a ser mais resilientes, competitivas e preparadas para os desafios do futuro.

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  • Governança e Perspectiva: A Importância do Olhar de Fora

“É preciso sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós.”
— José Saramago

A célebre frase do escritor português José Saramago sintetiza, com precisão poética, um dos maiores desafios da governança corporativa: a dificuldade de enxergar o estratégico quando se está imerso na operação. Em outras palavras, para compreender verdadeiramente os desafios da organização, é necessário afastar-se dela — emocional ou funcionalmente — e adotar uma perspectiva externa.

Essa reflexão ganha relevância especial no contexto dos conselhos de administração. Em muitas empresas, sobretudo aquelas com estruturas familiares ou culturas organizacionais consolidadas, os conselheiros internos enfrentam limitações naturais para exercer um olhar crítico e estratégico. A proximidade com a operação, os vínculos afetivos e a história compartilhada podem obscurecer a análise estratégica e comprometer a tomada de decisão.

Os conselheiros ligados à operação enfrentam um dilema: como pensar estrategicamente quando estão imersos no dia a dia da gestão? Como tomar decisões de longo prazo quando o foco está nos incêndios do curto prazo?

É nesse cenário que se destaca o papel dos conselheiros independentes. Ao trazerem experiências diversas, ausência de vínculos operacionais e liberdade para questionar, esses profissionais representam o “olhar de fora” necessário para ampliar horizontes, identificar riscos ocultos e propor caminhos alternativos. Sua presença no conselho não é apenas desejável — é estratégica.

Contudo, a efetividade dos conselheiros independentes se condiciona a um fator muitas vezes negligenciado: a cultura organizacional. Não basta incluir vozes externas; é preciso que essas vozes sejam ouvidas, respeitadas e integradas ao processo decisório. A governança eficaz exige abertura ao contraditório, valorização da pluralidade e disposição para o debate construtivo.

Em um mundo marcado por transformações aceleradas — ESG, inteligência artificial, novos modelos de negócio — a governança corporativa precisa ir além da formalidade. Deve ser instrumento de perenidade, inovação e responsabilidade.

A frase de Saramago, portanto, não é apenas uma metáfora literária. É um convite à reflexão profunda sobre como enxergamos nossas organizações. Porque, em última instância, só quem sai da ilha consegue vê-la por inteiro.

Conselheiros independentes — aqueles que vêm de fora, sem vínculos operacionais ou afetivos — representam esse olhar externo. Eles são os que “saem da ilha” e ajudam os demais a enxergar a ilha com clareza. Trazem perspectivas novas, questionam o status quo, e muitas vezes são os únicos capazes de apontar riscos invisíveis ou oportunidades negligenciadas.

Mas para que esse papel seja efetivo, é preciso mais do que presença: é preciso cultura organizacional que valorize o contraditório, que acolha o debate e que reconheça que a governança não é um teatro de aprovação, mas um espaço de construção coletiva.

Considerações Finais

A existência de órgãos colegiados bem estruturados é um diferencial competitivo para qualquer organização. O Conselho de Administração, com seu poder deliberativo e responsabilidade fiduciária, garante a integridade e a direção estratégica da empresa. O Conselho Consultivo agrega valor por meio de aconselhamento qualificado e visão externa.

O Conselho Fiscal, por sua vez, assegura transparência, controle legal e proteção dos interesses dos acionistas. A coexistência harmoniosa desses conselhos, aliada a uma cultura organizacional favorável, contribui para uma governança mais robusta, ética e eficaz.

“No fim, conselhos não são medidos pela pauta que aprovam, mas pelos riscos que conseguem antecipar e pelos futuros que ousam construir.”

Kátia Andrade
Kátia Andrade
Conselheira Independente Certificada | Fundadora & CEO da KMP Soluções em Gestão | Doutora em Gestão da Inovação | Bioeconomia | Governança | Pessoas & Cultura Palestrante | Escritora | Colunista

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