A criação de um novo mecanismo financeiro, inspirado no Fundo Verde do Clima foi pedido pelo bloco de países pobres. EUA já sinaliza negar propostas enquanto ilhas ameaçadas pelo aumento dos níveis dos oceanos abandonam reunião
O G77, o bloco dos países em desenvolvimento, trucou as nações ricas na COP 27 na tarde de terça-feira ao desenhar a proposta de um fundo para bancar perdas e danos climáticos. O mecanismo financeiro seria construído nos moldes do Fundo Verde do Clima, o GCF, e deveria ter um comitê de transição definido já nesta COP para desenvolver os objetivos, princípios e modo de operação do fundo até o ano que vem.
O movimento pode ter vida curta, já que o enviado para o Clima dos Estados Unidos, John Kerry, tem dito a quem quiser ouvir em Sharm El-Sheikh que a maior economia do planeta jamais topará um fundo para perdas e danos. O tema tende a se tornar a peça de barganha central dos últimos dias de COP e a arrastar a conferência fim de semana adentro. Isso se os países-ilhas não saírem andando e implodirem o processo, coisa que ameaçaram fazer nesta quarta-feira nos corredores.
O tema de financiamento a perdas e danos é o mais delicado da COP27 e de sua resolução depende o sucesso da conferência.
Perdas e danos é um conceito introduzido em 2012 nas negociações de clima, após muita briga, segundo o qual países pobres precisam receber recursos financeiros, tecnologia e capacitação para lidar com eventos extremos aos quais já não cabe adaptação – como furacões mortíferos no Caribe, enxurradas nas Filipinas e enchentes no Sudeste Asiático.
Em 2019, na conferência de Santiago-Madri, foi definida a criação de uma rede de assistência técnico-científica e de capacitação para países pobres no assunto. Já foi definido em Sharm El-Sheikh que a chamada Rede de Santiago entrará em operação a partir do ano que vem. Mas só capacitação não basta para os países vulneráveis.
No ano passado, na COP26, na Escócia, ficou decidido que haveria um diálogo neste ano para criar um mecanismo financeiro sob a Convenção do Clima da ONU para mobilizar rapidamente recursos para perdas e danos. Um país arrasado por um ciclone, como Moçambique foi em 2019, precisa acessar fundos rapidamente para resgate e reconstrução, e um mecanismo dentro da Convenção do Clima para isso é considerado pelos países em desenvolvimento a melhor solução. Os fundos para isso seriam providenciados pelos países que causaram a maior parte do aquecimento global atual, os desenvolvidos.
Ocorre que os países ricos nunca gostaram dessa ideia. Eles acham que pagar por perdas e danos pode virar uma espécie de reparação ou compensação, como se estivessem assumindo a culpa pela crise do clima e produzindo provas contra si mesmos – e potencialmente se enrolando na Justiça no futuro, com pedidos multibilionários de indenização. Daí a rejeição ao mecanismo financeiro.
Na COP27, a proposta de financiamento para perdas e danos enfim entrou na agenda, mas vem sendo objeto de bloqueios em série dos EUA e de outros países ricos. Estes vêm propondo que se inicie mais um diálogo de dois anos sobre procedimentos para a criação do tal mecanismo, cuja estruturação só começaria em 2024.
Países em desenvolvimento querem sair de Sharm El-Sheikh com uma decisão sobre mérito e não sobre procedimento. Daí a proposta do G77 de criar um fundo nos mesmos moldes do Fundo Verde do Clima, inclusive com um comitê de transição formado por 35 membros (20 de países pobres e 15 de países ricos) para botar a estrutura de pé. Um negociador do bloco ouvido pelo OC afirma que, dada a oposição dos EUA, o máximo que pode sair da COP27 é a definição desse comitê. O diplomata não descarta, porém, que as nações-ilhas, países mais afetados pela mudança do clima, achem que isso não basta e implodam a COP. A ameaça circulou no começo da tarde de quarta-feira pelas vielas castigadas pelo sol do deserto do pavilhão da conferência.
Enquanto permanece o impasse, os países ricos acenam com um prêmio de consolação: um fundo criado por eles e mantido por eles, com o dinheiro que eles acharem que precisa ser aplicado e para quem eles decidirem.
Juntamente com o V20, o Fórum dos Países Vulneráveis, o G7, grupo das sete nações mais ricas, lançou na COP o chamado Global Shield, uma iniciativa chamada por um ministro de Gana de “Plano Marshall para o clima”. A empolgação da analogia contrasta com a magreza dos recursos destinados ao tal “Plano Marshall”: US$ 170 milhões em doação do governo da Alemanha. Compare-se isso aos US$ 30 bilhões de prejuízo estimado com as enchentes do Paquistão de 2022.
A ministra alemã do desenvolvimento, Sonja Schulze, apressou-se em dizer que se trata apenas de “capital-semente” para um fundo que ainda deverá crescer. O dinheiro será usado para reconstrução pós-desastre, limitação de danos e proteção contra eventos de início lento, como o aumento do nível do mar.
Mas nem tudo no Shield é dinheiro. Os países ricos também poderão contribuir “em espécie”, por meio de ajuda humanitária (que eles normalmente já dão), a “pacotes feitos sob medida” para este ou aquele país vulnerável. Citando Simon e Garfunkel, Schulze chamou o Global Shield de “ponte sobre águas turbulentas num tema altamente contencioso da negociação de clima”.
Negociadores de países em desenvolvimento acharam a jogada esperta. Por um lado, o Global Shield alivia a pressão das nações-ilhas e de outros países vulneráveis por um mecanismo definido nesta COP. Por outro, limpa a barra dos países ricos, acusados de não quererem falar sério nessa agenda.
Há precedentes nesse caso. Em 1990, diante de pressões para o estabelecimento de um fundo sob a égide da ONU para financiar a proteção ambiental nos países em desenvolvimento, as nações desenvolvidas criaram o GEF (Fundo Global para o Meio Ambiente), até hoje o maior do gênero no mundo. O fundo tem 40 doadores, inclusive economias emergentes, como o Brasil. É tudo o que os países ricos querem que aconteça hoje com perdas e danos: extrair contribuições de grandes emissores do mundo em desenvolvimento.
Fonte: O Eco
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