Um aspecto fundamental ressaltado pelo relatório do IPCC é a necessidade de uma abordagem de governança das questões climáticas de longo prazo e orientada às gerações futuras. Isso porque, mesmo se as emissões parassem em meados do século e o aquecimento global cessasse, outras mudanças continuarão a acontecer
No dia 09 de agosto, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) publicou o seu sexto relatório de avaliação, integrando as descobertas de mais de 14.000 estudos e os resultados dos recentes modelos climáticos globais. Este relatório resume o que sabemos sobre as mudanças climáticas com base na ciência física e suas projeções em diferentes ecossistemas no planeta. Apesar da sua ampla importância, alguns pontos chaves merecem destaque e preocupação.
O primeiro deles é que agora é “inequívoco” que as atividades humanas aqueceram o planeta e isto já levou e continua levando a mudanças generalizadas e rápidas nos oceanos, glaciais e na superfície da terra. As temperaturas registradas são as mais altas em cerca de 125.000 anos (1,09°C acima da linha de base pré-industrial) e as concentrações de CO2 também são as mais altas em pelo menos os últimos 2 milhões de anos. Nesse cenário, os cientistas afirmam que neste momento não existe lugar do planeta que não esteja experimentando as mudanças do clima.
O relatório também apresenta um conjunto de projeções de cinco cenários plausíveis para explorar possíveis trajetórias de emissões de gases de efeito estufa, que levam a possíveis futuros de 1,4°C a 4,4°C de aquecimento global médio até 2100. Em todos os cenários, as mudanças climáticas terão efeitos que impactarão sistemas críticos (como temperaturas, padrões de precipitação etc.) e de infraestrutura que afetarão diretamente às pessoas. No nível regional – para a região da América Central e América do Sul –, o relatório projeta, com uma alta confiabilidade, o aumento das temperaturas médias e seu contínuo incremento a taxas maiores do que a média global. Também prevê, com alta confiabilidade, mudanças na precipitação média, com aumentos no Noroeste e Sudeste da América do Sul e diminuição no Nordeste e Sudoeste da América do Sul (confiabilidade média).
Estas projeções podem ser melhor entendidas se pensarmos nos efeitos que causarão sobre as sociedades humanas. Devido a estas variações, a ocorrência de desastres (eventos de início súbito) como furacões, deslizamentos, enxurradas etc., assim como a intensificação de eventos de início lento ou gradativo, como a desertificação, o aumento do nível do mar, derretimento das calotas polares, degradação de solos etc., serão cada vez mais frequentes e extremos. Isto afetará não apenas populações e infraestruturas, mas também impactará no acesso a recursos (água e alimentos) e a setores produtivos estratégicos, como a agricultura e a energia. Segundo o relatório, mesmo que o aquecimento global médio seja limitado a 1,5°C (o melhor cenário esperado), alguns eventos extremos sem precedentes ainda ocorrerão cada vez mais, o que irá exacerbar e complicar outros perigos globais como conflitos, pandemias, etc.
Os desastres e eventos de início lento como detonantes de deslocamento e migração
Neste cenário, os especialistas alertam que, a menos que ações urgentes sejam tomadas, os incêndios e inundações recordes, entre outros impactos experimentados em todo o mundo nas últimas semanas, serão apenas uma amostra das próximas décadas.
Com efeito, nos últimos meses fomos testemunhas de eventos extremos em diferentes partes do mundo que constatam o alerta dos cientistas. Em 16 de julho, chuvas extremas e enchentes em vários países da Europa central, principalmente na Alemanha, deixaram como resultado 126 mortes, mais de mil pessoas desaparecidas, cidades inteiras destruídas pelas inundações e deslizamentos, e milhares de pessoas evacuadas por possível colapso de estruturas. Uma semana depois, na cidade de Henan, na China, mais de 395 mil pessoas tiveram que abandonar suas casas devido às chuvas torrenciais que afetaram a região central do país.
A ocorrência destes desastres deixa em evidência um fenômeno ainda pouco visibilizado e abordado; contudo, cada vez mais recorrente: a migração ambiental. Apesar da palavra “migração” ser geralmente relacionada ao movimento de pessoas entre países, esta também pode envolver o deslocamento interno (dentro das fronteiras de um país), podendo inclusive ser forçada, tal como acontece após um desastre.
Neste cenário, devido à perda e afetação de infraestruturas essenciais (moradias etc.), indivíduos e famílias ficam desabrigadas e são forçadas a se deslocar a abrigos temporários. Apesar desta resposta imediata e de assistência frente ao desastre, muitas famílias perdem suas casas de forma permanente e são obrigadas a buscar um novo lugar para viver. Em muitos casos, com a perda de seus bens e em situação de vulnerabilidade, as famílias e indivíduos mais precarizados terminam se estabelecendo em áreas expostas, vulneráveis à ocorrência de novos desastres, gerando um ciclo perverso de constante exposição, afetação e deslocamento.
Devido a esta dinâmica, a projeção de aumento de eventos extremos e desastres constitui um importante alerta ao incremento de deslocamentos forçados que isto poderá implicar no futuro, e que já é uma realidade que se evidencia no presente. Segundo o último relatório do Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno (IDMC, sigla em inglês), só no ano de 2020 foram reportados 40,5 milhões de novos deslocamentos internos no mundo todo, dos quais 30,7 milhões (aproximadamente 75%) foram impulsionados por desastres.
Entretanto, não só os eventos climáticos súbitos e os desastres daí decorrentes provocam movimentos populacionais. Os denominados eventos de início lento, como o aumento de temperaturas, secas, desertificação, aumento do nível do mar, entre outros, também geram fluxos migratórios. Embora seus efeitos não sejam tão evidentes quanto os desastres (de início súbito), os eventos gradativos podem afetar indivíduos e comunidades inteiras de forma lenta, inviabilizando suas formas de subsistência e permanência nos seus territórios, configurando assim a figura do migrante e do deslocado ambiental. Devido a esta dinâmica, as populações mais impactadas por este tipo de eventos são as comunidades rurais, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, caiçaras, entre outras, cujas formas de vida dependem do manejo do território e da agricultura familiar, da pesca tradicional, atividades de subsistência.
Desafios frente às projeções climáticas e a migração como adaptação
Um aspecto fundamental ressaltado pelo relatório do IPCC é a necessidade de uma abordagem de governança das questões climáticas de longo prazo e orientada às gerações futuras. Isso porque, mesmo se as emissões parassem em meados do século e o aquecimento global cessasse, outras mudanças continuarão a acontecer. É o caso da elevação do nível do mar, o degelo das geleiras e do permafrost e a acidificação dos oceanos que continuarão e serão “irreversíveis” em escalas de tempo de séculos a milênios. Assim, mesmo que o aquecimento global seja limitado a 1,5°C neste século, o nível do mar aumentará 2 a 3 metros durante os próximos 2.000 anos no melhor cenário, e 19 a 22 metros em um cenário de emissões muito altas. Considerando estas projeções fica evidente a necessidade de se pensar nos impactos que serão causados principalmente em cidades e comunidades localizadas em zonas costeiras. Frente a esses casos, a migração se apresenta como uma estratégia de adaptação, na qual, frente à perda irreversível de territórios, indivíduos e populações terão de ser realocados a outros espaços mais seguros.
Outro desafio que pode ser extraído do relatório é a necessidade de se focar em ações preventivas e de planejamento que visem a médio prazo, a adaptação das populações aos processos de mudança que já estão acontecendo, em especial aqueles identificados como eventos de início lento. Nesse sentido, a migração, apesar de ser uma estratégia de adaptação, deve sempre ser olhada como último recurso para o enfrentamento às mudanças climáticas. Antes, devem ser esgotadas outras estratégias, sobretudo de soluções baseadas na natureza, que permitam às populações permanecerem e se adaptarem às mudanças nos seus territórios, evitando assim a perda de vínculos comunitários, territoriais e culturais.
Em relação aos desastres, a curto prazo, os governos e tomadores de decisão devem orientar suas ações não só na preparação das cidades para responder aos cenários projetados (com aumento de temperaturas extremas, secas prolongadas e intensificação de chuvas, deslizamentos e enchentes), mas também na atenção e erradicação das diversas vulnerabilidades sociais e econômicas que tornam às comunidades ainda mais vulneráveis aos impactos de um desastre.
A advertência está dada. Cabe aos governos tomarem medidas urgentes, radicais e transformadoras para eliminar os combustíveis fósseis, reduzir as emissões de acordo com sua responsabilidade e capacidade, e preparar suas populações para os cenários futuros, incluindo-as no desenho destas novas medidas e estratégias, e respeitando as diferentes formas de ser, viver e existir. Neste objetivo, será necessário exigir dos políticos e líderes corporativos assumirem sua responsabilidade e deixar de colocar seus interesses particulares acima das necessidades do coletivo e das gerações presentes e futuras. O compromisso não é apenas justo. É necessário e urgente.
Fonte: O Eco
Comentários