Pesquisadora líder do estudo que ganhou os noticiários de todo mundo ao sugerir que partes da Amazônia já emitem mais carbono do que removem da atmosfera devido ao desmatamento e às mudanças climáticas, a coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Inpe, Luciana Gatti, acredita que o cenário apontado no estudo ainda pode ser revertido. Em entrevista após a publicação da pesquisa na revista Nature, na última quarta-feira (14), ela comenta que é urgente não só fazer uma moratória do desmatamento, com política de desmatamento zero, como ainda ter grandes projetos de recuperação florestal nas áreas mais impactadas. Leia a seguir.
De onde veio a ideia de fazer um levantamento de longo prazo para testar essa hipótese de a Amazônia ter virado fonte de carbono para a atmosfera?
Esse estudo começou no início do LBA (Experimento de Larga Escala na Biosfera-Atmosfera na Amazônia, no final dos anos 1990) e se pretendia, então, responder o que a Amazônia representa no balanço global de carbono. Várias estratégias foram adotadas para tal, e a equipe de que faço parte adotou a estratégia de fazer medidas com avião de pequeno porte coletando um perfil vertical, que é um voo em espiral onde o pesquisador vai coletando frascos de ar a várias alturas diferentes, desde 4,4 km até uns 200 m acima da superfície. Começamos medindo apenas a Floresta Nacional dos Tapajós e por um período de quatro anos, mas nos demos conta de que, para responder o que a Amazônia representa no balanço global de carbono, era preciso estender não somente as áreas a serem analisadas (foram adicionadas outras três), mas também o período de análise. Estendemos o objetivo para uma década de medidas e, fazendo isso, observamos que as emissões de queimadas ultrapassavam em muito a absorção que a floresta conseguia fazer.
Além do efeito direto das queimadas e do desmatamento, o estudo apontou um efeito secundário da ambiental sobre a absorção de carbono pela floresta . Poderia explicar?
Já se sabe que acontece uma emissão direta com a queimada. No nosso método conseguimos, através do monóxido de carbono, separar o CO2 que veio da queimada e analisar o restante, ou seja, todas as emissões que não são de queimadas. Ali temos toda a decomposição da matéria morta, o desbalanço entre fotossíntese e respiração nos momentos de estresse e também outras atividades antrópicas que geram emissões. Olhando isso, começamos a querer entender quais os drivers que estavam influenciando esse processo. Para tal, fizemos também um estudo de 40 anos das temperaturas e precipitações, desmatamentos, etc. A primeira coisa que percebemos foi que as regiões mais desmatadas apresentavam mais perda de precipitação e aumento de temperatura, principalmente na estação seca (agosto a outubro). Nessas regiões com menos chuva, você observa um decaimento na absorção de CO2, emissões muito maiores de queima de biomassa, o que não ocorre em regiões onde a floresta está menos impactada. Somando Pará e norte de Mato Grosso, por exemplo, essas regiões estão em média 30% desmatadas e apresentam uma emissão de carbono total dez vezes maior do que a emissão no lado oeste, que em média está 11% desmatada. O impacto desse processo é muito grande e não é linear. Estudos mostram que, sob estresse, algumas espécies de árvore entram em hibernação, e aí elas param ou reduzem muito a fotossíntese, mas continuam com a respiração constante. Esse é um primeiro motivo para vermos que, por exemplo no Sudeste da Amazônia, mesmo nos meses sem queimadas diretas, já há emissão de CO2. Esse círculo vicioso faz com que se tenha redução de chuva, aumento de temperatura e uma inflamabilidade maior da floresta durante a estação seca.
Ainda é possível reverter esse quadro?
Essa é uma pergunta difícil de responder, mas não podemos deixar de tentar. Se olharmos o sudeste da Amazônia, vemos que essa é uma região de emergência. A floresta que não foi desmatada virou uma fonte de carbono porque a mortalidade está muito alta. É urgente não só fazer uma moratória do desmatamento, com política de desmatamento zero, como ainda ter grandes projetos de recuperação florestal nas áreas mais impactadas. Não é possível dizer se dá para recuperar ou não, mas eu acredito que sim. A natureza é muito complexa, e precisamos entrar urgentemente em um ciclo positivo, com mais evaporação de água, que irá reduzir as temperaturas, ajudando a amenizar as mudanças climáticas e assim favorecendo a recuperação da floresta.
Qual o impacto ambiental dentro e fora da Amazônia da maior emissão que absorção?
A estação seca na Amazônia esta cada vez mais seca, mais quente e mais longa. Isso causa um stress muito grande para planta, o que está aumentando mortalidade das árvores. Então, além de o desmatamento estar se intensificando, você tem menos árvores jogando vapor d´água para a atmosfera. Isso resulta em cada vez menos chuvas. Vemos claramente essa perda de precipitação no estudo de 40 anos e, juntamente com isso, um aumento exponencial da temperatura, principalmente na região sudeste, que é onde se somam dois efeitos: o regional do desmatamento e o global da mudança climática, que também está interferindo na Amazônia.
Quais são as consequências para as pessoas que vivem fora da Amazônia dessa transformação?
Estamos impactando a quantidade de chuvas não só na Amazônia, mas em toda região central e sul da América do Sul. As massas de ar que vêm do oceano e trazem umidade, precipitam na floresta e são as árvores por meio da evapotranspiração, assim como os rios e lagos, os responsáveis pela reposição das chuvas que chegam às demais regiões. Como estamos desmatando e promovendo essa mortalidade das árvores, isso pode significar uma redução de 25% a 50% de reposição de vapor de água na atmosfera.
Hoje já estamos tendo incêndios incontroláveis no Brasil inteiro, por exemplo. Nos últimos três anos o desmatamento acelerou muito e a redução de chuva também. Já é possível fazer essa correlação.
Como isso dialoga com a ideia de tipping point, o temido ponto de virada a partir do qual a floresta deixa de ser floresta? Dá para dizer que pelo menos no sudeste da Amazônia o tipping point já chegou? E no restante da Amazônia?
Antes é preciso ver qual o conceito está por trás do tipping point. Não dá para afirmar se esse cenário é reversível ou não, eu entendo que ainda podemos criar condições de recuperação da floresta. Mas está sim havendo processo de savanização no sudeste da Amazônia.
A sra. havia apresentado alguns resultados dessa pesquisa em 2018 na conferência de Katowice, na Polônia. Por que o artigo na Nature só saiu três anos depois?
Partes desse estudo vêm sendo apresentados no meio científico ao longo dos anos, em suas diferentes fases. Mas foram necessários diversos ajustes de métodos, validações, até que chegássemos, de forma confiável, às conclusões do atual estudo. Enquanto eu não tinha certeza do resultado, não me sentia confortável em apresentar as nossas conclusões. Queria que isso fosse feito com responsabilidade e confiança. Além disso, não queríamos contar para o mundo somente o resultado, a gente queria mostrar o que realmente estava influenciando este cenário, para ajudar a formular políticas publicas que visam reverter esse quadro.
Quais podem ser as consequências desse processo para as metas do Acordo de Paris?
O Brasil está andando na direção oposta do acordo, pois estamos só ampliando nossas emissões. Para reverter isso, em primeiro lugar o esforço a ser feito a nível nacional tem que ser muito maior. Em segundo, a solução que está sendo dada para a crise hídrica, a partir de termelétricas, só vai aumentar as emissões. Estamos indo na direção oposta em vários sentidos no Brasil, tanto nas políticas ambientais quanto nas de geração de energia elétrica e nas comerciais, com o país se colocando como um produtor de carne e grãos para o resto do mundo.
Fonte: O Eco
Comentários