Ao lado de Manaus, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro é considerada por ambientalistas como a mais sensível do Amazonas
A especulação imobiliária cresce na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro (RDS do Rio Negro). A área, que está a aproximadamente 78 km de Manaus, comporta 103 mil hectares de flora e fauna nativas e tem sido tomada por invasões de pessoas vindas de municípios vizinhos à Reserva, como Manaus, Iranduba, Manacapuru e Novo Airão, à procura de sítios e chácaras.
Oriundos, em sua maioria, dos centros urbanos mais próximos e em busca de um pedaço privilegiado próximo à cidade, procuram terras para compor sítios, pequenas plantações e culturas agropecuárias, além da aquisição de grandes lotes apenas pelo apelo imobiliário e expectativa de valorização – processo conhecido como especulação imobiliária.
A RDS do Rio Negro é uma Unidade de Conservação (UC) gerida pelo estado do Amazonas, ao menos no papel. Olhando de perto, parece ser terra de ninguém. Tão próxima a Manaus – a 50 minutos de carro, partindo da capital –, o cenário aparenta estar longe dos olhos fiscalizadores e governamentais.
Na parte terrestre, as rodovias AM-070 e a AM-352 ligam os municípios à Reserva. No caminho, o emaranhado de ramais, que permeiam grande porção da RDS do Rio Negro, unem a estrada à área da Reserva.
Num domingo chuvoso, me uni à parcela da população que atravessa a ponte do Rio Negro atrás de um balneário. Ao entrar na área protegida, a primeira imagem que surge, junto com a mata, são as dezenas de casas, lotes e propriedades bem delimitadas, nomeadas com sobrenomes de familiares e títulos de chácaras, ocupando o que deveria ser apenas área de vegetação nativa.
Sem identificação e sem cercamento algum, para quem não conhece a região, é difícil identificar os limites da reserva, onde começa e onde termina.
Em um dos ramais, conhecido como ramal do Uga-uga, uma placa tímida indica que estamos dentro de uma unidade de conservação. No entanto, é a quantidade de casas no trecho que confunde quem entra na unidade pela primeira vez.
A expansão urbana para o outro lado do rio era esperada com a construção da ponte do Rio Negro. Responsável pela RDS desde 2018, o gestor da Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) – órgão que faz a gestão da Unidade de Conservação, Miquéias Santos, admite que a área tem sensibilidades previstas pela facilidade de acesso: “Foi detectado que essa área seria uma das que sofreria maior pressão, isso no levantamento do EIA/RIMA (Relatório de Impacto Ambiental) feito em 2008. E a partir do momento que a ponte foi inaugurada, começou essa especulação imobiliária. É um local com muitos igarapés… então tem um apelo diferente”, diz Miquéias.
No entanto, o processo de ocupação começou bem antes da construção da ponte, em 2008. A cadeia de ilícitos ambientais iniciou com retirada de madeira ilegal de dentro da Reserva, quando a região ainda era uma Área de Proteção Ambiental (APA). “Eles (os madeireiros) contratavam um serrador, derrubavam uma área e retiravam madeira. O que sobrava da terra era vendida para olarias e o terreno vendido para sitiantes”, explicou o gestor. Entre Iranduba, uma região com muitas olarias, e Manacapuru, município com tradição de movelarias e serrarias, a localização da RDS oferece uma sensibilidade e vulnerabilidade distinta de outras UCs.
As ocupações desenfreadas tiveram contribuição da concessionária de energia (Amazonas Energia), que instalou cabeamento elétrico nos ramais. O acesso a energia permitiu que mais invasores e madeireiros abrissem mais ramais. As imagens de satélite de 2008, ano de inauguração da ponte, e de três anos depois são as maiores evidências do impacto e avanço humano.
Na esperança na valorização da área, muitas pessoas correram para adquirir uma terra do outro lado do rio e encontraram oportunidade dentro da Reserva.
A Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro é uma, entre as 42 Unidades de Conservação do estado. Ela não se enquadra na categoria Proteção Integral, mas ‘Uso Sustentável’ – assim abriga populações tradicionais e busca a integração do uso sustentável de recursos com a preservação da natureza, descrita na Lei 9.985/00, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC).
A RDS é de domínio público e desempenha papel essencial na preservação dos povos tradicionais e da biodiversidade local.
A facilidade e praticidade de transitar entre os municípios diferenciam a RDS do Rio Negro de outras também próximas à capital. A estrada é um dos motores do desmatamento e perecimento dos recursos naturais, teoria comprovada pelo pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Phillip Fearnside, no artigo ‘Consequências do desmatamento da Amazônia’. Perto da capital amazonense e cercada por centros urbanos, a pressão ocupacional é cada vez maior. Christina Fisher, analista ambiental e assistente da diretora técnica do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), ressalta: “Ela se tornou um dos lugares mais sensíveis e críticos, no sentido de que até tráfico de drogas existe na área. Pelo fato dela ser mais próxima, acarreta ter maiores investimentos para fazer cercamento, demarcação, mais servidores…”
Invadir, ocupar e desmatar uma Unidade de Conservação configuram uma série de infrações previstas pela Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) e no Decreto Federal nº 6.514/2008. A gravidade depende do caso e as penalidades também são distintas. A invasão e ocupação das terras da Reserva não são irregularidades que acontecem independente de outras, quase sempre estão aliadas a outros ilícitos, como ao desmatamento, retirada de madeira, caça e poluição. O fato de ocorrer dentro de Unidade de Conservação é mais um agravante para quem as pratica.
Dentro dos ramais, moradores – com medo de retaliação – pedem para não serem identificados na reportagem.
Dentro da Reserva, há as comunidades tradicionais e os ocupantes irregulares. Em sua maior parte, as comunidades que abrigam povos tradicionais estão localizadas às margens do Rio Negro, enquanto as ocupações irregulares, nas proximidades das rodovias AM-070 e BR-352.
O gestor da RDS descreve quatro perfis de invasores, que vão desde pessoas com mais poder aquisitivo a pessoas em situação de maior vulnerabilidade social: “Tem a pessoa vem à procura de uma terra de veraneio, pode ser um funcionário público por exemplo, é bem diverso – vai do policial ao professor; tem o madeireiro e seus suportes, que normalmente ocupam uma casinha no meio da floresta; famílias em situação de mais vulnerabilidade social que vivem da terra que ocupam e, algo que identificamos também, foi a presença de traficantes de drogas dentro da região”, explica.
Todavia, uma parcela dos irregulares luta para ter direito de morar dentro da RDS. Alguns ocupantes são famílias de baixa renda que vivem de agricultura familiar. As casas de madeira, galinhas, patos e pés de cupuaçu misturam-se com caminhonetes caras e grandes casas.
“Aqui, hoje, você compra terra de R$ 150 mil e a garantia da compra é um recibo de compra e venda” disse um morador. Na capital, equivale ao preço cheio de um apartamento em um bairro de classe média baixa.
Valdineia*, uma das moradoras de nome fictício, conta que nos finais de semana o som de músicas e a “zoada” desses sitiantes chega a ser ensurdecedora. Bêbados, chegam com armas para caçar, com carros cheios de pessoas e com tempo para gastar. E essa tem sido a maior preocupação da moradora: “Eu luto pelo direito de ficar, eu ‘pago o pato’ pelas pessoas que fazem coisas erradas aqui. Por eles, eu não posso ficar na minha área. Eles são espertos, deixam caseiros para ocupar as casas e quando um agente do governo vai lá, sempre tem alguém, as casas nunca estão vazias”.
Essa mesma moradora pega um mapa e circula duas áreas dentro da Reserva. “Aqui fica a base do madeireiro, aqui fica de outro… Eles têm um olheiro e alguém dentro dos órgãos, porque sempre que a fiscalização vem, eles já sabem”.
Segundo ela, as atividades ilegais que acontecem dentro da reserva impactam não apenas a natureza, mas a vida de todos os ocupantes, que além das intimidações dos madeireiros, lidam também com a presença de traficantes de drogas e fugitivos que rondam a área da Reserva.
Além deles, Valdineia diz que conhece ao menos duas pessoas que vendem terras dentro da RDS. “Duas senhoras. Do ramal 33 ao 25, é uma mesma senhora que vende vários lotes”. O ramal com maior extensão é o do 25 – como apontado no plano de gestão da unidade – com 61 casas e com a comunidade Vale da Benção.
“A população aqui sabe de tudo que acontece, mas tem muito medo de denunciar”, afirmou a moradora.
A venda de terras dentro da RDS se enquadra como estelionato – que de acordo com o artigo 171 do Código Penal (Decreto Lei nº2.848), é a venda ou permuta de um bem de outra pessoa como se fosse próprio.
Problema antigo
Foi apenas em 2017, com o som de motosserras e de imensas árvores sendo derrubadas chegando até as proximidades da comunidade do Tumbira, às margens do Rio Negro, que as ocupações irregulares e invasões mostraram a proporção que estavam tomando. Já distante da gênese do problema, os moradores das comunidades, assustados, denunciaram as invasões à Defensoria Pública do Estado.
E então, a SEMA, a Amazonas Energia e o Incra tornaram-se réus em um processo movido pelo Ministério Público Federal. Neste momento, o processo está em trâmite na Justiça Federal.
No entanto, esta não foi a primeira vez que os moradores procuraram as autoridades para relatar problemas similares.
Há treze anos, existe registro de uma audiência na Assembleia Legislativa do Amazonas em que os comunitários expuseram os crimes ambientais na recém-criada RDS do Rio Negro, descrevendo precisamente os mesmos problemas de hoje. A impressão é que nada mudou.
Na reunião, organizada em 2009 pelo então deputado estadual Luiz Castro (Rede Sustentabilidade), o presidente da Associação dos Pequenos Agricultores em Defesa do Meio Ambiente (Apadma), Jorge Batista Almeida, afirmou que várias denúncias foram encaminhadas aos órgãos ambientais e nada havia sido feito. Na época, o presidente tocou na exploração de madeira, outra grave situação encontrada na RDS: “Todos os dias, pranchas e pranchas saem para Iranduba, Manacapuru e Manaus. E quem compra essa madeira são as serrarias. Por que então não fiscalizam as serrarias?” indagou, na audiência de 2009.
A RDS tem oficialmente 600 moradores regulares, de acordo com as informações disponibilizadas no site Unidades de Conservação do Brasil. Estes estão enquadrados dentro da definição de povos tradicionais e viviam na área antes da criação oficial da unidade, em 2008.
Já o número de moradores irregulares pode chegar a superar os regulares. Existem ao menos 900 casas em ocupações ilegais dentro da reserva, segundo dados levantados pela SEMA. No entanto, após a primeira audiência oficial entre a Procuradoria Geral do Estado, a Defensoria Pública e os comunitários tradicionais, uma ordem de despejo foi expedida e muitas pessoas que ocupavam essas casas abandonaram as terras e deram início a um novo processo:
“Quando visitamos alguns ramais, em todas as vezes, a maioria das casas tem donos diferentes. Eles eventualmente descobrem que não podem ocupar a RDS, muito menos ter posse, vendem o terreno às pressas para outra pessoa, e assim o ciclo segue. Encontramos muitas casas completamente abandonadas”.
Entre os que ficaram, existe a família de Jânio Moura. Morador da Reserva desde 2010, ele e sua mulher, Lindomar Lopes, ocupam uma pequena área no Ramal do Uga-Uga, na comunidade de Santa Inês. Eles não estão enquadrados como moradores tradicionais, mas vivem do que produzem e cultivam na área. Quando a notícia do despejo veio, ficaram aflitos e surpresos. Diferente dos ‘sitiantes’, como são chamados os invasores que ocupam os locais por lazer, a família de Jânio sobrevive da terra que ocupa na RDS.
“Esse menino, que tem 10 anos hoje, nasceu aqui, foi criado aqui”, diz apontando para a criança risonha chamada Gustavo, seu neto. Uma casa simples, diferente de tantas outras que vemos no caminho do ramal, é onde vive com a família. “Cultivamos açaí, cupuaçu, plantamos algumas coisas… temos galinhas e até porco”.
Hoje, para tentar garantir a permanência desses moradores no local, foi realizada uma busca ativa e catalogação dos moradores atuais da Reserva para definir quem poderia se enquadrar ou não na categoria. Segundo a SEMA, essa listagem já foi finalizada e está em análise. No entanto, nesse meio tempo, a ocupação, venda e a consequente especulação imobiliária continuam crescendo.
Os pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Bill Magunsson e Albertina Lima, coordenam uma série de pesquisas dentro da RDS. Em 2020, conseguiram identificar, por uma das câmeras instaladas na região, um cachorro-vinagre, espécie rara e ameaçada de extinção.
As pesquisas são inúmeras: sapos, pássaros, formigas, solos… riqueza natural ao lado da maior cidade do Norte do país. No entanto, os projetos e os trabalhos dos pesquisadores são diretamente impactados pela situação da RDS: “Você não precisa fazer grandes esforços para ver o desmatamento e as caçambas de madeira saindo de lá. A gente, que vai com frequência até lá, está acostumado a topar com enormes caçambas de madeira, de terra”, ressaltou um dos pesquisadores.
Albertina e Bill descrevem a situação encontrada por eles em um igarapé da Reserva. A pesquisadora conta que uma invasão está tomando e poluindo um dos principais igarapés da reserva: “Regular ou irregular, essas pessoas não podem desmatar terras, retirar madeira, poluir a beira do igarapé, fazer construções, o que for… isso é crime. O argumento de que não foi decidido quem é morador ou não é furado, pois – ao menos – está estabelecido o que é proibido dentro da RDS”, conta Bill, que é complementado por Albertina: “Pelo menos nisso, pode haver atividade do órgão fiscalizador para multar as pessoas que estão na beira do igarapé! Imagina, pessoas desmatando a beira do igarapé principal! E então os gestores acham que isso não é sério? Tendo direito à terra ou não, não podem descumprir as regras da RDS”
O processo, que ainda está em trâmite judicial, pode definir um marco temporal para esses moradores e torná-los parte da Reserva: “O que a Sema alega é que precisa ter uma decisão jurídica, mas essa decisão não está saindo – o que indica que não tem pressão. Tem que ter pressão de algum lugar para sair. Se é só isso, é complicado, pois se sai a decisão jurídica, o pobre, o caboclo vai ter que sair. Mas estamos falando de pessoas com poder aquisitivo, advogados, empresários, pessoas que vão fazer essa decisão se arrastar até o Supremo. E então, pode levar 30 anos para sair uma decisão. O que acontece nesse meio tempo?”, questiona Bill.
Jânio Moura, o morador no Ramal do Uga-Uga, cruzou caminhos com os pesquisadores do Inpa. Desde o início das pesquisas, em 2015, ele e sua família são agentes ativos em todas as atividades desenvolvidas pelos pesquisadores. Seja na instalação das câmeras ou na captura de animais para catalogação, a ajuda é mútua.
A partir dessa conexão, a ideia do Ecoturismo dentro da RDS começou a crescer. Uma proposta que sugere alternativas sustentáveis para a preservação da Unidade. A Reserva abriga uma grande diversidade de ambientes, que trazem consigo uma riqueza de animais e plantas e, aliada com a proximidade da capital, pode apresentar um potencial turístico importante.
“Só a população de Manaus é suficiente para sustentar uma indústria de turismo muito grande, independente de outros estados e a RDS tem esse potencial”, fala Bill.
Albertina, faz uma ressalva: “É preciso ter governança primeiro. Os turistas poderiam não apenas beneficiar a RDS, como também todo o entorno, como restaurantes e outros empreendimentos. A vegetação da reserva é muito especial. Mas é como se estivessem matando uma galinha dos ovos de ouro”.
O que diz o governo
Em resposta aos fatos levantados pela reportagem, a Secretaria de Meio Ambiente afirmou que o objetivo das ações de regularização fundiária na RDS não consiste em retirar famílias que moram na área e que ajudam a proteger a UC, respeitando as formas sustentáveis de uso dos recursos, com atividades que se baseiam na subsistência, na agricultura familiar e demais atividades de baixo impacto ambiental, mas, sim, em mitigar ações de desmatamento florestal e outras atividades que objetivam a exploração indiscriminada da Unidade de Conservação. A pasta informou ainda que mantém reuniões periódicas junto às lideranças e organizações sociais locais, para obter apoio comunitário quanto às ocupações irregulares e ação de madeireiros.
Fonte: O Eco
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