Economistas do Ensaio Energético escrevem sobre como parcela mais beneficiada pela desoneração dos combustíveis foi a de maior poder aquisitivo
Artigo Opinião
A invasão da Ucrânia acentuou a alta de preços dos combustíveis pós-pandemia. No Brasil, a contribuição elevada dos combustíveis na inflação intensificou as discussões políticas acerca da precificação dos combustíveis e da tributação. A fim de frear a escalada dos preços dos combustíveis e um contexto de enfraquecimento da candidatura para reeleição, o governo adotou um conjunto de medidas, como isenção e redução de alíquotas.
Sob liderança do governo federal, foi aprovada a Lei Complementar 194/2022 em 23 de junho de 2022, na qual combustíveis, gás natural, energia elétrica e serviços de telecomunicações e transporte público foram classificados como essenciais e, portanto, sujeitos a teto que varia de 17% a 18% (dependendo da localidade) da alíquota do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Além disso, a proposta prevê que, caso a perda com a arrecadação ultrapasse 5%, os estados serão compensados pela União através do abatimento de dívidas. Ademais, os governos que não se endividarem terão a prioridade de realizar empréstimos com a permissão da União e poderão obter recursos adicionais no próximo ano.
Vale ressaltar que o ICMS representa a principal fonte de arrecadação dos estados, que têm a obrigação de repassar 25% do total arrecadado para os municípios. Como grande parte dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) é proveniente do ICMS, a lei 194/2022 assegura a compensação da União do mínimo constitucional da saúde e da educação para estados e municípios que perderem recursos [1].
A finalidade do Lei Complementar 194/22 é promover a diminuição dos preços dos combustíveis na bomba, reduzindo, assim, os gastos do consumidor final. Os críticos do projeto apontam que os prejuízos nos caixas dos estados podem reduzir investimentos em áreas como saúde, educação e outros serviços essenciais ao atendimento à população e que uma reforma tributária seria a melhor forma de enfrentar o problema.
Adicionalmente, o projeto reduziu a zero as alíquotas de CIDE-Combustíveis e PIS/COFINS — ou seja, desonerou os impostos federais incidentes sobre a gasolina comum [2], o etanol hidratado [3] e o etanol anidro, até 31 de dezembro de 2022. Estes tributos federais já tinham sido zerados para o óleo diesel e o GLP.
Após a aprovação do Projeto de Lei, todos os 26 estados brasileiros e o Distrito Federal reduziram a alíquota do ICMS (Gráfico 2). Assim, o Rio de Janeiro reduziu sua alíquota de ICMS da gasolina de 32% para 18%, São Paulo de 25% para 18%, Goiás de 30% para 17% e Santa Catarina de 25% para 17%.
O levantamento de preços da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), na semana do dia 10/07/2022 a 16/07/2022 mostra que o preço médio do litro da gasolina caiu para R$ 6,07, representando uma queda de 18% em relação ao preço do final de junho (Gráfico 1).
A evolução recente do preço médio
Com a sanção da lei, alguns estados optaram pela redução imediata das suas alíquotas de ICMS, como Espírito Santo, Goiás e São Paulo. Mesmo com o baixo número de estados que aderiram à redução no primeiro momento, o efeito imediato foi uma queda nos preços, sobretudo ao considerar a elevada participação do estado de São Paulo na composição das médias nacionais. O Gráfico 1, a seguir, ilustra a evolução do preço médio da gasolina no Brasil durante as quatro últimas semanas.
Gráfico 1 – Evolução do preço médio da gasolina no Brasil, em R$/litro
É possível perceber no Gráfico 1 que, com a progressiva adoção por parte dos Estados do ICMS reduzido, o preço médio da gasolina seguiu trajetória declinante. Também é possível verificar que o preço médio se aproximou do preço mínimo e se distanciou do máximo. Porém, tendo em vista a heterogeneidade entre as alíquotas de ICMS vigentes antes da sanção, a redução no preço variou bastante entre os estados.
Gráfico 2 – Queda média no preço da gasolina entre os Estados (19/06/2022 a 16/07/2022)
O destaque fica por conta do Distrito Federal, além dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Mato Grosso do Sul e Paraná, com preços recuando mais de 20%. O Rio de Janeiro, por exemplo, apresentava uma das maiores alíquotas entre as UFs, de 34%, o que ajuda a explicar a redução. No geral, o grande peso desses estados com quedas mais expressivas também reforça a explicação de o preço médio se aproximar do mínimo e se distanciar do máximo (Gráfico 1, acima).
Impacto da desoneração nos preços da gasolina e do diesel
O preço do diesel não seguiu o mesmo comportamento da gasolina e, por isso, foi pouco impactado, uma vez que a alíquota já era inferior ao limite instituído pela Lei Complementar. Nas últimas 4 semanas, o preço médio do diesel diminuiu apenas 1,3%. Assim, o preço do litro de diesel que foi historicamente inferior é atualmente R$ 1,50 superior ao litro da gasolina (Gráfico 3)[4]. Essa inversão de preços tem importantes impactos distributivos.
Gráfico 3 – Preços Finais da Gasolina e do Diesel S-10 – R$/litro
O diesel é utilizado no Brasil no transporte de cargas e no transporte coletivo de passageiros: 65% das cargas brasileiras são transportadas pelo modal rodoviário (CNT, 2022), utilizando diesel. Assim, o diesel é um gargalo do refino doméstico, implicando em importações, e o combustível tem grande influência no preço de fretes de mercadorias.
Por outro lado, o transporte público é um item importante de gasto das famílias mais pobres (Gráfico 4). O peso desse item na composição dos gastos dos domicílios com menor renda, até 2 salários-mínimos, é quase o dobro do peso nos domicílios de maior renda: mais de 10 salários-mínimos (IBGE, 2019).
Maiores detalhes sobre os efeitos do aumento nos preços dos energéticos (energia elétrica e combustíveis) no orçamento familiar, por faixas de renda, encontra-se no artigo publicado no Ensaio Energético por Raeder et al (2002).
Gráfico 4 – Participação na despesa domiciliar mensal com energia e transporte público por categoria (%)
Essas características implicaram em tratamento tributário privilegiado, com menores alíquotas que os demais combustíveis. Para evitar distorções de alocação, veículos leves não podem contar com motorização a diesel no Brasil.
Já a gasolina é predominantemente utilizada em automóveis para transporte individual. A posse de automóveis é fortemente influenciada pela renda domiciliar (Tabela 1). Enquanto apenas 15% dos domicílios mais pobres contam com automóvel, 87% dos domicílios de renda mais elevada detêm um automóvel ou mais.
Tabela 1 –Proporção de domicílios que possuem automóvel por faixa de renda (%) e quantidade média por domicílio (unidades)
Segundo os dados do IBGE (2019), o gasto mensal com gasolina foi de R$ 36 nos domicílios com renda de até 2 salários-mínimos e R$ 405 nos domicílios com renda superior a 10 salários-mínimos em 2018. Esses dados deixam evidente que a parcela mais beneficiada pela desoneração dos combustíveis foi a de maior poder aquisitivo.
Comparação internacional
Outro efeito da desoneração é que a gasolina brasileira se tornou mais barata em relação a de outros países. A globalpetrolprices.com disponibiliza preços da gasolina em 168 países, e o Brasil está na posição 47 no ranking de preços (do menor ao maior preço)[5].
Em geral, a gasolina é mais barata em países exportadores de petróleo e com menor nível de renda. A gasolina é mais cara em países importadores e com maior nível de renda, onde os impostos alcançam maiores alíquotas. Os países europeus caracterizam nesse último grupo. No entanto, a gasolina mais cara é consumida em Hong Kong (Gráfico 5).
Gráfico 5 – Preço da Gasolina no Mundo R$/litro – Julho 2022
O preço brasileiro é 16% inferior à média global (R$ 7,75/litro). Chama a atenção que a gasolina no Brasil é atualmente mais barata que nos Estados Unidos, país que taxa pouco o combustível e que sempre foi uma referência de preços baixos.
Preços mais baratos da gasolina também têm impacto na descarbonização dos transportes no Brasil. Em termos relativos, alternativas mais limpas como etanol [6], gás natural e eletricidade se tornam menos atrativas e as suas metas de difusão podem não ser observadas no futuro.
No contexto atual de preços elevados dos derivados do petróleo, os efeitos nocivos da desoneração nas finanças públicas e na transição energética serão atenuados. No entanto, como não é prevista a recuperação dos patamares anteriores em caso de queda do preço do petróleo, os impactos de longo prazo podem ser bastante significativos.
Artigo publicado originalmente pelo Ensaio Energético
Economistas – Luciano Losekann, Niágara Rodrigues, Edmar de Almeida, Francisco Raeder e Mônica Maria Apolinário Teixeira
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