Projeto quer restringir apoio aos pequenos e médios produtores e priorizar critérios de mercado para pesquisa. Para justificá-lo, governo estrangula orçamento e fragiliza a empresa pública, entregando-a ainda mais ao agronegócio
Marcus Vidal, em entrevista a Katia Marko e Ayrton Centeno, no Brasil de Fato
Vem da agricultura familiar 70% da comida que chega à mesa dos brasileiros todos os dias. Mas um projeto tocado pelo governo Bolsonaro pode restringir o apoio técnico da Embrapa aos médios e pequenos agricultores. É o alerta do presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (Sinpaf), Marcus Vidal.
Nesta entrevista, ele conta que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária está sendo estrangulada desde o golpe parlamentar de 2016, algo que se agravou na gestão bolsonarista. O pior é que está em andamento um projeto que tenciona colocar a estrutura de pesquisadores e técnicos da empresa pública para trabalhar em projetos propostos e pagos pelo agronegócio. É algo que pode suprimir da Embrapa seu caráter de empresa pública e voltada para atendimento de toda a sociedade brasileira.
Porque é preciso defender a Embrapa como empresa pública?
Ao longo dos seus 49 anos, a Embrapa se tornou referência na pesquisa nacional e mundial. Hoje é ela quem domina o conhecimento na área de agricultura tropical, uma referência mundial em relação a essa área. Tem um papel importante também para a segurança alimentar e a soberania alimentar. Então, se tem agropecuária no país, tem um pouco de Embrapa. Às vezes, isso não aparece de uma forma clara.
A Embrapa tem essa participação no desenvolvimento de tecnologias para ocupar, por exemplo, o cerrado do Brasil. Para ocupar regiões onde antes não era possível fazer agricultura ou pecuária. Tem esse papel de articulação com a agricultura familiar e com a agricultura de exportação.
O que acontece hoje, é que há uma prioridade para o agronegócio e se deixa de lado, a agricultura familiar, não há tanta prioridade. Vem sendo acentuado ao longo de alguns anos mas, nesse governo Bolsonaro, é feito de forma muito mais agressiva. Eles (o governo) têm interesse em atender apenas aos grandes. E atuam também direcionando a carteira de projetos que a empresa tem para esse atendimento.
Este quadro não começou agora. Essa desvalorização (do trabalho de pesquisa) e o achatamento dos recursos começam lá em 2016, 2017, o que coincide com o governo Temer. E se prolongam de modo pior ainda no governo Bolsonaro. O que é possível dizer que a Embrapa perdeu de lá para cá em termos de recursos para a pesquisa?
A diminuição no orçamento da Embrapa se caracteriza, a partir de 2016, com o golpe, com o governo Temer. O orçamento vai caindo ao longo do tempo. Tem uma pequena recomposição em 2018 e 2019, e volta a cair em 2020, 2021 e 2022. Mas tem um detalhe: como há essa diminuição do orçamento, há também diminuição da execução do orçamento. Além do orçamento cair, ele não é executado até o final. Então, é uma questão que precisamos ter clara. Às vezes, subiu um pouquinho de um ano para o outro mas, quando se chega à execução desse orçamento, ele não é contemplado no valor integral.
A outra questão é que, com essa diminuição, também há uma diminuição dos recursos para a pesquisa e, aí, a proporção da folha de pagamento cresce em relação aos recursos para pesquisa. Claro, se está diminuindo recursos para pesquisa e a folha continua igual, a proporção vai aumentar. E aí falam então “Ah, estamos gastando muito com a folha…” O que não é verdade.
Em 2022, os recursos para despesas discricionárias estão 24% menores do que no ano anterior. O que vemos com isso? A empresa vai tendo menos recursos para poder atender a esse tipo de despesa. Então, começa a se fortalecer no interior da empresa o discurso de que é preciso captar recursos fora dela.
Então veja: vai se sucateando através do orçamento, vai se inviabilizando a capacidade da empresa conseguir desempenhar as suas atividades de pesquisa, e depois vai se construindo um discurso dizendo: “Olha, não tem recurso, nós temos que buscar fora, nós temos que buscar parceiros privados”. Ora, a diretoria da Embrapa alinhada com esse governo deveria buscar mais recursos públicos. Sabemos que o que financia a pesquisa no país, tanto na Embrapa quanto nas universidades, são recursos públicos. A iniciativa privada investe pouco ou quase nada em pesquisa.
No Brasil, pesquisa é pesquisa pública. Tem que ter recurso público se não a pesquisa não sai. Então, vai se construindo esse discurso mentiroso, de que precisamos fazer essas parcerias, e se desvia o foco: de que se deveria discutir sim mais orçamento público para uma empresa como a Embrapa que é 100% dependente do orçamento público. Não é a empresa que tem captação de recursos. Ela não vende a sua produção. Não é como as empresas de energia, como Petrobras, como Eletrobras, que têm uma arrecadação. Ela depende do tesouro e é preciso fazer essa discussão no orçamento público federal.
O que você está dizendo leva todo o jeito de um projeto. Há o sucateamento, o dinheiro apenas para a manutenção, (passando) a ideia de que a empresa é um cabide de empregos. Só paga salário e não tem pesquisa nenhuma. Parece justamente para encaminhar essa ideia que está rolando aí, que é a do projeto Transforma Embrapa…
Estamos vivendo isso hoje. É um projeto de desmonte do Brasil e é um projeto de desmonte da Embrapa, assim como acontece com a Petrobras e a Eletrobras. A Embrapa está dentro desse projeto de desmonte, mas com particularidades. Em cada empresa agem de uma maneira.
Na Embrapa, o chamado Transforma Embrapa é um projeto de desmonte que ardilosamente quer privatizar o conhecimento que se produz na Embrapa. Para onde que vai o conhecimento produzido? Ele é público? Ou ele é privado? Com o Transforma Embrapa querem colocar o conhecimento produzido e mais, os trabalhadores e a estrutura da Embrapa, para que sirvam à determinadas empresas que a contratariam para fazer as pesquisas do seu interesse. E os resultados dessas pesquisas ficariam nas mãos dessas empresas parceiras.
Estamos vendo uma disputa pelo conhecimento, aprofundada agora já no interior da empresa, utilizando seus recursos humanos e estruturais, para que esses resultados caiam nas mãos privadas daqueles que o financiam. Acaba com o caráter público da empresa.
O que vemos na Embrapa está refletindo essa disputa que estamos tendo no país?
Esta disputa vem ocorrendo de forma mais agressiva no interior da Embrapa. Com esse Transforma Embrapa, é contratada uma consultoria chamada Falconi. Ela faz consultorias para várias empresas públicas, no sentido de apontar para uma privatização, para uma desregulamentação, para uma terceirização. A Falconi é contratada mas não pela Embrapa e sim pela fundação de uma universidade e paga com recursos da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) e do Sebrae. Produz então o Transforma Embrapa, que tem as características encomendadas, e as características quais são? É dizer que precisa modificar a estrutura da Embrapa, precisa se enxugar os recursos humanos, concentrando-os em determinados órgãos internos e não mais usando a estrutura atual. Dizer que precisamos diminuir recursos nessas atividades internas como orçamento e licitações, querendo reunir setores de cada uma das unidades num único setor, concentrando aí esses recursos humanos. E fazendo com que se assuma esse discurso da racionalização, de que é necessário um enxugamento.
A Falconi aponta que a Embrapa precisa criar um núcleo de inovação tecnológica para fazer as parcerias encomendadas, esse balcão de negócios. Não é aquele tipo de privatização que estamos acostumados, tipo pega a empresa pública, vende para o privado. É uma forma mais elaborada. Não vai privatizar a Embrapa como um todo, pegar e vender mesmo, porque ela seria muito cara para aqueles que quisessem comprá-la. Vai se privatizar setores que produzem conhecimento para que este conhecimento seja usado de forma privada. Não será mais da sociedade brasileira o que se produz. Serão resultados que servirão aos interesses das empresas. E pode direcionar projetos também.
É um projeto que coloca os interesses das empresas públicas em função daqueles que são bilionários, do grande agronegócio exportador, deixando de lado o atendimento à sociedade. A Embrapa não pode ser uma empresa pública que atenda alguns. Ter essa visão é ser capturado pelos interesses do mercado. Uma empresa privada tem seus interesses privados, uma empresa pública tem que atender a todos.
Chama a atenção que a Falconi está sendo financiada pela Confederação Nacional da Indústria, a CNA, que é, no fundo, porta-voz do grande agronegócio. O que leva a uma dificuldade para os pequenos e médios produtores rurais serem beneficiados pelo trabalho da Embrapa, uma vez que ela estará trabalhando justamente para os grandes…
Acredito que esses interesses privados, do agronegócio, (envolvidos) na contratação dessa consultoria se refletiram no produto final apresentado pela consultoria. E nós não tivemos acesso a esse documento. Em nenhum momento, a diretoria executiva apresentou esse documento para ser discutido com os trabalhadores e trabalhadoras da Embrapa, para discutir com os seus cientistas, seus pesquisadores, seus analistas, seus técnicos e assistentes. O que se apresentou foram slides.
Fizeram sua apresentação com as diretrizes gerais, mas um projeto escrito e apresentando os números e as justificativas não aconteceu. Fomos buscar (o acesso) na justiça. Não conseguimos ainda ter acesso a esse projeto. Que está nas mãos da diretoria executiva, que já está implementando parte do projeto financiado para atender aos interesses de quem o financiou.
Então, o que acontece? É uma forma já de colocar os interesses privados dentro de uma empresa pública. Evidentemente, o pequeno agricultor, o médio agricultor, vai ficar de fora, vai ser excluído gradativamente do conhecimento produzido na empresa.
É uma privatização por dentro.
É uma privatização velada, mais ardilosa, mais inteligente do que aquela forma que a gente conhece que é mais aberta, pego a empresa aqui e vendo lá. Não, aqui o que interessa são os lucros e os setores essenciais da empresa. O que interessa é se apropriar do conhecimento que deve ser público mas de uma forma privada. E isso vai excluindo os pequenos e médios agricultores que não terão como pagar para ter acesso a esse conhecimento. E se usa a estrutura pública pra produzir isto de forma privada. E, depois desse acesso, a empresa (privada) lá que fez a suposta parceria é que vai acabar vendendo para os pequenos e médios. Veja o absurdo que estamos vivendo hoje.
Queria que falasses sobre os bancos de germoplasma, o que são, qual a importância deles, e se eles correm perigo com esse projeto?
Os bancos de germoplasma possuem material genético de diversas espécies vegetais e animais. Tem um valor inestimável. Algumas espécies já não existem mais ou estão bastante limitadas. Estes bancos são cobiçados por empresas privadas, nacionais e internacionais. Não sei se venderiam esses bancos. Mas o que pode acontecer é restringir essas informações para determinados interesses privados. É essencial que permaneçam na mão da Embrapa. Se perder seu caráter público pode implicar em risco para a soberania alimentar. Além dos bancos de germoplasma, vegetal e animal, temos os de micro-organismos.
Entrevistamos o João Carlos Costa Gomes, da Embrapa de Pelotas, e ele observou, para mostrar a dimensão desses bancos de germoplasma – algo como 160 no Brasil inteiro – que uma etnia, os Krahô, havia perdido um milho que cultivava desde tempos imemoriais, muito ligado a sua cultura, aos seus rituais. E foram encontrar este milho em um dos bancos de germoplasma da Embrapa…
É um acervo que pertence à sociedade brasileira, não pode ser privatizado, não pode ser vendido. Sempre há interesses internacionais em se apropriar de informação genética. É um fator de segurança alimentar e principalmente soberania alimentar. A soberania alimentar compõe a soberania do país. Não podemos ser um país soberano sem independência energética e sem ter independência na soberania alimentar também.
Principalmente no momento em que estamos vendo a fome aumentar no nosso país e que tantas campanhas tem sido feitas, tantas entidades estão envolvidas em levar comida à população. Mas agora o que se deve fazer? O sindicato já está desenvolvendo uma campanha chamada Embrapa pública, democrática e inclusiva. Como despertar essa indignação na população e a necessidade de defesa desse patrimônio?
O Sinpaf elaborou uma campanha “Embrapa pública, democrática e inclusiva”. Pública por que? Ela não pode ser uma empresa pública capturada pelo mercado. Há pressupostos para ser uma empresa pública. Não pode ter os seus projetos dirigidos para interesses privados, não pode ter essa configuração que querem dar com esse projeto Transforma Embrapa, que é um Deforma Embrapa na verdade. Tem que ser pública na acepção da palavra, servir ao público, res publica. É o caráter que defendemos. Tem que voltar a ser empresa pública.
Tem que ser democrática porque tem que ouvir a sociedade, os movimentos sociais, setores da sociedade, os quilombolas, os sem-terra, os pequenos agricultores. Tem que ouvir todos. E tem que ouvir também os trabalhadores e trabalhadoras. Essa questão de ser democrática, está ligada à questão pública. Se ela é pública, ela não é da diretoria executiva da Embrapa. Pertence ao povo brasileiro. Por ser pública tem que ser democrática. Serve a todos.
Tem que fomentar o debate interno. A diretoria executiva não pode perseguir aqueles que fazem divergência de opinião com ela. E tem que ser uma empresa inclusiva. Tem que incluir setores da sociedade que, muitas vezes, são deixados de lado. Não pode trabalhar só para aqueles que só pensam em commodities.
Tem que trabalhar para os agricultores familiares que produzem 70% da alimentação interna que temos no país e são responsáveis por garantir e estruturar à nossa soberania alimentar. A pobreza e a fome praticamente dobraram de 2018 a 2020. Tivemos um aumento de 11 milhões de pessoas com fome. Um terço dos brasileiros vivem na pobreza, são 63 milhões de pessoas. Então qual é o papel da Embrapa? Tem que ser um papel que reforce a produção de alimentos internos dada pela agricultura familiar. Tem que ajudar o país a combater a fome, como já fez no passado. Tem que ter isso como prioridade. O que que ela vai fazer?
Precisamos inverter as prioridades da Embrapa. Precisamos divulgar isto, nos articularmos enquanto sindicatos, movimentos sociais, ONGs, conversar com parlamentares, conversar com a sociedade, colocar a importância da Embrapa para a população.
Texto publicado originalmente por Outras Mídias
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