Em lugar do castigo, prêmios, os primeiros passos de entrega do açougue aos lobos famintos. Em tempo recorde, 20 mil garimpeiros já ocupavam a região sem impedimentos da ação pública. Dadas as dimensões continentais da Amazônia, a fiscalização, que é historicamente precária, sumiu. Depois de 2020, e com o esvaziamento geral provocado pela pandemia da COVID-19, os territórios indígenas Yanomami, entre outros, se transformaram em terra de ninguém.
Por Alfredo Lopes
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Coluna Follow-Up
Esta é uma pergunta que não pode ser respondida no calor da indignação e do oportunismo revanchista. E antes de ceder à tentação coletiva de vestir a toga dos juízes, é necessário que o país – em sua integralidade e sua história – ponha a mão na própria consciência, nos valores e crenças que descrevem mais de 500 anos de destruição, desprezo e indisfarçável eliminação étnica desde quando este Brasil se chamava de Terra da Santa Cruz. Seguimos, pois, numa encruzilhada: ou paramos para enfrentar como nação a própria consciência ética e étnica ou vamos transformar barulho em bravata até que o banzeiro da ritualística política se acalme outra vez. A realidade determina a mutação urgente entre intenção e mobilização da brasilidade.
É inevitável apontar o dedo na direção do governo Bolsonaro e suas trapalhadas predatórias no modo permanente no trato da Amazônia, seu bioma, nossa gente. Será hipócrita, porém, presumir sua única responsabilização. A comunidade internacional foi a primeira voz a contar para o país as trapalhadas do seu gestor, cuja maior façanha foi dividir o Brasil rapidamente e do pior jeito. Os ímpios e os escolhidos. Havia, também, no seu repertório simplista um plano com relação à Amazônia. Uma proposta com intenções de emenda à Constituição – um sonho de consumo até para setores do crime organizado – que não precisou ser aprovada para ser aplicada de supetão: a invasão de Terras Indígenas.
“A cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país” e “Nem um centímetro para quilombola ou reserva indígena” – foram frases ditas por Jair Bolsonaro ao longo de sua carreira política
De acordo com Agência Senado, em 6 de fevereiro de 2020, chegou ao Congresso Nacional, o projeto de Lei que permitia mineração, turismo, pecuária, exploração de recursos hídricos e de hidrocarbonetos. De iniciativa do governo federal, o projeto deveria regulamentar a exploração de terras indígenas (PL 191/2020), uma promessa de campanha do presidente da República. Mas não foi preciso esperar a Lei. Medidas administrativas se adiantaram com o esvaziamento da fiscalização, em termos de recursos orçamentários e humanos, e a eliminação das multas.
Em lugar do castigo, prêmios, os primeiros passos de entrega do açougue aos lobos famintos. Em tempo recorde, mais de 20 mil garimpeiros já ocupavam a região sem impedimentos da ação pública. Dadas as dimensões continentais da Amazônia, a fiscalização, que é historicamente precária, sumiu. Depois de 2020, e com o esvaziamento geral provocado pela pandemia da COVID-19, os territórios indígenas Yanomami, entre outros, se transformaram em terra de ninguém.
Isso, entretanto, foi a radicalização acelerada de um movimento secular. Em governos anteriores, algumas denúncias podem ser encontradas, confirmando a ineficácia de tímidas políticas públicas do Estado brasileiro no zelo das etnias originárias. Um exemplo disso é o relatório Violência Contra os Povos Indígenas, publicado pelo Cimi, Conselho Indigenista Missionário, que registrou, em 2014, 138 assassinatos e 135 casos de suicídios. Somente no Mato Grosso do Sul, foram 41 assassinatos e 48 suicídios. Vale a pena visitar as dramáticas crises sanitárias do Vale do Javari, mundialmente conhecido por Vale da Morte. Com a palavra o MPF do Amazonas em 2014, com as ameaças aos indígenas Korubo, grupo isolado.
Também em 2014, o Brasil instituiu uma Comissão Nacional da Verdade para investigar os delitos do Regime Militar, que comprovou que os indígenas foram vítimas de graves violações de direitos humanos merecendo reparação. Pela investigação concluiu-se que ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, esbulho de terras e remoções forçadas, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos, e sofreram tentativas de extermínio.
Essas informações fazem parte de um denso relatório da Rede de Cooperação Amazônica, A RCA, constituída em 2000, com a missão de promover a cooperação e troca de conhecimentos e experiências entre organizações indígenas e indigenistas, que atuam na Amazônia brasileira, para fortalecer a autonomia e ampliar a sustentabilidade dos Povos Indígenas no Brasil.
Em 2017, numeroso grupo de lideranças indígenas se reuniu no Estado do Acre para denunciar mais um retrato do descaso com a população indígena, sobretudo com a falta de assistência médica que estaria vitimando sobretudo crianças, como está ocorrendo agora na TI Yanomami. Ou seja, desde as anotações de Frei Gaspar de Carvajal, cronista da expedição capitaneada por Francisco de Orellana, anterior a Pedro Alvares Cabral, já ficou confirmado o processo histórico de genocídio indígena. O diário do religioso permite especular uma população de 6 milhões de indígenas na Amazônia no início do Século XVI. No alvorecer do Século XX, porém, já havia menos de 1 milhão.
O último grito de socorro, espalhado a partir da Amazônia Ocidental, neste 20 de janeiro de 2023, entretanto, trouxe à luz uma realidade que o Brasil insiste em empurrar para baixo do tapete não-indígena: está mais viva do que nunca a cultura civilizada (?) da depredação e do genocídio. Dezenas de cartas enviadas pela ONU ao governo brasileiro, cobrando o abandono indígena, nos últimos três anos, foram respondidas pelo padrão fakenews da desinformação que passou a ser predominante na gestão Bolsonaro. Um padrão que compõe a narrativa do ódio, da demonização de adversários e da absoluta recusa à interlocução construtiva.
Nessa onda, desavisados ou assumidos, segmentos crescentes da população naturalizaram o desembarque de estruturas sofisticadas de equipamentos e de transportes, energia e comunicação em terras indígenas. Na bagagem do desembarque perverso, doses cavalares de mercúrio, a droga contagiosa da destruição, o portfólio da patologia branca, para matar silenciosamente indígenas indefesos. Estupros, violência de toda ordem, destruição dos precários e raros equipamentos públicos de saúde. Polícia Federal e Força Nacional, instados pela opinião pública, bem que tentaram ensaiar a repressão ao crime liberado e organizados a partir da omissão/adesão do governo central.
É difícil sobreviver na Amazônia profunda com este padrão histórico de negligência institucionalizada. Os oportunistas do crime que operam nesse contexto secular das sombras permissivas e da impunidade a nenhum custo, se sentem confortáveis e recompensados. Aqui, ao contrário das iniciativas pontuais da economia legal, aquelas que o Estado controla mas seu burocratismo inibe, a insegurança jurídica é premissa de facilitação e resultados.
O desafio do momento é: manter a economia de contrapartida fiscal que existe na Amazônia Ocidental e espalha empregos, oportunidades e arrecada impostos para todo o país – vamos prestar bem atenção – e expulsar o crime resultantes do garimpo ilegal, que não emite nota fiscal, nem contribui com as atribuições do poder público. E quem será o vencedor?
Dizendo de outro jeito, vale a pena a sugestão para acompanhar quem será, no fim do dia, rechaçado ou reconhecido pelos emissários do Brasil central? Vencerão aqueles que descobriram a pólvora da lavagem da economia que o garimpo ilegal representa – vidas Yanomami importam? – ou a economia transparente da política fiscal que gera os recursos necessários à gestão civilizado da Amazônia, de sua gente, especialmente de suas populações tradicionais?
O Brasil volta a ocupar as manchetes do espanto de suas mazelas e contradições na imprensa internacional. Tomara que isso nos incomode, nos constranja e ensine a meditar quem somos e que caminhos estamos escolhendo. Se importa identificar culpados, que comecemos principalmente essa busca em cada um de nós. O inferno são os outros se lembrarmos que na relação interpessoal o outro sou eu.
Assim, no lugar de precisar apontar este ou aquele arauto da morte – como juízes da hipocrisia – vamos construir a boa sorte daquilo que nos compete fazer e que pode resultar na pacificação geral, a começar pelos desvalidos a quem precisamos dar as mãos em nome da recuperação da vida, que só fará sentido sempre que for repartida. Vidas indígenas sempre importam.
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