Papado de Ratzinger talvez tenha sido o último a colocar antigo Ocidente cristão no centro do destino da igreja
Reinaldo José Lopes – Folha UOL
Quando Bento 16 renunciou às prerrogativas de chefe da Igreja Católica e se tornou o primeiro papa emérito da história, alguns analistas destacaram o risco que isso poderia representar para seu sucessor.
Francisco não demorou a mostrar que seu papado seguiria uma direção bastante distinta da adotada pelo pontífice alemão, e o temor era que o papa “aposentado” se tornasse um foco de atração para conservadores descontentes, emprestando seu prestígio a eles, ainda que involuntariamente.
Em grande medida, esses temores se mostraram infundados. Nos anos após a renúncia, Joseph Ratzinger não só fez questão de destacar que havia decidido deixar o cargo de forma totalmente livre como também evitou aparições públicas e declarações que pudessem ser interpretadas como críticas. Ele e Francisco passaram a se encontrar com relativa frequência, num clima de cordialidade
O concílio abriu as portas para que os idiomas de cada país substituíssem o latim na missa, para que católicos se engajassem num diálogo amistoso com as demais denominações cristãs e com outras religiões e para que a preocupação com a injustiça social ganhasse mais destaque na doutrina da Igreja.
De início, Ratzinger viu essa lufada de mudanças com otimismo, mas teólogos mais radicais tendiam a pintar o concílio como apenas o começo de uma onda mais ampla de transformações. Alguns defendiam o fim do celibato dos sacerdotes, a possibilidade de incluir mulheres no sacerdócio e a liberação do uso de métodos artificiais de contracepção.
Ratzinger, diante dessas posições mais radicais e da onda de rebeldia estudantil que afetou a universidade alemã onde lecionava no fim dos anos 1960, passou a defender que um “recuo estratégico” era essencial para garantir a integridade da doutrina católica.
Como figura pública, porém, Bento 16 sempre foi muito diferente de João Paulo 2º. Era injusto pintá-lo como especialmente preconceituoso ou belicoso, como nos memes infelizes que o transformavam, pela semelhança física, no imperador Palpatine de “Star Wars”.
Mas certa rigidez acadêmica o levou a fazer declarações que pareciam menosprezar o islã, por exemplo, provocando um mal-estar internacional que ele fez o possível para desfazer ao rezar numa mesquita turca.
Preocupado com a crescente descristianização da Europa, continente que via como essencial para o legado histórico da fé católica, ele podia passar a impressão de alguém que ainda se agarrava a fiapos de privilégios antigos, o que fez com que ele começasse a ganhar certo status de ícone para movimentos políticos que queriam um retorno à hegemonia política e cultural do cristianismo no Ocidente –embora ele próprio se declarasse um admirador da social-democracia europeia. Esse legado segue um bocado vivo.
Mas o grande “curinga” que talvez defina o que será desse legado, a carta cujos efeitos ainda são difíceis de prever, é a expansão católica longe do Ocidente, na África e na Ásia. O catolicismo nessas regiões, em vez de parecer acuado, está em franco crescimento em termos demográficos e de influência cultural.
É bastante conservador do ponto de vista dos costumes, mas suas preocupações dificilmente vão coincidir por muito tempo com as das “guerras culturais”. Com isso em conta, o papado de Bento 16 talvez tenha sido um dos últimos a colocar o antigo Ocidente cristão no centro do destino da Igreja.
O texto foi retirado originalmente por FOLHA UOL
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