Belém e Manaus: duas cidades às margens da Amazônia que, diariamente, através de seus mercados fluviais como o Ver-o-Peso e o Adolpho Lisboa, exibem a rica tapeçaria da biodiversidade amazônica. Contudo, apesar dessa vitrine pulsante da economia local, o Brasil ainda tem um despertar lento para a bioeconomia o verdadeiro potencial que se estende por toda a Amazônia. A economia, calcada em produtos oriundos da biodiversidade e apoiada por tecnologias inventivas, permanece ofuscada por setores convencionais, muitas vezes ignorada pelas estatísticas oficiais.
Historicamente, a ênfase financeira e técnica, bem como os registros estatísticos, têm se concentrado em setores primários tradicionais. Estes focam principalmente em commodities agrícolas e minerais de baixo valor agregado. Infelizmente, esses produtos, que frequentemente demandam extensos espaços sem florestas, entram em conflito com o ambiente natural, intensificando a prática de desmatamento e emissões de gases de efeito estufa.
Contudo, uma mudança está surgindo no horizonte: a bioeconomia. Esse termo, embora debatido globalmente, tem sido visto como uma solução para romper com ciclos econômicos insustentáveis. O WRI Brasil tomou a dianteira neste debate, publicando relatórios como o “Nova Economia da Amazônia”, revelando que a bioeconomia da região é responsável por pelo menos R$ 12 bilhões anuais do PIB, considerando apenas 13 produtos.
Mas, o que exatamente define a bioeconomia? Não se trata apenas do produto final, mas sim do processo de produção. Além de serem nativos, os produtos devem ser cultivados preservando a floresta e os direitos dos habitantes locais. Os valores tradicionais e o reconhecimento dos conhecimentos indígenas são fundamentais nesse processo, garantindo uma distribuição equitativa dos benefícios.
A análise no relatório do WRI abordou dois produtos emblemáticos da região: o açaí e o cacau. Ambos revelam o potencial da bioeconomia na região. O açaí, por exemplo, evidencia como um produto pode transcender fronteiras locais, gerando renda em toda a cadeia produtiva, desde as zonas rurais até as cidades globais.
Esse crescimento foi impulsionado inicialmente por migrações de populações rurais para centros urbanos, levando consigo tradições alimentares. A inovação subsequente de uma despolpadora para processar o açaí permitiu sua popularização em áreas urbanas, atendendo ao paladar local e impulsionando sua presença no mercado.
A Amazônia, com sua rica biodiversidade e cultura, possui potencial imenso para a bioeconomia. A questão é: o Brasil reconhecerá e aproveitará esse tesouro oculto?
A “Açaízação”: As Faces Contraditórias do Mercado de Açaí Fora da Amazônia
Os anos 2000 marcaram um período de aquecimento e transformação significativos para o mercado de açaí fora da Amazônia. Dois arranjos produtivos, de natureza diametralmente oposta, começaram a competir pelo domínio do mercado.
Por um lado, havia o arranjo tradicional, voltado para atender a população local. Esse sistema era formado por uma teia de pequenas unidades produtivas dispersas pelo território, gerando emprego e renda na região e mantendo as técnicas ancestrais de produção da polpa do açaí. Em contraste, um segundo arranjo emergiu, focado nas grandes unidades industriais e impulsionado pela exportação. Este último, distante do gosto e tradições locais, introduziu processos e apresentações do produto mais alinhados com demandas externas.
Este segundo arranjo de produção orientado para exportação, apelidado de “açaízação”, adotou a monocultura de palmeiras de açaí, uma prática que não se alinha com a visão de uma bioeconomia sustentável e respeitosa com o bioma, como discutido anteriormente. Este insight foi corroborado por uma análise detalhada feita a partir da Matriz de Insumo-Produto de Contas Alfa (MIP-Alfa) pelos autores da “Nova Economia da Amazônia”.
Dentro desta matriz, descobriu-se que o arranjo industrial, voltado para mercados externos, é responsável pelo processamento de 47% da produção total de açaí, com um Valor Agregado (VA) de R$ 4,7 bilhões. Em contrapartida, o arranjo tradicional, voltado para o mercado local, processa a maior fatia, 53%, mas com um VA de R$ 1,08 bilhão. O panorama geral revela que 81% do valor agregado total é gerado internamente na economia do Pará.
Através da lente do emprego, os dados são igualmente reveladores. Em 2020, a economia do açaí gerou 164,4 mil postos de trabalho. Desses, a produção rural foi responsável por um impressionante 86%. Além disso, 2% originaram-se na intermediação primária, 3% no processamento artesanal da polpa e outros 3% no processamento industrial. As economias não locais contribuíram com os restantes 5%.
Em síntese, a cadeia produtiva do açaí no Pará não apenas se alinha com os princípios da bioeconomia amazônica, mas também exemplifica o equilíbrio ideal entre tradição e inovação. Mesclando práticas tradicionais com avanços tecnológicos, cria empregos extensivos e mantém a maior parte dos lucros dentro de suas fronteiras. Esta abordagem holística serve como um modelo para outras cadeias produtivas na região e além.
A floresta amazônica é reconhecida por sua rica biodiversidade e pelos produtos únicos que fornece. Açaí e cacau são dois desses produtos emblemáticos. No entanto, as trajetórias dessas duas cadeias produtivas são bastante distintas, ilustrando os desafios e oportunidades da bioeconomia na região.
Açaí vs Cacau: Duas Cadeias, Duas Histórias
A cadeia do açaí, com sua intricada rede de produção e venda, exemplifica um ecossistema econômico florescente, moldado pela demanda local e pela inovação contínua. Tem suas raízes profundamente fincadas na cultura e economia locais, beneficiando várias camadas da sociedade amazônica.
Por outro lado, o cacau, apesar de ser um produto nativo da Amazônia, não reflete a mesma trajetória de sucesso holístico. A maior parte da sua produção é canalizada para atender demandas externas, resultando em uma cadeia de valor menos integrada e com pouca inovação. O Pará, um dos principais produtores de cacau, apresenta um cenário em que os atravessadores dominam a cadeia de fornecimento, com pouco ou nenhum valor agregado localmente.
A Importância da Bioeconomia
Os estudos da “Nova Economia da Amazônia” sublinham a importância da bioeconomia na Amazônia Legal. Quando praticada corretamente, promove o crescimento econômico sustentável, oferece empregos inclusivos e, ao mesmo tempo, protege o frágil ecossistema da região.
O exemplo do açaí demonstra que a bioeconomia, quando moldada pelas condições locais e demandas, pode ser uma força poderosa para o bem. A cadeia do cacau, por sua vez, serve como um aviso. Mostra que, sem a estratégia e o foco corretos, até mesmo produtos nativos podem falhar em entregar benefícios socioeconômicos abrangentes.
Com uma estimativa de um PIB de R$ 38,5 bilhões até 2050, apenas com 13 produtos, a bioeconomia tem um potencial tremendo na Amazônia. É crucial que este potencial seja explorado de forma correta. Mais do que apenas uma fonte de renda, a bioeconomia sustentável é vital para a preservação dos serviços ecossistêmicos da região.
Para que a Amazônia continue a prosperar e a fornecer seus inestimáveis serviços ecossistêmicos, é essencial uma abordagem multifacetada. Governos, empresas e a sociedade civil precisam colaborar e promover uma bioeconomia que valorize tanto a economia quanto a ecologia.
Concluindo, a história do açaí e do cacau na Amazônia fornece valiosas lições. Demonstram a importância da inovação, da demanda local e da integração em todas as etapas da cadeia de valor. Mais importante ainda, destacam a urgência de adotar uma bioeconomia sustentável, para garantir um futuro próspero e equilibrado para a Amazônia e suas gentes.
*Com informações WRI
Comentários