É provável que esse deve ser o único efeito da medida, a saber, o aumento da concentração industrial regional, com consequente redução do emprego e estímulos ao extrativismo na Amazônia. Medidas voltadas para a reindustrialização podem soar como “remar contra a maré”, uma vez que a atividade manufatureira vem mudando radicalmente sua forma com a economia digital.
Mais importante do que o mundo do “hardware”, entre ferros, soldas e parafusos, tem-se o mundo do “software”, da pesquisa e do conhecimento. A agenda para a reindustrialização no Brasil, seja lá o que isso signifique, passa pela transformação do sistema educacional, pela capacitação de trabalhadores, por promoção à pesquisa e desenvolvimento e por um amplo arranjo de estímulo ao espírito inovador e empreendedor. A redução do IPI é apenas a vitória de um setor industrial sobre outro setor industrial, internamente ao País, sem ganhos externos de competitividade, em uma luta distributiva de repartição doméstica de um bolo cada vez menor.
Por Márcio Holland
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No último dia 25 de fevereiro, o Governo Federal anunciou, por decreto, redução de 25% nas alíquotas de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para a maioria dos produtos e de 18,5% para automóveis de passageiros, sendo que cigarros e outros produtos do tabaco ficaram de fora deste benefício. A medida foi justificada, segundo o próprio Governo Federal, pelo fato de que “nas últimas décadas, o setor industrial brasileiro tem perdido competitividade e participação no valor adicionado, no emprego e na pauta exportadora do país – consequências da redução da produtividade”. A medida gerou renúncia fiscal de R$19,6 bilhões, para o ano de 2022. Cabem aos estados e municípios, compulsoriamente, financiar quase 60% desta renúncia, em típico jogo de “fazendo cortesia com chapéu alheio”.
À princípio, a medida deveria ser celebrada e deveríamos engrossar o coro de um grupo significativo de empresários industriais. Mas, a medida tem seus efeitos colaterais, sem gerar os resultados esperados pela equipe econômica.
Redução de tributos no Brasil soa como um alívio, um fardo a menos a carregar nas costas da sociedade. Afinal, a carga tributária vem subindo década após década, saindo de aproximadamente 10% do PIB, nos anos 1930, para 25% do PIB, nos anos 1980 e, depois para cerca de 33% do PIB, nos anos 2000. Grande parte deste aumento está associada com a expansão da base de incidência de tributos, conforme evoluía o crescimento com industrialização. Mas, também, as reformas tributárias implementadas ao longo do tempo davam a sua contribuição aumentando principalmente o peso do tributo sobre o consumo, a produção e os investimentos.
A indústria tem, sem dúvida, um peso adicional na carga tributária brasileira. Mesmo com contribuição de pouco mais de 11% no valor adicionado da economia, ela contribui com 19% de toda a arrecadação tributária federal. Ao longo do século passado, a indústria aumentou seu peso no PIB, de 15%, nas primeiras décadas do século passado, para 40%, no começo dos anos 1980; o dado mais recente, para 2021, mostra um peso de 11,3% do PIB.
Claro, há mudanças na metodologia das contas nacionais e importante alteração nos preços relativos que turvam esses percentuais ao longo do tempo. Mas, há, de fato, uma desindustrialização. Só não sabemos o quanto essa perda de participação da indústria de transformação no PIB é um fenômeno “natural”, dada a urbanização que vem junto com a industrialização e, com isso, o crescimento do setor de serviços, ou se “precoce”, antes mesmo de atingir sua maturidade industrial. É provável que essa maturidade industrial tenha sido apressada pela nova economia digital, em linha com a indústria 4.0, e com o papel central da China como a “manufatura do mundo”.
A indústria brasileira realmente precisa de uma reforma tributária que reduza seu peso na arrecadação total.
O IPI tem grandes vícios que o remete a um tributo ruim ao sobrecarregar a produção. Contudo, ainda não sabemos qual reforma tributária será capaz de atender aos pleitos da indústria sem ferir o setor de serviços, que responde por 70% do PIB, nem estamos discutindo adequadamente propostas para modernizar a legislação do IPI. Talvez não seja o caso de jogar fora a criança com a água suja.
O IPI poderia ser convertido em um importante tributo voltado para acomodar as flutuações dos ciclos econômicos, conforme o princípio da flexibilidade de um bom sistema tributário. Ao mesmo tempo, poderia dar suporte às atividades econômicas regionais, em especial com eventual mudança no ICMS, no contexto da reforma tributária, atualmente o tributo usando como arma na guerra fiscal entre estados, bem como um instrumento de estímulo às atividades de PD&I.
Ao promover a redução do IPI, o governo justifica a ideia de que a medida se “soma às medidas de incentivo à retomada da economia e à ampliação da produtividade que estão em curso no país, contribuindo para a dinamização da produção e, consequentemente, da geração de empregos e renda”. Falou-se até em dar suporte na redução dos preços e, com isso, na taxa de inflação. Cabe aqui advertir para o fato de que essa medida não terá os resultados esperados pelo Governo Federal. Como toda regra tem uma exceção, dadas as características do setor automotivo, é provável que a redução de 18,5% do IPI sobre automóveis tenha impacto na redução dos preços destes bens. Para os demais produtos, engana-se quem acredita nos resultados propagados pelo Governo Federal. Nem a medida permitirá algum grau de reindustrialização, muito menos ajudará no controle inflacionário. Na verdade, de tão frágil, a medida já caducou com o conflito entre Rússia e Ucrânia e suas consequências econômicas.
Dado que a medida reduz a competitividade das indústrias localizadas no Polo Industrial de Manaus, é provável que ela estimulará a já elevada concentração industrial do país. De acordo com dados da PIA (Pesquisa Industrial Anual), do IBGE, os estados da Região Sul e Sudeste detêm 77% dos estabelecimentos industriais com 30 ou mais pessoas ocupadas e igual porcentual em termos de valor da transformação industrial nacional. Mesmo com algum espraiamento recente, a concentração regional da indústria é muito elevada. Resta muito pouco de transformação industrial para os demais estados brasileiros localizados nas
regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
A título de ilustração, a região Norte, basicamente por conta do Polo Industrial de Manaus (PIM), que responde por 70% da transformação industrial da região, empregando mais de 100 mil trabalhadores diretamente, responde por menos de 3,5% dos estabelecimentos industriais do país e ajuda com 7,8% da transformação industrial nacional. Com a medida de redução de IPI, o PIM deve perder competitividade para os polos industriais localizados nos estados do Sul e do Sudeste, concentrando a atividade industrial ainda mais. Com menos emprego de qualidade no Norte, maiores serão os estímulos às atividades extrativistas na floresta amazônica.
É provável que esse deve ser o único efeito da medida, a saber, o aumento da concentração industrial regional, com consequente redução do emprego e estímulos ao extrativismo na Amazônia. Medidas voltadas para a reindustrialização podem soar como “remar contra a maré”, uma vez que a atividade manufatureira vem mudando radicalmente sua forma com a economia digital.
Mais importante do que o mundo do “hardware”, entre ferros, soldas e parafusos, tem-se o mundo do “software”, da pesquisa e do conhecimento. A agenda para a reindustrialização no Brasil, seja lá o que isso signifique, passa pela transformação do sistema educacional, pela capacitação de trabalhadores, por promoção à pesquisa e desenvolvimento e por um amplo arranjo de estímulo ao espírito inovador e empreendedor. A redução do IPI é apenas a vitória de um setor industrial sobre outro setor industrial, internamente ao País, sem ganhos externos de competitividade, em uma luta distributiva de repartição doméstica de um bolo cada vez menor.
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