Não tem sentido o governo tentar resolver a inequação da crise fiscal através de programas de austeridade baseado no tripé do Estado mínimo, do equilíbrio das contas públicas e do controle do endividamento público, na expectativa que a sinergia dessas ações possa trazer para a arena econômica a retomada do crescimento, dos empregos de qualidade, da competitividade sistêmica, etc.
Por Paulo Haddad
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Coluna Follow-Up
A crise fiscal brasileira é de natureza estrutural. Não se trata dos déficits fiscais convencionais que emergem quando a economia desacelera o seu ritmo de crescimento e se configura um quadro recessivo. Nesse contexto, há uma crise conjuntural que mobiliza, para o seu equacionamento, algum tipo de política macroeconômica de estilo Keynesiano em defesa dos níveis da renda e do emprego. Uma prática de política anticíclica que vem se aperfeiçoando desde a crise de 1929, particularmente através da coordenação dos instrumentos e dos mecanismos das políticas fiscais e das políticas monetárias.
Podemos caracterizar a crise fiscal como estrutural através das seguintes etapas cronológicas:
1. após a reforma tributária Campos-Bulhões de 1965, o setor público atingiu um superávit primário em torno de 5% do PIB, o que significava a valores orçamentários de hoje algo em torno de 500 bilhões de Reais de recursos não vinculados, livres para financiar os gastos públicos programados anualmente;
2. os gastos públicos somados dos três níveis de governo eram relativamente pouco significativos (o ensino superior público federal, em 1968, tinha apenas 100 mil estudantes e os serviços da dívida pública não pesavam no total da despesa, como exemplos);
3. ao longo dos anos 1970, os gastos públicos de custeio e de investimentos programados, principalmente a partir do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), foram se acumulando, favorecidos também pelo aumento das receitas (impostos, taxas, contribuições parafiscais) dos três níveis de governo durante o ciclo de expansão do “milagre econômico” dos anos 1970; de 1950 a 1980, houve dois ciclos de expansão (o primeiro foi o Plano de Metas do Presidente JK) em que a economia crescia a taxas em torno de 7% ao ano e a base tributável crescia no mesmo ritmo;
4. as despesas públicas se aceleraram efetivamente a partir da implementação das políticas socioeconômicas e socioambientais previstas na Constituição de 1988, quando se definiram políticas públicas para um processo de desenvolvimento sustentável baseado no tripé do crescimento econômico globalmente competitivo, com equidade social e sustentabilidade ambiental; a título de exemplo:
as políticas sociais que representavam pouco mais de 3% na estrutura dos gastos públicos pré-Constituição se agigantaram, sendo que, atualmente, apenas três delas (Bolsa-Família, Lei Orgânica de Assistência Social e Previdência Social) realizam cerca de 35 milhões de pagamentos referenciados ao salário mínimo por mês; cerca de 8 milhões de alunos estão matriculados no ensino superior em 2023,sendo 25% em instituições públicas; a dívida pública bruta representa atualmente 75% do PIB, com custos crescentes nos seus serviços, etc.
5. emerge, então, um déficit crônico na estrutura orçamentária no setor público consolidado: despesas públicas aceleradas não encontram as fontes de fundos de recursos suficientes para o seu financiamento, pois com a desaceleração do crescimento econômico desde 1980 (de 2000 a 2022, o crescimento foi pífio, característico de uma economia semiestagnada); a base tributável, formada pelas condições gerais do PIB, da Renda Nacional, do Patrimônio Mobiliário e Imobiliário Privado, não consegue se expandir em ritmo compatível com a expansão das despesas públicas que cresceram geometricamente.
O quadro atual de descompasso entre uma avalanche de demandas para os custeios e os investimentos das políticas públicas e o volume de receitas fiscais e parafiscais defasadas pela base tributária, coloca a questão: como se processa e como deveria se processar técnica e politicamente a gestão orçamentária em tempos de crise fiscal?
Uma gestão racional: O orçamento de base zero
Winston Churchill (1874-1965) dizia que os sonhos dos planejadores morrem no orçamento. Com essa expressão, queria dizer que os programas, os projetos e as atividades dos planos de governo e das políticas públicas não chegam a ser implementados a não ser que haja recursos orçamentários em escala consistente para o seu adequado financiamento. Ao aprovar e anunciar para a opinião pública ações programáticas a serem financiadas com recursos imaginários poderiam ser classificadas, de acordo com Keynes (1883-1946), como “mentiras plausíveis de governos”.
Uma possibilidade racional de se efetivar o que se compromete nos orçamentos anuais e plurianuais das diferentes administrações públicas é a de proceder uma reprogramação endógena, ou seja, uma adequação das ações programáticas à realidade sinistra e inexorável das restrições fiscais e financeiras prevalecentes. A metodologia mais utilizada de forma radical para realizar essa reprogramação dos orçamentos tem sido a do orçamento de base zero.
Eleito em 1971 como governador da Geórgia, um dos mais pobres Estados dos EE.UU., o Presidente Jimmy Carter realizou uma administração bastante inovadora, embora tivesse sido escolhido por uma maioria de eleitores conservadores e racistas. Executou uma profunda reforma do setor público na Geórgia através de uma estratégia de planejamento estruturada a partir do orçamento de base zero.
Em 1979, o Governador de Minas Gerais resolveu complementar os bem- sucedidos programas de promoção industrial dos anos 1970 com novas políticas públicas voltadas para os grupos sociais mais pobres, para a agricultura de baixa renda e para as áreas economicamente deprimidas do Estado. Ocorreu, pois, uma oportunidade de se coordenar a execução de uma experiência plurianual de orçamento incremental de base zero. Vale dizer, todo o acréscimo real de arrecadação tributária ao longo dos quatro anos seguintes se destinou à implementação das novas políticas compensatórias sociais e regionais numa espécie de orçamento crescente, inovador e paralelo às funções tradicionais do Estado.
Novas experiências com orçamento de base zero têm se multiplicado entre as grandes organizações públicas e privadas de diversos países ao longo das últimas décadas. No Brasil, são as grandes corporações privadas que têm liderado esse processo quando adotam estratégias de baixo custo, de diferenciação de produtos ou de diversificação do seu escopo produtivo.
Diferentemente dos orçamentos tradicionais que são de natureza repetitiva, o orçamento de base zero não faz apenas pequenas variações nos orçamentos passados, mantendo sua estrutura de base. Na verdade, o orçamento de base zero permite incorporar a nova agenda de prioridades da sociedade nas políticas, programas e projetos ao longo do processo de alocação dos recursos escassos disponíveis.
Identifica e elimina atividades e funções programáticas obsoletas e socialmente inúteis. Amplia o grau de comunicação transversal e de interdependência entre políticas públicas de diferentes órgãos. Descortina oportunidades de privatizações, de terceirizações e de concessões de bens e serviços semipúblicos. Impõe a necessidade de que servidores públicos organizem suas metas e seus objetivos em função de sua missão, a partir de retreinamento metodológico específico.
De acordo com a metodologia do orçamento de base zero, nenhum órgão da administração direta e indireta dispõe, inicialmente, de cotas preestabelecidas ou corrigidas segundo regras uniformes. Deve haver uma sólida justificativa para cada programa, subprograma ou atividade a ser iniciada no orçamento a fim de ter acesso aos recursos fiscais. Essa função de reprogramação orçamentária deverá ser articulada com um projeto de Reforma do Estado, pois poderá resultar na desativação, na reordenação e na integração de programas e projetos de diferentes instituições do setor público.
Ocorre, porém, que no atual contexto político, em que há uma polarização política no Congresso Nacional, dificilmente seria possível realizar uma experiência de orçamento de base zero, pois:
a) a grande maioria das despesas se encontra vinculada restringindo o poder decisório para grandes mudanças na estrutura das despesas;
b) por trás de cada despesa, há algum interesse da sociedade civil organizada e politicamente mobilizada de natureza social, ambiental, industrial, produtivo e não produtivo, etc.;
c) as chances de se expandir a carga tributária de forma significativa para atender a avalanche de demandas da população são politicamente limitadas;
d) a resistência das lideranças políticas em realizar um processo de Grande Transformação da sociedade brasileira.
O Governo Federal passa, então, a tomar decisões de reprogramação orçamentária ad hoc,numa prática de equilíbrio fiscal e financeiro de acordo com as exigências da base aliada e não de acordo com as prioridades de planejamento, através de contingenciamento, do congelamento e de ajustes das despesas públicas. Como as despesas não vinculadas ou discricionárias dos orçamentos (OGU, PPA) são uma parcela quantitativamente pouca expressiva, o governo acaba desprezando os fundamentos da Rede de Precedência (sequenciamento, cadência, intensidade) na estrutura das despesas.
Vai se formando na opinião pública a percepção de desorganização da administração pública com a perda de qualidade dos serviços públicos, com a acumulação de mais de uma centena de obras iniciadas e não acabadas, com programas e projetos sem eficácia (fazer a coisa certa) e sem eficiência (fazer certo as coisas certas) dando a impressão na linguagem de planejamento em inglês de “muddling through” ou seja, “comprometer-se com a gestão de alguma coisa embora não estar organizado e não saber como fazê-lo”.
Sem saída?
De forma alguma. Não tem sentido o governo tentar resolver a inequação da crise fiscal através de programas de austeridade baseado no tripé do Estado mínimo, do equilíbrio das contas públicas e do controle do endividamento público, na expectativa que a sinergia dessas ações possa trazer para a arena econômica a retomada do crescimento, dos empregos de qualidade, da competitividade sistêmica, etc. Todas essas ações de um modelo de equilíbrio fiscal expansionista são necessárias e indispensáveis mas não suficientes para retirar o Brasil do que se denomina “a armadilha da renda média” e colocá-lo no rol das economias mais desenvolvidas do Mundo.
Ninguém financia ideias ou sonhos; os financiamentos ocorrem quando há projetos de investimentos com adequada rentabilidade privada ou social. Algum crescimento pode ocorrer durante os ajustes macroeconômicos enquanto houver ociosidade na capacidade produtiva. Mas, sem acumulação de capitais tangíveis e intangíveis não há como recolocar a economia brasileira na trilha do desenvolvimento sustentável.
A mudança de patamar de desenvolvimento do Brasil pressupõe que haja um novo ciclo de inovações científicas e tecnológicas, construído a partir do Terceiro Ciclo de Expansão do pós-II Grande Guerra, a partir de processos de planejamento de longo prazo. De outra forma, prevalecerá a gestão orçamentária atual, estabelecida através de acordo ao nível do Congresso Nacional entre os grupos políticos de centro-esquerda e os grupos políticos de centro-direita.
A funcionalidade principal desse acordo é a de evitar as veias abertas das crises sociais e políticas no sistema vigente. São eventuais pontos de ruptura entre os que carregam as sobrecargas emocionais e as penúrias das desigualdades sociais e regionais, dos serviços públicos de má qualidade, dos empregos e dos subempregos mal remunerados, entre tantas mazelas socioeconômicas e socioambientais que estão atingindo a população brasileira.
É evidente que a construção de um novo ciclo de expansão contribui de forma resiliente para o equilíbrio fiscal orçamentário pelo lado da receita. Trata-sede um estilo de gestão orçamentária de maior risco político, pois busca a complexa articulação entre políticas econômicas de curto prazo com políticas de desenvolvimento de longo prazo. E o tempo é o senhor das incertezas e dos riscos. Mas toda aventura requer um primeiro passo. Como diz Peter Drucker: há riscos que não podemos correr e há riscos que não podemos deixar de correr…
Paulo Roberto Haddad é um economista brasileiro. Formado em economia pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais em 1962. Fez curso de especialização em Planejamento Econômico no Instituto de Estudos Sociais em Haia Holanda 1965/1966. Professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. fundador e primeiro diretor do Centro de desenvolvimento e Planejamento Regional da UFMG. Publicou diversos livros e artigos em revistas especializadas no Brasil e no Exterior.
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