Apesar dos esforços para conter as chamas que ainda avançam no Pantanal brasileiro e demandam atenção, é urgente planejar a recuperação do que foi destruído. É o que defende a pesquisadora Carolina Joana da Silva, professora da Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), e pesquisadora em um projeto de longa duração sobre recuperação de áreas degradadas no Pantanal, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
“Temos dados de plantas que estão nas áreas de preservação permanente (APPs) dos rios Paraguai e Cuiabá, e sabemos quais plantas precisam ser recuperadas. No entanto, acessar bancos de sementes para recuperar áreas é outra história. Estamos começando agora um projeto para coleta de sementes e recuperação”, explica, em conversa por telefone.
Cientista de formação, pantaneira e ribeirinha por nascimento, Carolina Joana da Silva nasceu na margem do rio Cuiabá, nos limites do município Santo Antônio do Leverger-MT. Aos 23 anos, foi estudar a biologia reprodutiva de espécies de plantas amazônicas e depois voltou ao Pantanal, onde se tornou pioneira nos estudos ecológicos da região.
Recentemente, publicou o livro “Povos e comunidades tradicionais e locais no Pantanal”, com o foco em integrar biodiversidade e comunidades locais na conservação do Pantanal.
Nesta entrevista para O Eco, Carolina traça um panorama sobre as queimadas e as consequência tanto para a biodiversidade, quanto para as populações humanas que vivem lá.
De forma geral, como os incêndios que têm acometido o Pantanal podem afetar a ecologia de suas áreas úmidas? Animais aquáticos como peixes e crustáceos também serão afetados?
Esses incêndios no Pantanal estão afetando profundamente a biodiversidade das plantas e dos animais, além das comunidades tradicionais. Cada dia que passa, mais recursos precisaremos para reverter as consequências dos incêndios. As estratégias que o governo federal usa são desastrosas, pois negam a gravidade da situação. Nós vamos ter os macrohabitats com alto grau de destruição, o que demandará esforços e custos elevados para restauração. Para mim, só neste ano a recuperação e restauração dos macrohabitats (cobertura vegetal) já vão exigir muito. Com toda a área perdida recentemente pelo fogo, não temos banco de sementes adequados suficientes, não estamos preparados para restauração nessa escala de perda. Não sabemos como e quanto o banco de sementes no solo foi afetado. Temos dados de plantas que estão nas áreas de preservação permanente (APPs) dos rios Paraguai e Cuiabá, e sabemos quais plantas precisam ser recuperadas. No entanto, acessar bancos de sementes para recuperar áreas é outra história. Estamos começando agora um projeto para coleta de sementes e recuperação.
A água também vai ser afetada, pois estamos com nível muito baixo nos rios e isso faz que muito material fique em suspensão, deixando a água mais turva. Isso dificulta a Produtividade primária bruta (PPB) e pode diminuir a disponibilidade de oxigênio na época da cheia, afetando a mortalidade de peixes. Essa redução do oxigênio também seleciona algas que chamamos de fitoplâncton. Essas algas são favorecidas por essa condição e muitas podem contaminar os corpos d’água. O crescimento exagerado dessas algas acarreta a perda de biodiversidade aquática, afetando desde produtores primários até a própria comunidade de peixes. Além disso, se pensarmos em predadores de topo, como onça, eles podem ser afetados de duas formas: serem queimados diretamente e perderem sua cadeia alimentar pelo fogo. O Pantanal é uma área úmida que abriga muitas espécies da fauna ameaçadas de extinção em outros biomas, pois esses animais encontram no Pantanal condições para se manterem no sistema. Mas quando essas áreas pantaneiras são muito afetadas por incêndios, não sabemos o efeito disso sobre a população dessas espécies.
Sabemos que você tem experiência em comunidades tradicionais do Pantanal. Poderia nos dizer quais são os prejuízos desses incêndios para as etnias locais que dependem do uso direto dos recursos pantaneiros? Como a educação e o conhecimento cultural sobre essas etnias podem ajudar a compreender as questões ambientais do nosso país?
No Pantanal existem seis etnias indígenas que vivem nas áreas úmidas. Temos o exemplo dos Bororos que habitam a terra indígena de “Elisa Cristina” que precisou ser retirada do local por causa dos incêndios. Isso aconteceu por conta da qualidade do ar que foi afetada pelos incêndios recentes. Hábitats de caça e alimento dessa etnia foram destruídos. Como os Bororos são ribeirinhos do rio São Lourenço, qualquer coisa que acontece nesse rio afeta a vida deles, pois dependem da pesca e dos recursos desse rio. Outra etnia que foi profundamente afetada é Guató, que são habitantes da baía do guató. Eu participei da delimitação da terra indígena deles, estive lá, eles são dependentes da pesca e são criadores de isca.
Eu fico chocada quando vejo alguns pesquisadores, que deveriam estar em defesa desses povos, atribuírem injustamente a estes a responsabilidade pelas queimadas na região. Ainda mais quando as imagens de satélites mostram que isso não procede. Esses pesquisadores não são diferentes do atual presidente, que incriminou e atribuiu a responsabilidade das queimadas aos índios e aos caboclos da Amazônia. Então, quando pesquisadores fazem essa atribuição, eu vejo que isso é fruto de uma mentalidade escravagista e preconceituosa. Vejo que nós educadores não estamos contribuindo com uma educação ampla no sentido sócia histórica e étnico histórica. Esse tipo de educação pode trazer a realidade do que aconteceu no passado para então entendermos nosso presente.
O que eu entendo é que mesmo as pessoas que nasceram aqui ou que vieram de fora para as cidades pantaneiras, muitas vezes não têm essa cultura da ancestralidade. São pessoas que apesar de terem estudado, desconhecem as suas origens, não têm uma educação capaz de respeitar as suas ancestralidades. O nosso futuro é dependente das questões ecológicas. Se nem a nossa base sócio cultural é fortalecida, como nós podemos ter respeito com outros seres que não são humanos?
Você também participou de estudos publicados na área educacional e turismo. A região tem potencial de ecoturismo pouco explorado? Você poderia destacar iniciativas no Pantanal que funcionam como extensão e educação ambiental para população?
Posso dizer que tenho uma experiência de educação com estudantes que pesquisaram aspectos relacionados ao conhecimento ecológico tradicional de aves e ao potencial turístico da região. Publicamos alguns materiais nesse sentido e no momento tenho um aluno de doutorado fazendo tese com turismo de onça. Ele está inclusive na linha de frente do combate ao fogo e do resgate de animais. Para mim, isso já é um trabalho de educação, mas para transferir isso até outros jovens é necessário mais apoio. Nós temos aqui no estado duas universidade públicas – uma é a UNEMAT, onde trabalho e outra é a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mas infelizmente não temos curso de turismo aqui na região, nós temos curso de turismo apenas em Nova Xavantina (MT) onde tem pouquíssimo potencial turístico.
Aqui nós temos a Chapada dos Guimarães e o Pantanal, mas não temos nenhum curso de turismo em universidade pública. Vejo isso como uma fragilidade imensa para a região, pois o ecoturismo tem potencial para se expandir e formar pessoas. Eu tive experiência na Barra de São Lourenço com as comunidades tradicionais que se envolveram e têm interesse de expandir suas atividades econômicas. A ideia nossa é que além da venda de iscas, tenham acesso aos parques onde poderiam desenvolver mudas de árvores e o ecoturismo. As comunidades tradicionais estão abertas a essas atividades e isso é uma interação que está crescendo no Pantanal. Mas para tanto, os proprietários teriam que mudar sua mentalidade para atender o turismo. Temos fazendas que fizeram essa opção de atender o turismo e que mudaram totalmente sua condição financeira. Muitas fazendas em Poconé-MT que continuam só focadas em gado estão praticamente falidas. Já as fazendas que aliaram a produção da pecuária com turismo, conseguem se manter e algumas recebem até premiações. Houve um avanço nesse sentido, mas nós não temos uma experiência consolidada para dar esse tipo de atenção também com as comunidades tradicionais. Ainda temos poucas experiências e uma delas é a pousada Baía de Mariana em Barão de Melgaço-MT, que fez uma ponte com a comunidade tradicional. Isso tem potencial para ser ampliado e fortalecer essas comunidades.
Sabemos que a perda da biodiversidade traz consequências econômicas inestimáveis para o Brasil. Os incêndios descontrolados podem afetar o potencial de uso do Pantanal por comunidades locais? Como práticas de bioeconomia usando a biodiversidade desse bioma podem gerar renda para comunidades locais?
Em relação à questão da bioeconomia ou economia de base local, nós podemos pensar em sistemas integrados para aquelas comunidades tradicionais que criam gado. Nós temos comunidades na beira do rio Cuiabá que têm uma tradição camponesa de agricultura. Mas essas comunidades não estão mais fazendo agricultura. Por condições do mercado, estão voltando sua produção apenas para a pesca, que está ameaçada pela quantidade extensa de hidrelétricas. Como nesse rio não há tantas espécies de peixes que possam ser compartilhadas, uma alternativa é a produção de sistemas integrados que unem mais de um tipo de produção. Os incêndios afetam esses sistemas e por isso podem afetar a renda das comunidades locais. Precisamos de programas de recuperação e restauração participativa em que essas comunidades possam formar bancos de sementes para vender as mudas de árvores e, assim, recuperar as áreas degradadas pelo fogo. Algumas cidades pantaneiras, como Poconé (MT) que é a que mais tem comunidades quilombolas na bacia do alto Paraguai, podem participar em projetos de sistemas integrados para a inclusão social. Com isso, há um incremento na renda das comunidades e também uma recuperação dessas áreas degradadas do Pantanal.
Temos a comunidade de São Lourenço atingida pelas chamas na foz do rio Cuiabá, pertencente à bacia do rio Paraguai. Além da pesca, essa comunidade possui habilidade em produzir isca e arroz nativo. Então há a possibilidade de um sistema integrado com autonomia econômica por meio da produção de mudas que podem ser vendidas. Também fizemos um trabalho com essa comunidade para identificar outras possibilidades de geração de renda. Por exemplo, existe a oportunidade dessas pessoas trabalharem como guias turísticos para observação de aves aquáticas. Colocamos toda uma infraestrutura e fizemos treinamento com essa comunidade. No entanto, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) recusou todo os produtos que fizemos para esses povos trabalharem. Ou seja, o ICMBio não apoiou a mudança de mentalidade de um turismo de pesca para um turismo etno ecológico de base biocultural. Esse tipo de atividade turística depende principalmente da administração do Parque Nacional do Pantanal. Se no passado as pessoas com poderes locais já dificultavam a implementação desse projeto, imagina agora com esse desmonte da política ambiental do país, incluindo as unidades de conservação. Uma dessas unidades da região que temos um PELD (projeto ecológico de longa duração) é a Estação Ecológica de Taiamã, e infelizmente está em chamas.
Segundo o ecólogo Fernando Fernandez em seu livro O Poema Imperfeito (2011), “o Produto Nacional Bruto (PNB) de um país, a medida mais usada para quantificar o tamanho de uma economia, pode ser definido como o valor de mercado de toda a produção do país, ou seja, o custo de todos os serviços que uma nação produz e vende, inclusive gastos governamentais. O primeiro problema óbvio desta medida é que a dilapidação irreversível do patrimônio de recursos naturais de um país não aparece no PNB. Por exemplo, todo o dinheiro gasto com extração de petróleo do solo ou do mar conta para o PNB, assim como toda gasolina que é vendida e comprada. No entanto, uma vez queimado o combustível, ele está perdido para o patrimônio natural do país e, portanto, como recursos para as gerações futuras, mas essa perda não é deduzida do PNB. Da mesma forma, toda a produção agrícola entra no cálculo, mas a perda irreversível de solo destruído por uso excessivo e erosão não; a produção industrial entra, mas a poluição não. É claro, todo e qualquer dinheiro gasto para tentar recuperar os solos, limpar a poluição, ou tratar das doenças geradas pela poluição, tudo isso certamente entra no PNB. Em resumo, o que se produz entra na coluna do positivo, o que se estraga para obter tal produção fica de fora, e o que se gasta para consertar o próprio estrago feito também entra no positivo”. Com base em seu conhecimento, pode comentar sobre essa forma de calcular o PNB? Hoje no Brasil existem outras formas de calcular a produção agrícola que não superestimem o agronegócio e se aproximem da sustentabilidade?
Vou responder pensando na externalidades que não são computadas no serviço do agronegócio. Mato Grosso é o estado que teve maior crescimento econômico nos primeiros três meses da pandemia, o que representa 15% no aumento do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços) devido à produção agrícola. No entanto, não foi computado as perdas envolvidas (externalidades) para chegar a essa produção no estado. Nós temos um alto consumo de agrotóxicos que gera doenças silenciosas que não estão sendo computadas. Temos também a questão de extração da água, a perda de solo e principalmente o uso da água para irrigação que é a atividade que mais consome água de todas.
Essa água é exportada sem custo para outros países, sendo que para nós, brasileiros, ela é perdida. Se o custo da perda de água investido na produção do agronegócio fosse computado, nós não teríamos esse PNB com valores altos. Então, nós não temos embutidos nessa produção a perda de água, nem a possibilidade de restauração desses sistemas. Para recuperarmos a mesma quantidade de água que é usada, nós precisamos “plantar água”. Em outras palavras, precisamos gerar sementes e mudas com diversidade genética para recuperar todo o sistema. Ainda não temos uma base científica para estruturar todas as áreas que precisam ser restauradas. Outros países da Europa também têm espaço para produzir, mas eles preferem comprar esse produto do nosso país, pois assim economizam água que é o “produto” (insumo) principal. Para mim o principal produto e riqueza que nós temos é a água, então essa água deveria ter valor imenso na venda. O maior produto que estamos exportando é a água, a soja para mim é o de menos. Então nós temos que valorar o quanto de água estamos investindo nessa produção agrícola convencional. Só assim poderemos saber se o agronegócio é mais vantajoso do que outras formas de produção agrícola para economia e sustentabilidade.
Fonte: (o) Eco
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