Estudo do projeto Blue Keepers da ONU revela quantidade gigante de plástico e revela impacto ambiental na biodiversidade marinha
os grandes acúmulos de lixo visíveis na superfície ao leito mais profundo do oceano, o plástico está por toda parte no ambiente marinho. Estima-se que há acumulado entre 86 milhões e 150 milhões de toneladas (t) do material, em seus inúmeros formatos, composições e tamanhos, que podem demorar séculos para se decompor. Só o Brasil lança potencialmente no ambiente 3,44 milhões de t de sacolas plásticas, garrafas PET, canudos, embalagens de xampu e isopor a cada ano, segundo um recém-divulgado estudo do projeto Blue Keepers realizado pelo Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU) no Brasil (ver reportagem na página 62).
Como seu uso é relativamente recente, popularizando-se apenas depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e intensificando-se a partir dos anos 1970, muitos dos efeitos sobre organismos e ecossistemas ainda são desconhecidos, em especial os das partículas menores. Mas um robusto corpo de evidências aponta para consequências importantes e graves.
Na Conferência do Oceano, promovida pela ONU no fim de junho em Lisboa, a poluição marinha por plástico ganhou destaque. Especialistas ressaltaram a sua ligação com as mudanças climáticas, já que 4,5% das emissões de carbono estão relacionadas à produção e ao descarte de material polimérico – por exemplo, como resultado da lenta decomposição química do lixo despejado no mar.
“Nossos oceanos se encontram em um estado crítico e numerosas ações são necessárias”, disse o secretário de Estado da Suécia para a Mudança Climática e o Ambiente, Anders Grönvall, na abertura de um dos eventos da conferência que buscou tratar de inovações para combater esse tipo de poluição. “Não podemos ignorar que os plásticos são a maior parte do lixo nos oceanos. Oitenta por cento do lixo de plástico encontrado no oceano tem origem terrestre e a previsão é de que ele triplique até 2040 se não houver uma ação significativa.”
A ONU declarou o período de 2021 a 2030 como a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável – ou a Década do Oceano. Embora a poluição por plásticos seja a mais preocupante, os ambientes marinhos também são impactados por outras fontes como derramamento de petróleo, despejo de rejeitos de mineração e lançamento de esgoto doméstico e industrial sem tratamento.
No primeiro semestre deste ano, a organização não governamental (ONG) internacional WWF divulgou um relatório, elaborado pelo Instituto Alfred Wegener – Centro Helmholtz para Pesquisa Polar e Marinha, na Alemanha, com uma conclusão desalentadora. Mesmo se toda a poluição por plástico cessasse hoje, o nível de microplásticos (ver Pesquisa FAPESP no 281), aqueles que não passam de 5 milímetros (mm) de tamanho, dobraria até 2050 nos oceanos.
Isso ocorreria porque os plásticos já existentes nesse ambiente vão se partindo em fragmentos cada vez menores, sem ter sua estrutura principal modificada. O documento faz uma revisão de 2.592 estudos científicos que tratam do impacto desse tipo de poluição sobre as espécies, a biodiversidade e os ecossistemas. Dezenas de artigos citados têm como autores pesquisadores brasileiros.
“Em algumas épocas do ano há mais microplástico do que larva de peixe em suspensão na água junto com o plâncton”, comenta o ecólogo Mário Barletta, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que assina pelo menos 10 trabalhos mencionados pelo relatório. Especialista em ecologia de estuário, Barletta investiga o ambiente aquático de transição entre o rio Goiana, na porção norte de Pernambuco, e o mar. “Tomo esse estuário como referência para explicar o fenômeno para todos os estuários tropicais. E olha que o local é muito bem preservado.”
Um de seus artigos, publicado em 2019 na revista Science of the Total Environment, descreve uma transferência da contaminação por microplástico dentro da teia trófica, a partir do material achado no estômago de um robalo. Nos diferentes ecossistemas, a sequência de organismos que servem de alimento para o outro (“quem come quem”) é chamada de cadeia alimentar. A interação das diversas cadeias alimentares de um ecossistema é chamada de teia trófica.
“Encontramos uma presa muito bem preservada no interior do peixe e, ao abrir essa presa, havia microplástico. Esse achado sugere que os predadores de topo, como os robalos e as pescadas, estão se contaminando não apenas com o microplástico do ambiente, mas também com as presas deles, de outros peixes, que já estão contaminados. É algo muito mais sério.”
Alguns pesquisadores propõem usar determinados animais marinhos, como mexilhões e ostras, como monitores ou bioindicadores da qualidade do ambiente e dos possíveis riscos apresentados pelo plástico à segurança alimentar humana. “Esses animais são filtradores. Eles têm um órgão, chamado brânquia, que funciona como uma rede que filtra a água para eles comerem o que tem ali.
Acabam consumindo o plástico e o material fica em seu interior por um período de tempo. Podemos usar isso como um indicativo indireto do que há no ambiente”, explica o biólogo Alexander Turra, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da cátedra Unesco para Sustentabilidade do Oceano.
Um dos artigos no qual Turra é coautor é de um trabalho feito em colaboração internacional, com parceiros da China, da Noruega e de outros locais para coletar moluscos bivalves na natureza e nos mercados a fim de avaliá-los para esse possível uso duplo (como bioindicador ambiental e na segurança alimentar). “Estamos trabalhando em seis subprojetos em diferentes localidades, como no litoral do Paraná e de São Paulo, na Austrália e nos oceanos Atlântico e Pacífico.
” Esse último é executado em parceria com a iniciativa Voz dos Oceanos, da família Schurmann, e tem apoio do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Apaixonados pelos mares, os Schurmann são uma família de velejadores brasileiros que estão em sua quarta volta ao redor do mundo a bordo de um veleiro.
Além da quantidade de itens, os pesquisadores conseguem observar o tipo e a origem do material no interior desses organismos. “No fundo da baía de Paranaguá, no Paraná, encontramos muitos resíduos derivados da degradação de pneus, que vêm dos caminhões que passam pela Estrada da Graciosa, na serra do Mar. Essa impressão digital dos tipos e das quantidades de plástico varia de lugar para lugar”, explica Turra. Em São Paulo, segundo ele, observam-se muito mais fibras associadas a roupas sintéticas, que se desprendem durante a lavagem e chegam no mar em razão da baixa cobertura de coleta e ineficiência do tratamento de esgoto.
As zonas costeiras, no entanto, não são as que apresentam a maior quantidade de partículas microplásticas – embora sejam as que registram o maior número de itens com mais de 5 mm, que, por algumas classificações, já são chamados de macroplásticos. Segundo os estudos citados pelo relatório da WWF, o leito oceânico pode ter concentrações maiores até que as dos grandes giros oceânicos, locais para onde as correntes costumam concentrar o lixo, formando enormes manchas flutuantes. Quase nada se sabe ainda sobre a distribuição e a concentração de nanoplásticos, os fragmentos com dimensões inferiores a 0,1 micrômetro (o equivalente a 1 milésimo de mm), invisíveis a olho nu e capazes de entrar na corrente sanguínea.
Para plásticos um pouco maiores, pesquisadores sugerem a observação de diversos animais como indicadores da poluição. Em artigo publicado em 2016 na revista Ecological Indicators, o biólogo Leonardo Lopes Costa, da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), e colegas afirmam que os ninhos feitos por atobás-marrom (Sula leucogaster) podem ter essa função.
Sessenta e um por cento dos ninhos analisados em dois conjuntos de ilhas em Arraial do Cabo e em Macaé, no norte fluminense, tinham em sua composição lixo que refletia a quantidade de plástico e de material de pesca nas águas circunvizinhas. “Sabemos que essas aves usam o plástico como material de nidificação [para construção do ninho], mas ainda desconhecemos as consequências disso para os filhotes e para os adultos. Também não sabemos se serve para outra finalidade, como a corte reprodutiva”, diz Costa.
O pesquisador da Uenf verificou ainda outro uso inusitado do plástico por animais marinhos nas praias da região Sudeste, ao constatar que caranguejos-fantasma (Ocypode quadrata) colocam de propósito em suas tocas fragmentos do material, em especial os mais maleáveis, como canudos, cordas e esponjas.
“Vimos que as taxas de ocupação eram mais que o dobro nas tocas contendo lixo do que nas que não continham. As sem lixo, em geral, já haviam sido abandonadas pelos caranguejos. A nossa hipótese, que ainda precisa ser testada, é de que o plástico seja usado como uma marca de localização por esses invertebrados, uma vez que alguns estudos sugerem que essa espécie tem certa fidelidade por suas tocas. É um comportamento chamado de ‘homing’.”
Embora a interação das espécies marinhas com o material plástico nem sempre tenha uma consequência negativa, diversos pesquisadores investigam os efeitos deletérios aos animais e organismos, como ferimentos ou morte, redução da mobilidade, alteração do consumo alimentar e da função celular. Um importante efeito negativo do plástico ocorre via ingestão.
O material pode bloquear os sistemas digestórios, causar lesões internas e criar uma falsa sensação de saciedade, alterando ou reduzindo o padrão de consumo de alimentos – e, com isso, causando um impacto negativo no crescimento, na resposta imune, na fertilidade e na reprodução.
O médico veterinário Gustavo Rodamilans de Macedo, doutor em ciência animal nos trópicos e coordenador do Projeto Baleia Jubarte, na Bahia, realizou necrópsias em 45 tartarugas marinhas encontradas mortas em 2006 e 2007 no litoral norte baiano e publicou um artigo descrevendo que em 60% delas foram encontrados resíduos de lixo, principalmente de pesca.
“Em tartarugas, a ingestão de resíduos, como saco plástico, tampinha de garrafa, lacre ou pedaços de corda de pesca, pode causar compactação, perfuração do estômago, úlceras e acúmulo de gases. Esse é o tipo de interação que a gente mais vê, em especial na tartaruga-verde [Chelonia mydas], que se alimenta de algas. E tem muito lixo junto às algas”, afirma o veterinário, que trabalhou durante mais de 15 anos no Projeto Tamar, de conservação de tartarugas.
“Comprovei no meu estudo que é preciso analisar o trato digestório todo para verificar a interação do animal com o lixo. Estatisticamente, se eu pegar uma tartaruga e só analisar o estômago e o esôfago, não posso dizer nada. Na maioria das vezes, o plástico está no intestino grosso.”
O biólogo Robson Henrique de Carvalho, doutor em ecologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), também publicou artigo sobre a ingestão do lixo por tartarugas marinhas, só que no litoral fluminense. Nesse estudo, 39% entre 23 animais de cinco espécies diferentes achados em 2011 mortos ou prestes a morrer nas praias de Búzios e Cabo Frio continham em seu interior lixo marinho.
Carvalho e colegas estimam que a ingestão de resíduos seja a principal causa de mortalidade de muitas tartarugas no país, mas afirmam que mais estudos são necessários. “Vários pesquisadores, institutos e até empresas que fazem monitoramento de praias recorrem à metodologia de fazer a necrópsia do animal e ver se há ou não lixo no trato digestório, mas em geral esses dados não são publicados. Temos muito mais dados, mas pouca publicação em revista científica.”
Os pesquisadores ressaltam que é importante contabilizar e analisar os dados sobre o lixo plástico a fim de identificar a origem e as consequências do problema e, assim, contribuir para a elaboração de políticas públicas direcionadas à questão. “Esse é um problema complexo, com várias fontes e muitos caminhos complementares para agir”, aponta Turra. “Só teremos sucesso se conseguirmos integrar os diferentes atores da sociedade e criar as condições necessárias que levem à transformação para um planeta sem lixo no mar.”
De acordo com o pesquisador, embora o Ministério do Meio Ambiente não esteja exercendo o seu papel de coordenar essa frente no Brasil, alguns estados estão preenchendo a lacuna. “São Paulo já internalizou a temática de lixo no mar em políticas públicas estaduais e trabalha para combater o problema”, destaca Turra. Com a Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do governo estadual paulista, o Instituto Oceanográfico da USP, em parceria com o Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e a embaixada da Noruega, implementa o Plano Estratégico de Monitoramento e Avaliação do Lixo no Mar (Pemalm).
“Uma das metas do plano é gerar indicadores para podermos compreender o problema e monitorar os avanços. A outra é desenvolver ações moldadas em função das diferentes frentes de atuação que o Estado pode assumir.”
A equipe do Pemalm, cuja implementação foi iniciada em São Paulo em janeiro deste ano, alimenta a plataforma de indicadores com dados relacionados à geração do lixo, gestão do resíduo, volume de reciclagem, quantidade de lixo encontrado nas praias e em outros ambientes marinhos e os efeitos econômicos e ecológicos disso. Outros cinco estados brasileiros deverão adotar essa abordagem: Amapá, Ceará, Bahia, Rio de Janeiro e Paraná.
Entre os ecossistemas-chave sob maior risco em razão dos plásticos estão as áreas de recifes de corais e os manguezais, alertam os pesquisadores. Ambos fornecem serviços vitais para o planeta, entre eles a manutenção da produtividade pesqueira e da biodiversidade. Artigo publicado em 2010 na revista Marine Pollution Bulletin traz os resultados de uma pesquisa que avaliou oito áreas de manguezal em São Vicente, na costa de São Paulo.
“Utilizamos para o lixo o mesmo método de amostragem usado para medir os organismos vivos e a densidade de plantas”, conta a bióloga Tânia Marcia Costa, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus do Litoral Paulista. “Em termos de densidade por metro quadrado, o plástico domina; ou seja, ele ocupa mais espaço. Quando avaliamos o peso [dos resíduos sólidos], constatamos uma diferença, porque encontramos muita madeira. Isso se explica porque a região ao redor das ilhas de manguezal está associada a uma área grande de favela com palafitas de madeira.” Como a madeira se degrada rapidamente, seu impacto no ambiente não é tão grande, afirma o estudo.
Costa ressalta que é importante entender o papel de cada poluente sobre os ecossistemas. “As regiões de manguezal, que são sumidouros de carbono, têm como característica a deposição constante de sedimentos e os animais se alimentam do que está depositado ali. Com isso, o microplástico se torna um problema muito maior, apesar de o macroplástico também causar preocupação.”
O relatório da WWF destaca que a questão do plástico não deve ser considerada de forma isolada. Outras ameaças causadas pelo homem se somam ao lixo dos polímeros, como o aquecimento das águas, a pesca excessiva, a acidificação dos oceanos, a destruição e fragmentação de hábitats, a navegação e a poluição sonora submarina e a causada por outros poluentes químicos. A abordagem mais importante, sustenta o documento, bem como os pesquisadores brasileiros entrevistados, é evitar o lixo plástico no ambiente, reduzindo a produção do material.
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