Aos poucos se aproxima a temida época do ano em que os incêndios se multiplicam e revezam as manchetes nos noticiários com dados assombrosos de hectares de áreas naturais consumidos pelas chamas. Antes do combate hercúleo ao fogo virar uma pauta inescapável, entretanto, há uma discussão ainda pouco feita no Brasil: a prevenção. Ironicamente, uma das melhores estratégias para prevenir é justamente a queima, que quando feita na época certa permite ter controle sobre o fogo e usá-lo de forma estratégica para eliminar o combustível presente na vegetação seca e criar barreiras contra incêndios. A queima prescrita, como é chamada esta técnica, é apenas um dos aspectos do Manejo Integrado do Fogo (MIF), abordagem ampla que promove a integração do conhecimento científico e tradicional e prevê estratégias tanto de prevenção quanto de combate ao fogo.
Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 11.276/2018 prevê a criação de uma Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo, mas enquanto a pauta segue parada no Congresso, pouco se avança nessa discussão na esfera pública. Para falar sobre o assunto, ((o))eco entrevistou a especialista Lívia Carvalho Moura, geógrafa e assessora técnica do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), que atua junto às comunidades no resgate do saber tradicional do manejo do fogo. A pesquisadora defende a importância do país investir na prevenção e no Manejo Integrado do Fogo como a estratégia mais eficaz para diminuir os incêndios e seus prejuízos, tanto ambientais quanto econômicos, e reforça que é essencial combater a desinformação que existe sobre o que é o MIF.
Confira a entrevista completa:
((o))eco: O Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) trabalha historicamente com comunidades tradicionais. Como começou a atuação da ISPN na área do Manejo Integrado do Fogo (MIF)?
Lívia Moura: O fogo nessa última década tem piorado, com mais casos catastróficos de incêndios. Isso chama a atenção das comunidades, assim como do órgão público, para essa questão que se tornou um problema, não só de prejuízo ambiental como para as propriedades privadas e para as comunidades tradicionais. Isso faz ter uma procura maior por soluções. E a situação está ficando mais crítica com as mudanças climáticas – o aumento na temperatura e a mudança no período de chuvas – e com o desmatamento. Os incêndios estão sendo agravados, especialmente pela origem criminosa, que tem muito a ver com o desmatamento, não só na Amazônia, mas no Cerrado também. As comunidades vêm percebendo isso e demandando mais apoio para poder lidar com essa situação. E foi assim que o ISPN entrou mais a fundo nessa agenda, pela demanda de organizações de base comunitária.
O uso do fogo, na época certa, para renovar pastagens ou limpar cultivos é um saber tradicional perdido em muitas comunidades. Vocês também têm trabalhado nesse sentido de resgate da tradição do manejo?
Isso. Houve uma política de fogo zero, desde o período colonial até hoje, e a maioria das áreas do território brasileiro são proibidas ou só podem fazer uso do fogo com autorização prévia, que é muito difícil conseguir. Quem faz e não tem essa autorização é multado. Então ao longo de séculos, com essas proibições e as pessoas sendo penalizadas, o costume que as comunidades tradicionais e rurais tinham de fazer uso do fogo para manejar suas terras foi se perdendo, essas técnicas de manejo e esse saber foi se perdendo. Não em todos os territórios. Especialmente nas terras indígenas, mas não em todas, houve continuidade porque eles têm uma certa autonomia para fazerem o manejo da terra.
A partir de 2014, quando começou a ser implementado, o Manejo Integrado do Fogo resgatou essa noção de que antes não havia problema com o uso do fogo, porque era manejado pelas comunidades. Com a proibição, que impediu que elas fizessem esse manejo, a situação piorou. Porque são áreas que ficam sem manejo, acumulando combustível e quando chega no final da estação seca, as origens criminosas de incêndio fazem com que essas áreas queimem – inclusive áreas desses produtores que costumavam fazer o manejo. É uma coisa cíclica que foi se agravando. E o conhecimento tradicional foi resgatado junto com o Manejo Integrado do Fogo, porque se reconhece que essas comunidades faziam esse manejo, que era adequado e que evitava a queima de áreas extensas. Eram áreas pontuais que queimavam e que protegiam outras. Isso dava certo, então a gente tinha que resgatar e voltar a usar isso como técnica para evitar os grandes incêndios. Esse é um dos aspectos do Manejo Integrado do Fogo.
É muito simbólico o papel das comunidades tradicionais e locais em toda essa movimentação pela melhoria de políticas públicas. A gente precisa resgatar e lembrar nossa sociedade do quanto o manejo é importante, o quanto as comunidades sempre o fizeram com controle e o tanto que elas não têm intenção de queimar. Porque quando o Salles [Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente] e outros políticos falam que são as comunidades tradicionais e os povos indígenas que estão provocando os incêndios, é muito absurdo, porque essas comunidades dependem da terra e da produção da terra pra sobreviver. Como é que você queima aquilo de que você depende? É que nem você por fogo na sua casa ou na sua vizinhança. Essas pessoas que estão ali na terra são as que mais entendem sobre como manejar e proteger aquele território, a gente deve esse mínimo de reconhecimento a elas. Uma das nossas ideias de projeto é fazer um manual de boas práticas do manejo do fogo para tentar fomentar esse tipo de divulgação.
Isso vale para o Brasil inteiro e para todos os biomas?
O manejo do fogo está presente em todos os biomas, mesmo em florestas, e não quero apontar só para as comunidades tradicionais ou indígenas porque temos comunidades locais, proprietários de terra, que também fazem o uso de fogo como uma ferramenta, porque é mais barata e mais fácil. E mesmo nas áreas florestadas o manejo com fogo é normal para essas comunidades e tradições. A questão é a área que se queima e a forma como você maneja essas áreas florestadas ou outros tipos de ambientes. Na Caatinga, é diferente de áreas no Cerrado. Cada tipo de vegetação, cada tipo de fitofisionomia que você tem nesse lugar, vai fazer aquela área ser manejada de um jeito diferente, mais adequado para sua realidade. Na floresta, não eram grandes áreas que eram manejadas com fogo, eram áreas pontuais para que as pessoas pudessem ter suas roças, fazer seu cultivo e tirar o seu sustento. Esse manejo é diferente do que se faz no Cerrado, onde o manejo não tem só esse caráter de produção, mas também o caráter de proteção. As comunidades que estão ali sabem que se elas não fizerem o manejo do combustível – e o combustível é entendido como a biomassa, toda a matéria orgânica produzida, especialmente por gramínea e vegetação herbácea –, se eles não fizerem esse controle, esse manejo, quando essa vegetação secar ela põe em risco toda a comunidade, toda a produção plantada, tudo aquilo que está sendo cultivado. Essas comunidades também fazem coleta e extrativismo de áreas florestais, nas matas ciliares, matas de galeria, veredas, e queimar esses ambientes é queimar o próprio sustento, pois eles tiram renda desses lugares e se queima, o prejuízo é muito grande porque não são áreas adaptadas ao fogo. Então a estratégia de manejo no Cerrado é bem diferente, digamos, de uma área na Amazônia, ou de uma área na Caatinga, mas em todos os biomas existe o uso do fogo e existe essa demanda. A questão é que são lugares que têm que ser manejados de maneira diferente.
O que compreende o Manejo Integrado do Fogo (MIF) e por que é uma boa estratégia investir nele?
O Manejo Integrado do Fogo é uma estratégia internacional que já foi implementada por outros países, como o caso da Austrália, da África do Sul e outros países da África. O MIF é implementado por esses países, inclusive o Brasil mais recentemente, para reduzir as áreas atingidas por incêndios, entre outros objetivos. O quê que ele usa para diminuir as áreas atingidas pelos incêndios? A confecção de aceiros, que já é uma estratégia utilizada amplamente aqui no Brasil, as queimas prescritas, que é uma técnica utilizada para proteger de forma estratégica áreas que não devem queimar, e as técnicas também de combate, para combater incêndios não desejáveis. Porque a queima prescrita é uma queima controlada que você tem a intenção de queimar, já o incêndio é um fogo que você não quer que ocorra. Outra estratégia dentro do Manejo Integrado do Fogo é restaurar as áreas atingidas ou impactadas pelos incêndios. E todas essas práticas você incorpora e traz o conhecimento tradicional, as práticas e técnicas tradicionais, para fazer esse manejo. E cada lugar vai ter sua especificidade, você precisa entender como funciona a dinâmica do lugar por meio do conhecimento das pessoas que estão ali. Esse é um componente importante e por isso o manejo é integrado, porque ele traz o conhecimento das comunidades tradicionais, o aspecto da conservação da natureza e traz também a parte da pesquisa – porque toda essa abordagem do Manejo Integrado do Fogo é pesquisada e incorpora o conhecimento científico para dar suporte e fomentar o tipo de manejo que deve ser feito em cada ambiente.
Cada bioma, cada fitofisionomia tem uma necessidade diferente. E alguns ambientes não têm que ter fogo, né? O MIF é proteger os lugares que não podem queimar porque a vegetação é sensível ao fogo e queimar aqueles que dependem do fogo para se manter, que é o caso do Cerrado, por exemplo, ou do Pantanal, mas é queimar no momento certo. O momento certo é entendido como aquele em que você ainda tem controle sobre a queima, com uma situação em que as condições meteorológicas e o acúmulo do combustível permitem que você ainda tenha o controle sobre aquela atividade de manejo. A partir do momento em que você deixa de ter o controle, isso já é visto como uma atividade ruim e um risco que você não deve correr.
“Já é provado cientificamente que as emissões de gases de efeito estufa em incêndios no final da estação seca são muito maiores do que nas queimas prescritas no início da estação seca”
Como é essa janela para realização das atividades de queima prescrita?
Geralmente as queimas prescritas são feitas no começo da estação seca porque no final, no auge, é quando você não tem mais esse controle, que é quando está muito seco. Existem todas essas atividades de planejamento, de verificar cientificamente que tipo de vegetação pode queimar, o que que é melhor, de que forma… Que se soma ao conhecimento da comunidade que está ali naquele lugar. Essa janela varia de região para região. Por exemplo, no Maranhão essa janela é muito curta. Se você não fizer até maio, junho, já é perigoso fazer uma queima prescrita. Então tem que ser feita em abril, maio. Já no Xingu, também tem um período específico, que tem que ser depois de julho, porque é quando secam as áreas úmidas, que são onde mais acumula a matéria orgânica. A vegetação fica alagada por um tempo, quando ela seca, produz muita biomassa e vira muito combustível para queimar. Se eles não queimam exatamente no período que seca o suficiente para queimar e perdem essa janela, depois se torna impossível ter o controle do fogo.
Por isso que é preciso combinar com o conhecimento local, dos gestores locais e da comunidade, porque são características únicas e singulares que têm que ser consideradas antes de você aplicar. Você não pode fazer um protocolo geral e genérico pro Brasil inteiro, sem considerar que cada região funciona de um jeito. Isso é uma particularidade da prevenção. Por isso que ela é “cara”, pois requer não só recurso financeiro, mas requer recurso humano, requer um planejamento e uma atenção maior do que simplesmente você implementar generalizadamente.
Quando pensamos em políticas públicas para reduzir incêndios, se fala muito em combate quando já está queimando, mas pouco em prevenção quando ainda não há incêndio, o que seria mais barato e fácil, correto?
Com certeza, mesmo porque o prejuízo com o incêndio é inestimável. Se essas áreas, que são sensíveis ao fogo, queimam, demoram às vezes 100 anos ou mais para se recuperar – e às vezes nunca mais se recuperam. Dependendo da mata e da característica do ecossistema, ele não se restaura. É um prejuízo ambiental inestimável, sem falar do prejuízo econômico, de propriedades, de produção, para falar dos que a gente vê mais rapidamente e que são contabilizados. O prejuízo é grande. E o gasto que você tem em fazer essa prevenção é grande no começo porque é uma mudança de paradigma, tem investimento em oficina, em seminário, mas é uma coisa que você faz uma vez e depois isso se amplia e você não tem mais esse tipo de gasto.
O gasto é muito pequeno se dentro das comunidades eles voltarem a fazer o manejo que já faziam. É como se você estivesse só estimulando que esses proprietários e comunidades tradicionais voltassem a manejar seus territórios com o uso do fogo quando adequado. O custo disso é muito simbólico se você for pensar no longo prazo quando comparado com atividades de combate, que você tem a hora do helicóptero, a mobilização de equipes, às vezes de vários estados, para poder combater numa operação grande. Então é muito diferente esse gasto e o proveito disso também. Fora os gastos que você nem consegue pensar, como os de emissão. Já é provado cientificamente que as emissões de gases de efeito estufa em incêndios no final da estação seca são muito maiores do que nas queimas prescritas no início da estação seca. Você emite muito menos no começo porque você queima uma área muito menor quando faz essas queimas estratégicas, que funcionam como aceiros e evitam que o fogo queime uma área muito extensa.
Como estamos no contexto de políticas públicas sobre MIF?
Em 2014, o Brasil começou um programa piloto de Manejo Integrado do Fogo que está ativo até hoje. Começou só com três unidades de conservação implementando, mas à medida que se provou eficiente, o programa foi aumentando e chegou a 40 unidades de conservação e 32 terras indígenas em 2019. Houve uma ampliação muito grande do programa, mas ele ficou limitado às unidades de conservação e às terras indígenas. São áreas muito específicas e muito pequenas perto do território brasileiro. Ainda é um programa piloto. A maioria do território brasileiro não é autorizado, digamos assim, não é regulamentado para que o programa funcione.
A gente está caminhando para aprovação de uma Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo, que está prevista no Projeto de Lei nº 11.276/2018. Esta política nacional compreende toda a experiência que se teve nessas unidades de conservação e áreas protegidas, onde o programa começou, e permitirá expandir esse programa para áreas privadas e outros tipos de áreas protegidas, por outros tipos de comunidades. Esse é o caminho, mas infelizmente o projeto de lei está atualmente parado na Câmara dos Deputados [o PL está aguardando constituição de Comissão Especial temporária desde fevereiro de 2019]. A deputada federal Rosa Neide [PT-MT] fez, junto com outros deputados, uma solicitação de emergência para votação deste PL. Eles estão tentando ganhar mais apoio político, inclusive com o pessoal da agricultura, para colocar isso como emergencial e não ter que compor a mesa, porque aí eles pulam essa etapa e o projeto volta pra tramitação, volta a ser pautado no Congresso para votação.
Qual a importância de aprovar esse PL o quanto antes?
Quando você tem um projeto de lei, tem muita coisa que precisa ainda ser conversada, discutida, estabelecida e montada para você por aquele projeto em prática. Uma das coisas que abrange esse PL é a formação de um comitê do Manejo Integrado do Fogo, que é quem vai conseguir implementar, fazer com que isso realmente seja factível no território brasileiro. Porque tem várias questões que ainda vão ter que ser discutidas mesmo depois da aprovação desse projeto. E por isso a emergência. Não sei se seria pro ano que vem, mas a questão é que tem tanta coisa pra acontecer se ele for aprovado, como construirmos um protocolo do que seguir, com as diretrizes de como as queimas devem ser feitas, de como o MIF deve ser trabalhado, os cursos de capacitação, entender de onde vai sair o recurso… Todas essas discussões precisarão ser feitas. Mesmo que fosse aprovado agora, ainda há muita coisa para acontecer antes, sabe? Você tem muita gente interessada em implementar e você não pode simplesmente abrir a porta e falar “agora todo mundo pode fazer o MIF”, tem que haver todo um planejamento e um protocolo a ser seguido para isso ser regulamentado de fato.
E como funciona esse programa piloto de MIF?
Esse programa piloto é governamental, então ele é inteiramente aplicado por órgãos executores públicos: o ICMBio, dentre unidades de conservação, e o Prevfogo do Ibama, que implementa nas Terras Indígenas e em um território quilombola, para não falar que é só terra indígena. Só essas duas instituições que implementam por enquanto no Brasil. Então, essa é a questão, né? Há várias propriedades particulares, vários outros tipos de território que têm a intenção de implementar, têm a vontade, capacidade, competência, entendimento sobre o MIF, mas legalmente não podem. Legalmente a maior parte do território ainda é regido pelo fogo zero. Por aquela ilusão de que se você tentar excluir o fogo da natureza, você não vai ter mais problema com incêndio, o que se provou, ao longo desse século, como inadequado e que só piora os incêndios.
Estamos em julho e o auge da seca – entre agosto e outubro – está se aproximando. Qual a sua expectativa para a “temporada de incêndios” de 2021?
A chance, digamos assim, da gente ter maiores incêndios é muito grande porque estamos vivendo um período de escassez hídrica muito grande. Há regiões onde está faltando chuva e água. E a gente entende que essas regiões geralmente são as que vão ser mais atingidas pelos incêndios este ano. Como no ano passado a gente teve uma área muito grande do Pantanal queimada, é muito difícil ter, na sequência, a mesma área que queimou no ano passado, queimando de novo esse ano. No geral, a dinâmica do Cerrado, pelo menos, é de queimas a cada 2, 3 anos. Isso em uma área sem manejo do fogo.
No ano passado muitas áreas que geralmente queimam do Cerrado, não queimaram. Então a probabilidade de várias unidades de conservação, áreas protegidas e onde você ainda tem vegetação nativa, queimarem este ano é muito grande. É um período que está com menos chuva e com isso está mais seco. Com menos chuva, o período seco é prolongado e a vegetação fica exposta por mais tempo e mais ressecada. Ou seja, condição perfeita para passagem do fogo. A previsão é bem ruim, mas ao mesmo tempo, com a situação que houve em 2019 e em 2020, percebemos uma movimentação das comunidades procurando formar brigadas voluntárias, procurando se equipar e se formar melhor para poder combater e para poder prevenir o fogo nesses territórios. No Prevfogo houve uma procura muito grande pelos cursos de capacitação para se estabelecerem brigadas voluntárias, porque as brigadas contratadas por meio dos órgãos públicos são temporárias e o contrato é muito curto. É um período de 6 meses, geralmente. E a gente sabe que para trabalhar a prevenção, eles precisariam ser contratados antes. Precisaria ter uma mobilização anterior ao período seco para fazer esse trabalho preventivo, e não é o que acontece em todas as unidades, apenas nas poucas que estão fazendo o Manejo Integrado do Fogo.
As próprias comunidades do entorno têm procurado por editais, por meio do governo e de parcerias, para tentar fazer o curso de formação e comprar equipamentos que os ajudem a fazer as queimas prescritas e fazer o pedido para autorização das queimas. Esse movimento todo aumentou, os pedidos de autorização de queima e a formação de brigadas voluntárias, porque a população está preocupada em se prevenir e tentar se equipar melhor para não acontecer o que aconteceu no Pantanal, por exemplo. Especialmente do Pantanal, os proprietários rurais, não só as comunidades tradicionais, como os grandes proprietários também estão preocupados com a questão, e por isso existe uma pressão para aprovação desse Projeto de Lei [nº 11.276/2018] porque as pessoas entenderam que tentar excluir o fogo, não adianta, porque isso só gera mais incêndio. E os incêndios no final da estação seca são impossíveis de serem combatidos e os prejuízos são muito grandes. Então a população como um todo, rural especialmente, que é quem está ali na linha de frente, tem percebido isso e procurado uma alternativa com o Manejo Integrado do Fogo, entendendo que isso também prevê ações de combate.
Quanto melhor você previne, menos você precisa gastar depois em combate, correto?
Exatamente. A lógica é realmente essa. Na verdade, no caso do Manejo Integrado do Fogo, não é só a lógica. Num país em que conseguiram contabilizar esses gastos e ter um monitoramento mais de perto com recursos tecnológicos adequados, que é o caso da Austrália, eles conseguiram comprovar isso e convenceram o governo nacional da Austrália e as empresas a investirem no manejo do fogo porque eles perceberam que os prejuízos – não apenas o econômico, mas também ambiental – eram muito reduzidos com o MIF. E isso gera hoje toda uma economia em torno do tema também. É comprovado que fazer um manejo traz benefícios a todos, mas no Brasil esse programa é muito recente e ele abrange uma área ainda muito pequena pra gente conseguir resultados tão convincentes. E temos pouca tecnologia para conseguir acompanhar de perto todo o trabalho que está sendo feito, mas o pouco que a gente tem vem do esforço dos pesquisadores que estão tentando registrar as áreas que conseguiram reduzir os incêndios, a quantidade de emissão… Todos esses trabalhos de pesquisa no Brasil têm ajudado a fomentar aos poucos essa comprovação de que o MIF é vantajoso.
Qual o maior desafio para essa mudança de paradigma com relação ao fogo?
Eu acho que os pontos de vista contrário são importantes para a gente questionar, mas o que a gente tem de prova são séculos de política de exclusão do fogo. Nada se compara a uma base de dados tão extensa sobre o período em que ficou tentando se excluir o fogo e não conseguiu, e não só do Brasil, mas em vários outros países.Os dados que a gente tem que mostram que os incêndios só estão se agravando. E é importante comunicarmos e debatermos isso, não só com o governo, mas com ambientalistas, gestores e trazer essas discussões localmente inclusive.
Eu acho que tudo que é radical é negativo. Se a gente falar “ah, o fogo tem que ser excluído da natureza”. O fogo é um elemento natural, ponto. Não tem discussão. Excluir ele da natureza se ele é natural, é contraditório, começa daí. E tem que ter o entendimento sobre o que é o Manejo Integrado do Fogo, porque muitos erroneamente estão associando o MIF apenas à queima prescrita, e não é. O Manejo Integrado do Fogo pode ser queima prescrita, ele compreende ações preventivas e combativas. Eu acho que se a gente conseguir comunicar melhor o que é, como funciona, quais são os aspectos que o MIF abrange, não tem como ser contra. Nós vemos o tempo todo nas notícias de incêndio queimando bichos, queimando florestas, residências. Como a gente vai achar que o fogo é bom? Mas quem está ali na zona rural tem isso muito claro porque eles fazem o manejo, eles usam o fogo de maneira controlada, eles têm outra vivência, outra relação com o fogo. Eu acho que a gente precisa comunicar melhor, informar, promover debates sobre isso.
Recentemente o Ibama abriu um edital para a compra de 10 mil litros de retardantes de chamas, uma tecnologia ainda pouco estudada no Brasil, no valor previsto de meio milhão de reais. Qual sua avaliação sobre essa escolha? Seria mais vantajoso investir esse dinheiro em MIF?
Eu acho que é você seguir um caminho político que é o do paliativo, que só pensa na ação na hora em que está batendo na porta. Com o fogo isso é muito óbvio. Infelizmente. Pensar no fogo só na hora em que entra o período crítico, que começam os incêndios. Eu acho que a compra dos retardantes é uma preocupação pelo que aconteceu nos anos anteriores, mas é uma solução paliativa, pensando no combate e no que a gente pode usar de tecnológico, de técnica, para facilitar o combate. É muito difícil combater um incêndio no final da estação seca, e precisamos ter os equipamentos adequados para fazer o combate, claro. O próprio Manejo Integrado do Fogo visa esse preparo, para as pessoas estarem com equipamentos e com a formação adequada para fazer o combate, mas o MIF aborda especialmente ações preventivas, que é justamente para você evitar todo esforço e desgaste que existe para fazer o combate. O investimento mais adequado sempre vai ser prevenir, né?
Você precisa pensar em prevenção e ao mesmo tempo ter o recurso disponível pro combate. Porque o MIF não vai implicar 100% na diminuição de incêndios, mas temos estudos de que ele chega a diminuir 57% das áreas queimadas. É uma área muito grande, se você pensar no território. E uma das técnicas da prevenção, a queima prescrita, é você formar mosaicos de áreas com combustível fragmentado para quebrar a continuidade do incêndio quando vier um fogo criminoso. Essa é a questão da prevenção: se você queima num momento em que você tem o controle sobre a queima, você consegue queimar uma área planejada, com uma vegetação que é adaptada ao fogo, e você quebra essa continuidade se vier um incêndio. Você não vai eliminar 100% o incêndio, mas fazer com que queime uma área menor e tenha um menor impacto. Temos que investir mais na prevenção, porque com certeza ela vai diminuir, não só o gasto, como os impactos e os prejuízos no final das contas.
Então esse gasto [na compra dos retardante] com certeza não é justificável quando você tem todo um programa piloto exitoso acontecendo e provando o quanto é mais importante você fazer a prevenção. Você ignorar os fatos e todo o esforço de órgãos públicos, o próprio Prevfogo, que está na frente dessa discussão do MIF, querendo ampliar. Eu não acho que a gente tem que falar que o retardante não deve ser usado em condição nenhuma. Na hora do combate, que está tendo o incêndio, é muito complicada mesmo a situação e a gente precisa de ferramentas e elementos que ajudem nesse combate. Temos que ter sim retardantes ou outros elementos que ajudem, mas com certeza isso não deveria estar acima ou antes dos outros tipos de investimentos que são mais necessários e que se fazem muito mais eficientes. Se a gente fosse fazer uma lista de prioridades, o retardante não deveria ser o primeiro da lista, com certeza.
Fonte: O Eco
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