Há oito anos o país discute a criação de uma Política Nacional para Conservação e Uso do mar brasileiro. Projeto pode alavancar governança do bioma, mas está parado na Câmara
A Organização das Nações Unidas (ONU) declarou esta década em que vivemos como a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, com o objetivo de destacar a urgência na proteção do maior bioma do mundo. Nos próximos dez anos, a ONU espera que seus países membros se empenhem na geração e divulgação do conhecimento e da cultura oceânica, aprimorem a disponibilidade de dados, criem engajamento político e fortaleçam a gestão sustentável do bioma. O Brasil, detentor de uma das maiores extensões litorâneas do mundo e com milhões de quilômetros quadrados de áreas marinhas sob sua jurisdição, entra na Década sem ter uma política de uso e conservação desse imenso mar sob seu domínio.
Desde 2013, pesquisadores, parlamentares, comunidades tradicionais, órgãos governamentais e setor privado discutem o Projeto de Lei 6.969, que institui a Política Nacional para a Conservação e o Uso Sustentável do Bioma Marinho (PNCMar) e que poderá representar um grande avanço na governança do bioma no país. Mas, como o vai e vem das ondas, a proposta tramita no Congresso Nacional há oito anos, ainda sem previsão de chegada ao porto.
O PCNMar pretende ser um instrumento normativo moderno, capaz de orientar e integrar as políticas públicas de proteção, uso e conservação dos mares, em sintonia com o desenvolvimento sustentável. Mais do que isso, ele tem o objetivo de conectar o bioma marinho brasileiro com o bem-estar e a qualidade de vida da população.
“Eu fico imaginando que, num mundo ideal, a Lei vai harmonizar as atividades e, enfim, teremos um projeto de Estado para o mar brasileiro, que hoje não existe”, diz Leandra Gonçalves, professora no Instituto do Mar na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e uma das principais articuladoras do PL 6.969/2013, desde o início de sua tramitação.
Nesta série de reportagens, que se estende pelas próximas duas semanas, você vai entender no que consiste a Lei do Mar, sua abrangência e seus principais instrumentos. Também vai saber porque a tramitação se arrasta há tantos anos e os motivos pelos quais tem sido tão difícil chegar a este “mundo ideal” citado pela pesquisadora da UNIFESP.
Mar sem fim
O Brasil possui cerca de 10 mil km de costa, 3,5 milhões de km² de áreas marinhas sob jurisdição nacional e mais 712 km² de extensão da plataforma continental. Esse conjunto de áreas, denominada Zona Costeira e Marinha Nacional, vai da foz do rio Oiapoque, ao norte, à foz do rio Chuí, no sul; e do limite dos municípios da faixa costeira, a oeste, até às 200 milhas náuticas de Zona Econômica Exclusiva (ZEE), a leste. Esta imensa faixa da ZEE também inclui a Reserva Biológica Atol das Rocas, os arquipélagos Fernando de Noronha e São Pedro e São Paulo, além das ilhas de Trindade e Martin Vaz, situadas além das 200 milhas do limite marítimo.
A zona costeira do Brasil compreende 442 municípios em 17 estados, sendo 18 regiões metropolitanas, onde vivem mais de 45 milhões de pessoas. O número representa aproximadamente um quarto da população do país.
Nesta vastidão de áreas está uma grande diversidade de ambientes, como recifes e corais, praias, manguezais, dunas, falésias, costões rochosos, baías, estuários, entre outros. Além de serem extremamente frágeis, muitos desses ecossistemas estão em processo de degradação, ou já bastante degradados, devido à crescente ocupação humana e aos mais diversos usos, como as atividades portuárias, petrolíferas, químicas, além da pesca, pecuária e agricultura.
Apesar de sua importância histórica em termos sociais, econômicos e ambientais, até pouco anos, o mar não era sequer classificado como bioma pelo Brasil. Quando foi proposta, em 2013, este era justamente um dos problemas que a Lei do Mar tentava resolver.
Em 2019, enfim, o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) incluiu o mar em seu Mapa de Biomas, classificando-o como Sistema Costeiro e Marinho. Mas os diferentes problemas na administração deste Sistema ainda não foram endereçados.
O imenso mar brasileiro sofre com uma gestão setorizada e fragmentada em diferentes órgãos e instâncias que não necessariamente conversam entre si; com a intensa pressão humana sob seus ecossistemas; e, mais recentemente, com a crescente ameaça das mudanças climáticas.
“Está clara a importância dos oceanos no equilíbrio ambiental global, nos regimes pluviométricos (e portanto de geração de alimentos tanto no ambiente aquático como terrestre), no equilíbrio climático, na captação e retenção de carbono, como via de comunicação logística, entre outras tantas funções essenciais à própria sobrevivência da humanidade. Portanto, a Secretaria vê como fundamental o estabelecimento de critérios de uso dos recursos neste Bioma”, defendeu a Secretaria de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), em nota enviada a ((o))eco.
Por dentro da Lei do Mar
Ao longo de sua tramitação, a Lei do Mar foi sendo atualizada e aprimorada. Depois da inserção do Sistema Costeiro e Marinho na classificação do IBGE, em 2019, não foi mais necessário que a Lei criasse essa definição, assim como a crescente ameaça das mudanças climáticas fez com que tal tema ganhasse mais relevância nas últimas versões do texto, por exemplo.
Em sua versão mais atual, a lei traz princípios e diretrizes que orientam e integram as políticas públicas setoriais sob responsabilidade das diferentes esferas de governo e traz instrumentos necessários para que o mar possa ser usado de forma equitativa, eficiente, compartilhada e sustentável por seus diferentes usuários.
“Essa Lei é um grande cardápio de estratégias, de políticas públicas, de princípios norteadores, que ajuda a criar uma articulação, para que possamos mudar nossa relação com o ambiente marinho-costeiro […] Atualmente existem muitos conflitos [de gestão] e a lei vem justamente para organizar tudo isso”, opina o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB – SP), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara dos Deputados.
No total, o PL 6.969/2013 traz 13 princípios e 21 diretrizes que devem ser seguidas para a formulação e execução de normas, planos, programas, projetos e ações referentes à Política Nacional para Conservação e o Uso Sustentável do Bioma Marinho. Apesar da preocupação trazida por diversos atores envolvidos na construção da Lei do Mar durante sua tramitação, principalmente a Marinha do Brasil, a norma não é proibitiva.
“A Lei do Mar não se sobrepõe [a outras legislações] nem proíbe nada, porque as proibições já estão presentes nas outras leis setoriais. Mas ele integra e traz princípios, como o do poluidor-pagador e o da precaução. Então ele é um texto meio que constitucional, que visa agregar e integrar, que era o objetivo principal da discussão”, explica a pesquisadora Leandra Gonçalves.
Além desta parte mais discursiva do PL, na qual os princípios e diretrizes são detalhados, o projeto também traz uma lista de instrumentos de gestão, que nortearão a forma como a Lei do Mar pode ser colocada em prática.
Um dos destaques dentre os instrumentos propostos é o Planejamento Espacial Marinho Nacional e Regional (PEM), que pretende ser um processo sistemático de avaliação da distribuição espacial e temporal das atividades humanas em áreas marinhas.
Com esse instrumento, busca-se: identificar as áreas mais adequadas para os vários tipos de atividades que são desenvolvidas no mar, reduzir impactos ambientais e conflitos entre tais atividades, disciplinar e compatibilizar usos, monitorar as atividades econômicas sobre o bioma e preservar serviços ecossistêmicos.
Pretende-se que, com o Planejamento Espacial Marinho, que sociedade civil e tomadores de decisão tenham acesso a dados de monitoramento, avaliação, controle e mitigação dos impactos causados no ambiente marinho e costeiro por atividades como a pesca e aquicultura, introdução de espécies invasoras, lançamento de esgoto urbano, funcionamento de portos e estaleiros, entre outras atividades poluidoras.
Atualmente, existem algumas discussões descentralizadas sobre a criação de Planejamentos Espaciais Marinhos em estados e municípios que compõem a costa brasileira. Com a aprovação da Lei do Mar, esse instrumento deverá ser colocado em prática por todas as cidades do nosso litoral.
“O Planejamento Espacial Marinho é um movimento que a gente tem visto crescer no Brasil. É uma iniciativa muito boa que vem subsidiada por discussões que emergem no âmbito da Unesco, na Comissão Oceanográfica Intergovernamental”, explica o oceanógrafo Alexander Turra, professor titular do Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo (IOUSP), coordenador da Cátedra UNESCO para Sustentabilidade do Oceano e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.
No total, a versão mais recente do PL traz 14 instrumentos de gestão, como relatórios nacionais de produção pesqueira e de espécies críticas e vulneráveis, por exemplo, além do já citado PEM. Mas este número já foi maior. Ao longo da sua tramitação, a parte normativa da proposta, na qual os instrumentos estão inseridos, bem como a definição de competências e governança, receberam mudanças muito significativas, na tentativa de alcançar um consenso entre os diversos atores envolvidos.
Um dos instrumentos que foram colocados de fora da versão mais atual disponível no site da Câmara foi o Fundo Nacional para o Bioma Marinho, que ajudaria na implementação desses diversos instrumentos propostos no PCNMar.
“O Fundo dá um aspecto de concretude à Lei do Mar, de forma que ela vá além das diretrizes. Acho importante que fosse mantido”, diz Suely Araújo, doutora em ciência política e especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima.
O motivo para a retirada deste instrumento do projeto seria a falta de competência dos autores do PL em legislar sobre o tema. Para Suely Araújo, no entanto, esse argumento não se sustenta.
“Eles [atores envolvidos no processo de construção do PL] começaram a alegar que criar Fundo é inconstitucional, é privativo do Executivo. Mas onde está escrito isso na Constituição? Não está! Na prática, não se cria por causa da pressão governamental. Nenhum governo gosta de Fundo, porque amarra demais”, explica.
Uma lei para o mar brasileiro
O oceano – no singular, como propõe a ONU, para enfatizar o fato que de se trata de um único bioma que impacta e é impactado por todos – cobre 71% da superfície da terra, fornece condições de vida para mais de 3 bilhões de pessoas, gera 30 milhões de empregos diretos e uma riqueza equivalente a US$ 3 trilhões todos os anos. Se fosse uma nação, o oceano seria a 5º maior economia do mundo.
Apesar disso, segundo relatório publicado em dezembro de 2020 pela Comissão Oceanográfica Intergovernamental da UNESCO, em média, apenas 1,7% dos orçamentos nacionais para pesquisa são direcionados para a ciência oceânica. O Brasil figura nas últimas posições do ranking, atrás de países como Bulgária, Irã e Ilhas Maurício.
Este cenário não é nada animador, já que a ONU estima que, até 2050, cerca de 300 milhões de pessoas sejam afetadas pela elevação do nível do mar devido ao aquecimento global, uma grande porcentagem delas no Brasil. Informação, pesquisa, conscientização e gestão integrada são fundamentais para enfrentar este e outros problemas que o mar sofre, dizem especialistas.
“Já passou da hora de o Brasil olhar para o mar como uma questão a ser enfrentada, como é com a Amazônia, o Cerrado e demais biomas. Devemos olhar para o mar de forma holística, integrada e conectada, e acho que a Lei do Mar vem trazendo isso”, diz a pesquisadora Ana Paula Prates, doutora em Ecologia Marinha e membro da Liga das Mulheres pelos Oceanos.
Para pesquisadores, parlamentares e membros de comunidades tradicionais, aprovar a Lei do Mar seria uma forma de o Brasil mostrar que está comprometido com os objetivos propostos pela ONU e com um futuro saudável e sustentável para o mar sob seu domínio e para a população.
Entretanto, já se passaram sete meses desde o lançamento oficial da Década do Oceano e, se quiser realmente pegar essa onda, o país vai precisar remar mais rápido.
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