Com certeza, trocaram táticas e estratégias, eventualmente firmaram alguma cooperação’, afirma David Nemer, professor da Universidade da Virgínia
O encontro de Jair Bolsonaro com Vladimir Putin deixou setores da política nacional alarmados, e não apenas pela inconveniência da ocasião, em meio à escalada da tensão na Ucrânia. A oposição desconfiou da presença do Carlos Bolsonaro, o filho Zero Dois do presidente, na comitiva que viajou a Moscou em fevereiro. Em resposta a um pedido do senador Randolfe Rodrigues, da Rede, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, solicitou explicações ao Palácio do Planalto sobre o motivo da presença do “vereador federal” na missão.
Durante a visita oficial à Rússia, Bolsonaro despistou os críticos, disse que o filho estava lá apenas para “atualizar as redes sociais”. Para desvendar a real motivação da presença de Zero Dois em Moscou é preciso, porém, reparar a inclusão de outro nome na comitiva, o do assessor especial da Presidência Tercio Arnaud Tomaz, observa David Nemer, professor da Universidade da Virgínia. Arnaud é investigado por coordenar o chamado “gabinete do ódio”, dedicado à disseminação de fake news e ataques a adversários políticos pelas redes bolsonaristas. É também um dos principais responsáveis pela atualização dos perfis do ex-capitão nas redes sociais, subordinado apenas a Carluxo. Para Nemer, o vereador e o assessor viajaram para entender como funciona a máquina de desinformação do governo Putin. “Com certeza, trocaram táticas e estratégias, eventualmente firmaram alguma cooperação.”
Os russos são pioneiros em diversas técnicas de desinformação, como o uso de milícias virtuais, a criação de imagens e vídeos forjados, a divulgação de informações falsas e conflitantes em grande volume, além da manipulação dos mecanismos algorítmicos que regem os ambientes digitais. Todas essas táticas foram usadas na campanha que elegeu Jair Bolsonaro em 2018, mas não ensinadas diretamente pelos russos. Na ocasião, essa era também a especialidade de outro aliado do clã Bolsonaro, o norte-americano Steve Bannon, o principal estrategista da vitoriosa campanha de Donald Trump à Presidência dos EUA, em 2016.
Os russos têm expertise na criação de informações falsas e conflitantes e na manipulação dos algoritmos
Amigo do guru bolsonarista Olavo de Carvalho, falecido em janeiro, Bannon criou o site de notícias de extrema-direita Breitbart e foi vice-presidente da empresa de análise de dados Cambridge Analytica. Foi ele quem desenhou a estratégia perfeita para levar Trump à Casa Branca. Para Bannon, o verdadeiro adversário nas eleições não era o Partido Democrata, e sim a mídia. A única forma de derrotá-la seria inundar os meios de comunicação com informações falsas. Um de seus maiores truques era manter Trump sempre em evidência, criando polêmicas com declarações de impacto, para que os veículos de comunicação estivessem sempre falando do candidato republicano. A estratégia não apenas deu resultado nas eleições, como também assegurou, em larga medida, o apoio popular à administração dele.
Para a pesquisadora Catesby Holmes, da Universidade Harvard, essa visão da mídia como inimiga é, hoje em dia, comum entre os republicanos, que tendem a acusar os veículos tradicionais e as Big Techs de censurar os pontos de vista conservadores. “Não é que a mídia seja esquerdista, ela apenas reflete a cultura norte-americana, democrática e multicultural”, afirma. Mas o que deu resultado em 2016, nos EUA, e em 2018, no Brasil, pode não surtir mais efeito, acrescenta.
Uma forte sinalização disso vem justamente do conflito no Leste Europeu. A campanha de desinformação russa contra a Ucrânia está sendo menos bem-sucedida agora do que foi em 2014, quando Putin anexou a península da Criméia e ocupou a região de Donbass, usando tropas sem identificação. À época, o Kremlin divulgou uma avalanche de informações confusas, conflitantes e falsas, para impedir que a opinião pública se consolidasse contra a anexação dos territórios.
O que vemos no conflito atual é uma resposta unificada, forte e imediata à desinformação propagada pelo governo russo, avalia a pesquisadora de Harvard. “Os ucranianos fizeram um ótimo trabalho preventivo para desmentir Putin, antecipando a contestação de argumentos falaciosos que seriam usados pelo governo russo.” Os serviços de inteligência dos EUA também atuaram de maneira rápida e inédita, revelando os planos de Putin de invadir a Ucrânia, como de fato ocorreu.
A última grande vitória do governo de Putin manipulando a opinião do público foi nas eleições para o Legislativo, em 2021. Apesar de ter menos de 30% de aprovação popular, segundo diferentes pesquisas, o partido do presidente russo conseguiu eleger 198 representantes para ocupar os 225 assentos disponíveis no Parlamento. O feito arregala os olhos de Bolsonaro, em distante segundo lugar na corrida presidencial e com uma rejeição superior à metade do eleitorado. “Há muitas maneiras para Putin ganhar, mesmo quando está em desvantagem. A propaganda estatal é apenas parte do pacote, a incluir um exército de trolls pagos, algo decisivo em 2016 e que pode ser uma ameaça a outros países”, comenta Holmes.
Na manipulação do debate político, o que distingue a Rússia é o fato de Putin ter controle absoluto sobre os meios de comunicação. “Não há espaço sequer para fake news que não sejam controladas pelo Kremlin”, diz Nemer. A mídia estatal é hegemônica e, quando mensagens disseminadas pela mídia privada ameaçam o discurso oficial, o governo atua rapidamente para limitar o acesso ou banir os veículos incômodos. Foi o que aconteceu, após a invasão da Ucrânia, com o fechamento do site independente Znack.com, e com o bloqueio ao Facebook e ao Twitter. Foi também o que ocorreu em 2018, quando uma corte russa baniu o aplicativo de mensagens Telegram, depois que seus administradores se recusaram a fornecer uma “porta dos fundos” na criptografia para o governo monitorar usuários.
“Os canais públicos do Telegram não são criptografados automaticamente, só no envio”, alerta David Nemer
O Telegram, por sinal, foi um dos assuntos mais importantes abordados na viagem dos Bolsonaro à Rússia, aposta Nemer. O aplicativo está presente em 53% dos smartphones brasileiros, e um em cada quatro usuários afirma usá-lo todos os dias. De todos os líderes mundiais com presença no aplicativo, Jair Bolsonaro tem o maior número de seguidores inscritos em seus canais: cerca de 1 milhão de indivíduos. O segundo colocado, Recep Erdogan, presidente da Turquia, possui pouco mais de um quarto disso, 277 mil seguidores. Em crescimento no Brasil, o Telegram deve se tornar um espaço disputado pelos diferentes candidatos ao Planalto em 2022. Para Holmes, o fato de os veículos jornalísticos não terem ocupado espaço significativo no Telegram cria um desafio adicional, pois muitos cidadãos costumam se informar apenas por aplicativos de mensagens ou por “notícias boca a boca”.
O bloqueio ao aplicativo na Rússia acabou em 2020. O Kremlin cedeu após a plataforma se comprometer a divulgar mensagens oficiais sobre o combate à Covid-19. Com esse pretexto, Putin passou a usar o aplicativo para dar sequência à sua estratégia informacional. Na avaliação de Nemer, Bolsonaro pode ter aprendido com os russos formas de obter informações privilegiadas dos usuários do aplicativo. “Os canais públicos do Telegram não são criptografados automaticamente, só no envio. O aplicativo tem acesso a muitos dados pessoais e a Rússia pode ter descoberto uma forma de acessá-los”, alerta. Isso permitiria à campanha bolsonarista até mesmo monitorar as atividades de outros candidatos e de seus apoiadores.
Em 2016, a Cambridge Analytica de Bannon usou informações de usuários do Facebook na campanha presidencial norte-americana. Financiada pelos mesmos bilionários que patrocinaram a campanha de Trump, a empresa coletou dados de 87 milhões de usuários da rede social, por meio de um aplicativo capaz de traçar o perfil psicológico dos eleitores. A Cambridge Analytica chegou a orientar a produção de materiais de campanha para pessoas mais suscetíveis às fake news.
A companhia estudava como influenciar o plebiscito do Brexit, no Reino Unido, e a campanha presidencial brasileira quando suas atividades foram expostas. Isso não impediu Bannon de tentar articular uma aliança internacional de líderes populistas de extrema-direita, comandada por Trump. O estrategista buscou aproximar-se de Putin, a quem expressou sua admiração como líder e também por sua “masculinidade”, e assumiu o papel de conselheiro informal dos Bolsonaro.
Com o aumento da pressão sobre as grandes empresas de tecnologia, que passaram a excluir perfis que disseminam notícias falsas, os populistas da extrema-direita não tinham mais a mesma liberdade para propagar suas mensagens. Para líderes como Trump e Bolsonaro, tornou-se mais atraente buscar veículos alternativos, nos quais poderiam expressar valores reacionários e antidemocráticos sem temer censura. Não por acaso, Jason Miller, outro ex-assessor de Trump, criou a rede social Gettr, e hoje é investigado pelo FBI por seu envolvimento no motim do Capitólio. Miller foi preso no Brasil, em setembro de 2021, ao vir prestigiar um evento conservador promovido pelo deputado Eduardo Bolsonaro. E o próprio Trump lançou recentemente a Truth Social, a sua própria rede de mentiras.
O filho Zero Três do presidente e o ex-chanceler Ernesto Araújo eram considerados os principais aliados políticos de Bannon no País. “Muito da influência de Bannon e Miller no Brasil é informal. Mas, se falarmos deles, vamos falar também de Eduardo Bolsonaro e Ernesto Araújo. É aí que está o foco de Bannon, especialmente nas redes sociais, principalmente fomentando oposicionismo contra a China dentro do governo Bolsonaro”, afirma Benjamin Teitelbaum, professor da Universidade do Colorado e autor do livro Guerra pela Eternidade: O Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista (Ed. Unicamp).
Para Teitelbaum, a afinidade ideológica com Olavo de Carvalho, o cientista político russo Alexandr Dugin, conhecido como o “Rasputin de Putin”, e Steve Bannon propiciou a criação de uma grande rede de compartilhamento de métodos de manipulação do eleitorado. Para tanto, o grupo investiu na criação de “contrapúblicos”, com escolas e veículos de comunicação paralelos, para difundir um discurso alternativo ao público em geral, contra a “modernidade” e focado na religiosidade ou no esoterismo. O movimento foi batizado de “tradicionalismo”.
Apesar disso, os bolsonaristas sempre tiveram dificuldade em concordar com um alinhamento à Rússia. O passado comunista do país e a cooperação do Kremlin com a China são vistos com desconfiança por setores da extrema-direita brasileira. Além disso, muitos bolsonaristas pregam abertamente a “ucranização do Brasil”, em clara alusão aos grupos fascistas e neonazistas daquele país que combatem os rebeldes separatistas pró-Rússia. Para Nemer, essas divergências não são novidade. “Os pilares do bolsonarismo sempre estiveram em conflito, especialmente entre os olavistas, os militares e os fisiológicos”. Essas alas, acrescenta o especialista, se uniram antes para vencer a eleição e nada indica que não farão isso novamente.
Fonte: Carta Capital
Comentários