Aves formam ambiente único, com intensa produção de guano, que atrai peixes
Todo dia, do final de janeiro até meados de abril, ao pôr do sol, milhares de andorinhas-azuis (Progne subis) chegam de todo lado, do alto ou rente à superfície do rio, formam uma densa nuvem, giram rapidamente alguns minutos em um movimento aparentemente desorganizado, depois todas despencam quase ao mesmo tempo e se alojam nas árvores da ilha Comaru, em Iranduba, município de quase 50 mil habitantes a 30 quilômetros (km) de Manaus, no estado do Amazonas. E ali passam a noite, em meio às viagens anuais entre a América do Norte, onde se reproduzem, e a América do Sul, onde ganham peso comendo insetos. No início de março, um grupo de oito biólogos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) resolveu contar a passarada.
Durante dois dias, antes do amanhecer, Mario Cohn-Haft saiu com sua equipe em dois barcos, cada um levando duas duplas de pesquisadores. Nas pontas da ilha, cada dupla olhava para um lado: norte ou sul. Um dos integrantes da dupla anotava e o outro contava o número de pássaros que levantava voo a cada minuto e se espalhava pela floresta. “Em geral eram 20 ou 30 por segundo, mas às vezes muito mais. Eu não acreditava que poderia ver 500 andorinhas saindo das árvores de uma só vez”, conta a bióloga Eliene Fontes Arruda, que cuidou da contagem.
Multiplicando pelo tempo que durava a decolagem sucessiva das aves – de 30 a 40 minutos, desde o amanhecer até as 6h30 –, os biólogos chegaram a uma estimativa de 244 mil andorinhas que ocuparam a ilha na noite anterior. Foi uma média diária um pouco menor que a do início de 2020, pouco antes do início da pandemia, quando Arruda, aplicando o método pela primeira vez, estimou a passarada em 266 mil indivíduos. “O número de aves parece variar a cada noite, às vezes com mais chegadas do que partidas”, observa Cohn-Haft.
Na viagem deste ano, os biólogos fortaleceram a conclusão de que há de fato uma rotatividade de andorinhas na ilha, hipótese levantada na primeira viagem do grupo, em 2019. Arruda colocou radiotransmissores em cerca de 30 aves, que, somados aos 20 instalados em 2019, indicaram que os animais usam a ilha como dormitório entre 2 e 12 dias – a maioria, por uma semana.
“As andorinhas-azuis saem de diferentes regiões do leste dos Estados Unidos e do Canadá, em geral quando começa o inverno, e depois voltam para lá”, diz ela. “O acúmulo de gordura nas aves que capturamos para examinar e medir indica que elas já estariam prontas para voltar à América do Norte.”
Considerando essa rotatividade, os biólogos estimam que quase 3 milhões de andorinhas-azuis devem dormir na ilha Comaru até o final de abril, quando voltam para o norte. Segundo Cohn-Haft, os 3 milhões correspondem a um terço da população mundial de andorinhas-azuis, estimada em 9 milhões.
Toneladas de guano
De volta às árvores, depois de se alimentarem durante o dia, as andorinhas defecam de uma a três vezes por noite. A bióloga Jessica Andrade de Oliveira, também do Inpa, calculou que, a cada amanhecer, milhares de aves deixaram de 15 a 43 quilogramas de guano rico em nitrogênio sobre as árvores nessa época do ano semissubmersas, por causa da cheia anual, da ilha de 3 hectares (1 hectare equivale a 10 mil metros quadrados).
“A descarga contínua de guano sobre a água muda a comunidade local de peixes”, observa ela. Sobre a ilha, nessa época do ano coberta de água da cheia anual, e nos arredores predominam as espécies carnívoras e onívoras, como as piranhas-pretas (Serrasalmus spp.), orana (Hemiodus immaculatus) e cangati (Auchenipterichthys longimanus), com raros insetívoros e frugívoros, como em outros trechos do rio Negro.
De acordo com a análise de Oliveira, o guano depositado sobre o solo da ilha tem um teor de nutrientes três vezes maior que o das margens do rio e até 15 vezes maior que o da ilha Papagaio, a 3 km de distância, que as andorinhas adotavam como dormitório até alguns anos atrás e foi abandonada talvez pelo excesso de barcos grandes com turistas. Na década de 1990, conta Cohn-Haft, milhares de andorinhas ocupavam galpões de uma refinaria de petróleo em operação em Manaus, que deixavam pela manhã após cobrirem tubos e fios com renovadas camadas de guano, exigindo lavagens contínuas.
“As andorinhas formam um ambiente único durante 2,5 meses na ilha Comaru, com uma intensa produção de guano, que altera as condições locais de vida dos organismos aquáticos”, comenta ele. “Já o modo como elas formam as nuvens acima das árvores e depois despencam é uma forma de defesa contra predadores como o falcão peregrino (Falco peregrinus), que consegue ser ainda mais veloz que elas.”
Segundo Cohn-Haft, 18 espécies de andorinhas voam pelo Brasil, todas caracterizadas pelas asas longas e pontiagudas e pela cauda geralmente bifurcada; 10 delas se movem de uma região para outra dentro do país, seis chegam da América do Norte e do Caribe e duas do sul da América do Sul. “A andorinha-do-sul (Progne elegans) é quase idêntica à andorinha-azul, mas migra da Argentina para a Amazônia durante o inverno do sul, de maio a setembro, assim se sobrepondo com a azul durante alguns meses”, diz ele.
Com até 22 centímetros de comprimento e 55 gramas de peso, a andorinha-azul é a maior espécie encontrada no Brasil. Concentra-se na Amazônia, mas já foi vista por todo o país, até mesmo no Rio Grande do Sul. De acordo com um artigo publicado em novembro de 2021 na revista científica Ornithology Research, o registro mais antigo dessa espécie foi feito em 1816 em Manaus. Elas chegam ao Brasil em maior número em julho, quando a temperatura começa a baixar no hemisfério Norte, e no início do ano se reúnem na ilha do rio Negro, antes de voltar para o norte.
Em março, a bióloga Erika Hingst-Zaher, do Instituto Butantan, acompanhou a equipe do Inpa e, com sua equipe, colheu duas penas caudais e amostras de swab da boca e da cloaca de 100 andorinhas-azuis e 30 andorinhas-do-campo que visitaram a ilha do rio Negro.
As penas serão usadas para análise de teores de mercúrio, um contaminante disseminado no solo, na água, em peixes e no organismo de moradores da Amazônia. Segundo ela, análises preliminares, feitas pelo biólogo Jonathan Branco, da Universidade de São Paulo (USP), indicaram que os níveis de mercúrio encontrados nessas aves são altos o suficiente para prejudicar sua reprodução e poderiam estar ligados ao declínio das populações dessa espécie, observado nos últimos 30 anos na América do Norte.
O material coletado por swab servirá para buscar vírus causadores de doenças. “Por serem espécies migratórias, as andorinhas são potenciais vetores de patógenos entre os hemisférios Norte e Sul”, diz Hingst-Zaher. Esse trabalho integra uma rede de vigilância epidemiológica em animais silvestres financiada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Os resultados das análises devem sair nos próximos meses.
Artigos científicos
SANTOS, C. O. et al. Distribution and migration phenology of purple martins (Progne subis) in Brazil. Ornithology Research. v. 29, p. 213-22. nov. 2021.
Fonte: Pesquisa Fapesp
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