Embora não devam esperar pelos governos, e sim influenciá-los para “subir a barra”, as lideranças empresariais precisam trabalhar de forma conjunta com as políticas locais. Isso fica claro quando se olha para o principal gargalo da reciclagem no Brasil: fazer com que os resíduos cheguem nas estações recicladoras, o que envolve educação ambiental, questões culturais e sistemas eficientes de coleta e logística
Por Bruno Igel, Roberto S. Waack e Sergio Talocchi*
Ainda que nenhum grama de lixo plástico seja jogado no ambiente a partir de agora, os oceanos continuarão recebendo toneladas dele. Isso porque 109 milhões de toneladas encontram-se descartadas nos rios, prestes a serem despejadas nos mares em algum momento. Esta é apenas uma das informações estarrecedoras do mais recente relatório sobre o tema produzido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Global Plastics Outlook, lançado em junho.
Os oceanos, onde tudo deságua, retratam como a humanidade gere a poluição que gera. Por trás do jogo de palavras, a fotografia não é bonita: a quantidade de resíduos plásticos produzidos mais do que dobrou em uma década, passando de 156 milhões em 2000 para 353 milhões de toneladas em 2019, sendo que 30 milhões já chegaram aos mares. Somente em 2019, vazaram para rios, lagos e oceanos 6,1 milhões de toneladas. Não por acaso, a Organização das Nações Unidas definiu o Oceano como o tema da década (2021-2030).
Seja nas águas, seja em terra firme, a limpeza desses plásticos está se tornando mais difícil e cara a cada ano, pois eles se fragmentam em partículas cada vez menores e causam danos aos ecossistemas e à saúde humana, como foi abordado no primeiro artigo desta série. As principais águas minerais da Europa, por exemplo, já contêm resquícios de plástico.
Não é preciso ir muito longe. Pesquisa da Universidade Federal do Pará indica que a poluição plástica estaria espalhada por toda a Bacia Amazônica, considerando que foram encontrados, em média, seis pedaços de plástico dentro do corpo de 98% dos peixes coletados em nascentes e cursos d’água da região. Segundo cálculo do projeto Blue Keepers, ligado ao Pacto Global da ONU, cada brasileiro é responsável, em média, por 16 quilos de plástico que chega todo ano aos mares.
Os estudos revelam quão distante a humanidade está da economia circular: enquanto a produção global de plástico, se mantido o ritmo, deve praticamente dobrar até 2060, a atual taxa de reciclagem é de apenas 9%. O restante é incinerado (19%), disposto em aterros sanitários (50%), descartado em lixões não controlados, queimado a céu aberto ou vazado no meio ambiente (22%), segundo a OCDE.
Reduzir a demanda por plástico e melhorar a eficiência da produção são as soluções apontadas pela organização, lembrando que políticas coordenadas globalmente poderiam aumentar enormemente a parcela de resíduos plásticos reciclados nos próximos 40 anos – passando para 40%.
Embora os 38 países-membros da OCDE sejam os maiores consumidores globais de plástico, cerca de metade da demanda até 2060 passará a ser de países da Ásia, do Oriente Médio e da África – os quais já respondem por grande parte do plástico sendo despejados no meio ambiente. Basta ver os rótulos de tantas embalagens que chegam ao litoral brasileiro, trazidas por correntes marítimas.
O Brasil também tem uma imensa lição de casa a fazer, e uma delas é destinar corretamente os resíduos antes que atinjam o ambiente e os cursos d’água. Mas, no País, 40% dos resíduos ainda vão para lixões a céu aberto, contaminando ecossistemas e causando impactos diretos nas comunidades ao redor.
O País e o mundo já sabem o que precisa ser feito para combater este que é um dos maiores problemas ambientais do planeta. Mas como agir de forma efetiva e reduzir a distância entre a teoria e a prática? Este é um desafio que envolve a economia circular e a sustentabilidade como um todo.
Desafio este que se pode comprovar no encontro que marcou os 50 anos da histórica conferência sobre desenvolvimento sustentável. Participantes globais reunidos em Estocolmo em junho saíram do encontro com uma lista de declarações e a certeza de que as lideranças políticas, por si sós, não darão conta de implementá-las. Cada vez mais, as grandes empresas são vistas como agentes decisivos da mudança.
As lideranças empresariais precisam participar da solução dos problemas de forma proativa, sem esperar por regulações – até porque as normas seguem ritmos distintos em cada localidade, enquanto os problemas, em grande parte, são de ordem global.
Como aterrissar o discurso
Na questão do resíduo plástico, não é diferente. Embora não devam esperar pelos governos, e sim influenciá-los para “subir a barra”, as lideranças empresariais precisam trabalhar de forma conjunta com as políticas locais. Isso fica bem claro quando se olha para o principal gargalo da reciclagem no Brasil: fazer com que os resíduos cheguem nas estações recicladoras. Isso envolve educação ambiental, questões culturais e sistemas de coleta e logística que funcionem de modo eficiente.
O Brasil até apresenta bons índices de cobertura na coleta comum de resíduos sólidos, atingindo quase 100% em algumas regiões do País. Segundo relatório da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), o índice médio é de 92,2%, enquanto países do Sudeste Asiático e África têm índices por volta de 40% (o que ajuda a explicar a grande quantidade de plástico nos oceanos oriundo desses lugares).
Mas o alto índice de cobertura no Brasil não quer dizer que o lixo vai automaticamente para dentro do caminhão que passa na rua. É só andar em algumas regiões para ver grande quantidade de lixo nas ruas, na beira de córregos urbanos ou de afluentes de rios, esperando a próxima chuva para serem todos levados para as correntes de água. É preciso educação para que indivíduos, comércios e indústrias disponham o lixo no local e na hora certa, por exemplo. Além disso, há microrregiões que simplesmente não contam com coleta nenhuma, e regiões com maiores dificuldades, como a Norte e a Nordeste, onde o índice é próximo de 81%.
Embora as políticas públicas sejam fundamentais para garantir a infraestrutura de coleta de resíduos, proibir o despejo em locais clandestinos e dar formação educacional, elas ainda não são ágeis o suficiente para garantir a destinação correta no volume adequado.
Nesse contexto, grande parte da dificuldade de implementação das políticas públicas pode ser suprida por ações proativas das empresas, cumprindo, inclusive, o papel que lhes cabe na Política Nacional de Resíduos Sólidos, como a logística reversa. Além disso, faz com que lidem com as externalidades negativas, evitando que a sociedade pague por impactos gerados pela atividade produtiva. Empresas têm organizado ou fomentado modelos de coleta, sejam pontos de entrega voluntária, sejam cooperativas, para que estas aprimorem os sistemas de coleta em diversos contextos.
A experiência da Natura
A agenda da economia circular compreende reduzir a geração de plásticos, melhorar a sua reutilização e, como última etapa, reciclar. A Natura &Co é uma das grandes empresas voltadas a encontrar soluções para a problemática, adotando a estratégia para o uso de reciclados em embalagens. Um exemplo fora do Brasil é a sua marca The Body Shop, que trabalha com a coleta direta de plástico nas regiões litorâneas na Índia. E na América Latina, o uso de materiais reciclados se estrutura por meio do Programa Elos, que engaja e apoia cooperativas de catadores e outros atores da cadeia de reciclagem para o estabelecimento de cadeias sustentáveis de abastecimento.
No Brasil, as recentes iniciativas de recuperação de plásticos em regiões litorâneas para a linha Kayak têm inspirado a Natura para a aproximação com cooperativas e prefeituras municipais. Estas têm em comum a necessidade de dedicar alto orçamento à destinação dos resíduos, especialmente em época de temporada. Sem espaços adequados onde depositar o lixo no litoral, é preciso transportá-lo serra acima, fazendo com que a operação seja extremamente cara, desde o transporte para um local distante, até despesas com o uso de aterros.
A solução mais racional, portanto, é separar e, se possível, reciclar os resíduos localmente, o que pode ser feito em parceria com a iniciativa privada. No caso da Natura, esta é uma forma de a empresa exercer sua responsabilidade socioambiental, ao mesmo tempo em que auxilia a prefeitura a executar as políticas e obtém matéria-prima reciclada para suas embalagens por meio do fortalecimento de cooperativas de catadores. Esse processo de ganha-ganha-ganha é feito em parceria com a Wise Plásticos, que promove o acesso da Natura às fontes do material da forma mais adequada.
Também com o intuito de interligar cadeias de abastecimento de materiais reciclados, a Natura participa do Programa Recicleiros Cidades, do Instituto Recicleiros. O instituto busca municípios médios de 50 mil até 200 mil habitantes, que não têm coleta seletiva estruturada. A partir de uma assessoria prestada às prefeituras para qualificação desses territórios, conecta investimentos diversos, entre eles do setor empresarial, para tornar a ação pública mais eficiente. Enquanto o instituto ajuda a prefeitura a traçar as rotas logísticas, regulamentar e planejar a coleta seletiva por meio de política pública, a iniciativa privada estrutura o recebimento, processamento e a destinação correta desses materiais. Ao juntar as peças, as cidades passam a ter um modelo de excelência em coleta seletiva em alguns anos, com alto impacto social.
Está claro que as empresas não podem esperar as políticas públicas para começar a agir, ao mesmo tempo em que o setor público tem um papel fundamental no desenho e na efetividade de políticas, o que pode ser turbinado pela participação da sociedade civil organizada.
O case Kaiak
Quando a Natura se aproximou da Wise Plásticos, o primeiro objetivo era superar uma barreira: o uso de material reciclado por uma empresa cosmética. Havia uma questão técnica, a de que a resina fosse aceita dentro dos padrões de qualidade do produto cosmético. Depois, a Natura trouxe a ideia de criar uma conexão entre a marca Kaiak, fortemente identificada com a água e o mar, com a temática dos plásticos nos oceanos.
A partir disso, teve início o desenvolvimento conjunto com a Wise de uma cadeia de fornecimento que atendesse ao conceito do Ocean Bound Plastic (OBP), ou seja, trabalhar com fornecedores localizados em uma faixa de até 50 Km da praia, na qual o lixo plástico tem alta probabilidade de atingir o mar. Outro ponto de atenção da Natura é a região Amazônica, como as cidades de Manaus e Belém, onde fica evidente o ponto de conexão entre a poluição dos rios e a dos oceanos.
Hoje, pelo menos 50% do plástico utilizado nas embalagens do Kaiak Oceano é produzido com resíduo coletado em cidades do litoral brasileiro da região Sudeste. Funciona assim: as cooperativas de cidades litorâneas recolhem os resíduos plásticos, impedindo que cheguem até os oceanos, e os enviam para a Wise. O material pós-consumo é, então, transformado em matéria-prima para a composição do “ombro” e outras partes da embalagem. A empresa pretende utilizar, por meio desse processo, mais de 200 toneladas de plástico reciclado na produção anual dos frascos.
Além disso, a Natura optou por selar os cartuchos de Kaiak Oceano sem filme plástico descartável e anunciou que futuramente todas as embalagens da linha Kaiak virão sem filme, passando a contar com tampa de plástico reciclado. A meta é garantir que 100% das embalagens plásticas possam ser reutilizadas, recicladas ou compostadas com facilidade e segurança até 2030.
Qualificação da cadeia
Há, ainda, um diferencial, que é a qualidade da cadeia de fornecimento de materiais recicláveis. A preocupação da Natura é que as cadeias sejam rastreáveis e responsáveis, assim como a empresa faz com as matérias-primas da biodiversidade utilizadas nos cosméticos. A Natura não compra, por exemplo, qualquer açaí de qualquer fornecedor, é preciso avaliar as condições de trabalho e renda, profissionalização e formalização envolvidas no processo, ainda que os custos da matéria-prima sejam eventualmente impactados.
Ou seja, não basta encontrar o material ao menor preço para atender a uma determinada demanda de uso de material reciclado na embalagem. É preciso certificar-se de que as condições envolvidas no fornecimento respeitem questões trabalhistas e ambientais. Além de ser proveniente do litoral e deixar de poluir os oceanos, o plástico reciclável com que a empresa opera apresenta os predicados de rastreabilidade e condições sociais e trabalhistas adequadas. São observados requisitos como renda e segurança dos cooperados, e pode-se garantir que não há trabalho infantil, escravo ou insalubre envolvido.
Não é algo trivial. Encontrar o ponto de equilíbrio entre qualidade da cadeia e o custo operacional viável torna-se ainda mais desafiador quando se olha para a característica da cadeia de fornecimento de resíduos plásticos, que é bastante pulverizada e requer um trabalho extra de monitoramento. Mas as lições aprendidas são proporcionais ao esforço dispendido.
O exercício de qualificação de cadeia no caso do Kaiak trouxe aprendizados também para a Wise, que teve a oportunidade de aprimorar seu próprio sistema de homologação de fornecedores, tornando-o mais apto para atuar em outras frentes que vão além do litoral. As lições desse piloto, somadas à possibilidade de ganhar escala, contribuem para a evolução da cadeia do mercado de reciclagem como um todo.
Próxima fronteira
Nesse caminho evolutivo, há uma próxima fronteira a explorar, que vai além da limpeza do meio ambiente e do impacto social nas cadeias produtivas: trata-se da redução das emissões de carbono.
O relatório da OCDE indica quão significativa é a pegada de carbono no ciclo de vida dos plásticos em todo o mundo. Em 2019, os plásticos geraram 1,8 gigatonelada de gases de efeito estufa, ou 3,4% das emissões globais, sendo que 90% dessas emissões originaram-se da produção e conversão de combustíveis fósseis. Além disso, segundo o estudo, “microplásticos transportados pelo ar foram encontrados em regiões remotas, incluindo o Ártico, onde podem contribuir para o aquecimento acelerado por meio da absorção de luz e da diminuição do albedo da superfície da neve”.
O primeiro passo para lidar com essa questão é medir as emissões e a pegada de carbono. Todos os estudos já apontam para uma economia de carbono de no mínimo 50% perante a resina virgem, podendo chegar a 80%. Sempre que se avançar na agenda de reciclagem, isso vai se refletir em menor pegada de carbono, mesmo considerando as emissões no transporte da matéria-prima até as estações recicladoras. Mas este é um assunto que merece maior aprofundamento.
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*Bruno Igel é CEO da Wise Plásticos e Roberto S. Waack integra o Conselho. Sergio Talocchi é gerente de logística reversa da Natura
Fonte: Página 22
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