Com o início da estação seca no Brasil e o consequente aumento no número de queimadas, o trabalho do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) no monitoramento dos focos de calor volta a ganhar destaque e relevância. Há 35 anos tem sido assim para o Programa Queimadas, cuja história está ligada a grandes conquistas da política ambiental brasileira e ao movimento ecológico no país. Confira.
Queimadas na Amazônia?
Em junho de 1985, uma aeronave Electra da NASA altamente instrumentada sobrevoou a Amazônia, no trajeto Manaus-Belém, com o objetivo de analisar a composição química do que então se pensava ser “a atmosfera mais pura do planeta”. Para surpresa dos pesquisadores a bordo do quadrimotor, os aparelhos detectaram relevantes níveis de poluição no ar.
“Quando apareceram as primeiras medidas de contaminação na atmosfera, a interpretação de todo mundo era que tinha algum problema de calibração, que havia alguma coisa errada com os instrumentos”, conta Alberto Setzer, coordenador do Programa Queimadas desde seu início e até 2020.
O estudo da composição química da atmosfera fazia parte de um experimento realizado pela NASA chamado GTE-ABLE-2A, que no Brasil contava com a parceria do INPE, com a participação de Setzer.
Na época, a gravação de imagens de satélite não era corriqueira e demandava esforço e planejamento da equipe técnica do Instituto brasileiro, mas, antes dos sobrevoos, Setzer havia solicitado a gravação das imagens do satélite NOAA-9 para a região. Foi essa iniciativa que ajudou a solucionar o enigma no qual os pesquisadores a bordo do Electra haviam se deparado.
“Com as imagens de satélite, percebemos que estavam ocorrendo grandes queimadas no sul da Amazônia e a fumaça era levada por ventos para aquelas regiões mais centrais do bioma”, explica o pesquisador. Era a primeira vez que a associação entre a queima de biomassa em grande escala e a produção de emissões atmosféricas em volume capaz de alterar o clima do planeta era feita, o que representou uma mudança de paradigmas na época.
A existência de queimadas na Amazônia é notícia antiga para o século XXI. Mas na década de 1980, aquela era uma completa novidade. O mundo, na verdade, estava preocupado com o fenômeno inverso: o resfriamento global.
A década de 1970 havia sido relativamente mais fria, devido a fenômenos oceanográficos, em especial na região do pacífico. Além disso, uma outra questão, de impactos muito maiores, preocupava cientistas: as tensões políticas entre Estados Unidos e Rússia e a possibilidade de uma guerra nuclear, com a consequente emissão de material particulado na atmosfera, o que levaria a um resfriamento em escala planetária.
“A questão do impacto do CO2 no clima é uma coisa muito conhecida, que já se sabia desde o século 19. Mas o que não se sabia é que havia tanta queimada, tanto desmatamento na Amazônia e que isso poderia interferir de alguma forma nesse equacionamento das mudanças climáticas globais. Esse trabalho entra como um marco muito significativo”, explica o pesquisador do INPE.
Naquele inverno de 1985, em meio à Guerra Fria, nascia o embrião do Programa Queimadas do INPE.
Impacto inicial
Em seus 35 anos de existência, o programa evoluiu consideravelmente, acompanhando o desenvolvimento tecnológico ao longo das décadas seguintes. Mas as conquistas não foram somente no campo técnico. A história do Programa Queimadas está diretamente ligada à formalização de outros programas de monitoramento, à política ambiental brasileira e ao movimento ecológico como um todo.
Entre 1985 e 1987, pesquisadores do INPE trabalharam incansavelmente para melhorar a qualidade e frequência da detecção de incêndios. Em setembro de 1987, após ser estabelecida a possibilidade de detecção diária e quase imediata de focos de queima em imagens de satélite, o Instituto formalizou o Projeto SEQE com o órgão ambiental do governo à época, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). O monitoramento diário de queimadas começava no Brasil.
No início, este era um processo bastante rudimentar. As imagens do único satélite capaz de detectar calor, o NOAA-9, eram captadas em fitas magnéticas na sede do INPE em Cachoeira Paulista e enviadas, por ônibus ou carro, para São José dos Campos.
Lá, essas fitas eram lidas por um equipamento chamado I-100, o único no Brasil capaz de ler imagens de satélite, e as informações, interpretadas por pesquisadores altamente qualificados, com nível PhD. Os dados, então, eram enviados por Telex ao órgão ambiental federal, para auxiliar as ações de fiscalização e controle.
O impacto deste trabalho foi quase imediato. As imagens obtidas documentaram milhares de focos de queima por dia no sul da Amazônia e no Cerrado, particularmente no inverno de 1987 e 1988. A repercussão foi tremenda. Jornalistas de todo o Brasil e de veículos internacionais, como o americano The New York Times, foram atraídos para a região e os debates sobre o assunto se acirraram.
Em resposta às evidências apresentadas, à pressão da imprensa e ao nascente movimento ecológico, o governo brasileiro criou, em 1988, o “Pacote Ecológico Nossa Natureza”, um conjunto de medidas destinadas a reorientar a política ambiental do governo.
“A luz vermelha que despertou no Presidente a necessidade de proteger o meio ambiente foi um levantamento do Instituto de Pesquisas Espaciais, que num só dia monitorou seis mil focos de incêndio em todo o país, confessou o presidente José Sarney, no discurso que fez durante o lançamento do programa Nossa Natureza”, revela uma matéria da edição de 13 de outubro de 1988 do Jornal de Brasília.
Naquele mesmo ano, foi criada a Comissão de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (CONACIF), ainda no âmbito do IBDF. Em fevereiro de 1989, surge o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), integrando a gestão ambiental do país. Dois meses depois, em abril de 1989, era criado no Ibama o Sistema de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo).
Outra consequência daquela década foi a retomada, em 1988, dos estudos pioneiros do INPE em monitoramento do desmatamento por meio de imagens dos satélites Landsat, com o PRODES, que divulga as taxas anuais de deflorestamento por corte raso na Amazônia.
Toda esta movimentação levou o Brasil a ser escolhido como sede da primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, mas não impediu que o quadro de degradação da Amazônia fosse freado.
Desenvolvimento tecnológico impulsionado
Entre 1992 e 1995, o INPE registrou um aumento exagerado nos focos de queima na floresta tropical. Com a intensa campanha de descrédito que os pesquisadores vinham sendo vítimas, por parte do governo e sociedade, o Instituto incentivou o aperfeiçoamento do PRODES que, por falta de recursos, estava atrasado. Não deu outra, a desmatamento na Amazônia atingia níveis surpreendentes. Somente em 1995, foram registrados cerca de 30 mil km² de desmatamento.
Em 1998, o estado de Roraima sofreu com incêndios descontrolados, que atingiram as terras dos índios Yanomami e devastaram cerca de 12 mil km² das florestas na região. No contexto de mobilização nacional e internacional, caracterizado pela necessidade emergencial do direcionamento de esforços em conjunto e integrados com o objetivo de prevenir, localizar e combater a ocorrência de incêndios florestais na Amazônia, o governo criou, dentro do Ibama, o Programa de Prevenção e Controle de Queimadas e Incêndios Florestais na Amazônia Legal (PROARCO), que ficou ativo até 2007.
Este foi outro marco importante para o Programa Queimadas, pois foi com o PROARCO que o INPE passou a receber recursos anuais do governo federal, o que permitiu a contratação de uma equipe estável e o aperfeiçoamento dos trabalhos.
A década de 2000 foi marcada, de fato, por um intenso aperfeiçoamento das tecnologias de detecção, com novos sensores em satélites recém-lançados ou já existentes. Com computadores mais potentes e rápidos, mais satélites disponíveis e a expansão da internet, o INPE consolidou as quatro áreas de atuação operacional do Programa: detecção de focos com satélite, cálculo e previsão do risco meteorológico, mapeamento de áreas queimadas e criação de sistemas específicos para atender órgãos de governo federal e estaduais.
Na década de 2010, o Programa Queimadas buscou e foi contemplado com recursos adicionais de instituições brasileiras e internacionais de fomento à pesquisa, como FAPESP, CNPq, SPRINT (EUA), FCT (Portugal), GIZ (Alemanha), DEFRA (Grã-Bretanha), entre outras. Nesta época, o Banco de Dados de Queimadas foi aperfeiçoado e se consolidou, atendendo usuários em países da América Latina e Caribe.
Atualmente, o Programa Queimadas conta com sensores em 10 satélites em órbita, incluindo o AQUA, adotado como referência desde 2002. Juntos, esses satélites geram cerca de 300 imagens diárias, com processamento automático e distribuição quase que imediata para governos e sociedade.
Mais de 80% das queimadas que ocorrem no Brasil são detectadas pelo Programa, com alto grau de confiabilidade. Isso significa que as características técnicas avançadas dos algoritmos computacionais são capazes de diferenciar as diferentes fontes de calor – como praias, asfalto de rua, áreas cimentadas e telhados metálicos, por exemplo, só registrando o que de fato é queima de vegetação. Os falsos alarmes que por ventura sejam detectados como “flares” [chamas], como refinarias de petróleo, são descartados pelo monitoramento interno do INPE e não entram nas estatísticas.
Os dados do INPE sobre queimadas são usados atualmente de maneira descentralizada em secretarias estaduais de meio ambiente e em instituições governamentais, como o Operador Nacional de Sistema Elétrico (ONS) e o Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia – Censipam, por exemplo.
Ao longo das décadas, também foram desenvolvidos e consolidados sistemas específicos, como o Sistema de Informações Ambientais Integrado a Saúde (SISAM), em parceria com o Ministério da Saúde, para análise do impacto da poluição das queimadas na saúde humana, o Centro Integrado Multiagência de Coordenação Operacional (CIMAN) para que órgãos federais coordenem ações de combate a incêndios florestais em áreas de preservação, e o Sistema de Gestão Geospacializada de Transmissão (GGT), para que a ANEEL possa reduzir apagões no fornecimento de energia devido a queimadas próximas às linhas de transmissão.
Há seis meses, em novembro de 2020, o INPE lançou mais um produto do Projeto Queimadas, com a intersecção dos números de focos de calor cruzados com dados do Cadastro Ambiental Rural (CAR) no bioma Amazônico, de modo a identificar mais facilmente os responsáveis pela queima. A intensão do INPE, segundo Setzer, é ampliar esse cruzamento para os demais biomas do país.
Convivendo com ataques
Ao final de setembro de 2020, após sobrevoar uma área protegida de Rondônia, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, presidente do Conselho da Amazônia, questionou a confiabilidade dos dados gerados pelo INPE, dizendo que o foco de calor apontado na leitura de um satélite não se tratava de incêndio, mas do calor emitido por uma rocha.
“A minha avaliação é que o calor, a massa de granito ali reflete como se tivesse fogo. O satélite identifica qualquer ponto de calor, não necessariamente sendo fogo”, disse Mourão, à época.
Leituras equivocadas como esta e ataques diretos não são novidade para os pesquisadores do INPE.
Desde a década de 1980, quando os primeiros dados de queimadas foram gerados, o Instituto sofre com tentativas de descrédito. Num mundo polarizado entre capitalismo e comunismo, não faltou gente acusando os pesquisadores de serem agentes da KGB e também da CIA, tentando desestabilizar o país com as notícias das grandes queimas, conta Alberto Setzer.
“Um grande desmatador, na época, referiu-se aos dados que produzimos como ‘números mentirosos e fotos pré-montadas’ […] Já acusaram que os satélites estavam detectando churrasquinho de quintal e até mulher fogosa”, lembra o pesquisador, com certo divertimento.
Atualmente, Setzer e os demais pesquisadores do INPE encaram com muita diplomacia as críticas, respondendo com dados e informações aos ataques verbais. As ameaças, segundo o ex-coordenador do Programa, já foram bem mais concretas.
No final de 1988, Alberto Setzer sentou-se ao lado de Chico Mendes em um evento sobre a proteção da Amazônia realizado na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo. Na conversa que travaram, Chico Mendes relatou a preocupação crescente com as perseguições que vinha sofrendo.
“Então eu disse para ele: ‘puxa, eu estou numa situação muito parecida com a tua. Quando venho para meu escritório no INPE, de manhã, está tudo revirado. Eu até fiz uns testes para ver se não era imaginação minha. Coloco as coisas numa certa ordem e anoto. Quando volto na manhã seguinte, as coisas estão em outra ordem’. Aí ele me falou da questão de ser seguido e eu disse: ‘eu também estou sendo seguido’”, relatou.
Cerca de dois meses depois, Chico Mendes foi assassinado. “Acredito que eu escapei do mesmo destino porque tive uma viagem para a Antártica logo em seguida”, diz.
As tentativas de intimidação aos pesquisadores do programa já foram muitas. Como a vez que encontraram alvejado por balas o avião usado para fotografar as áreas queimadas, ou quando a fiação do helicóptero do Ibama que dava apoio aos pesquisadores foi cortada. “Não foram poucas as vezes que a gente estava fazendo um trabalho de campo e, sem mais nem menos, aparecia um cara um com revólver apontado para nós”, conta Setzer.
O Programa Queimadas hoje
O Brasil encerrou 2020 com o maior número de focos de queimadas em uma década. No ano passado, foram registrados 222.798 focos, contra 197.632 em 2019, um aumento de 12,7%. Somente o Pantanal acumulou 22.119 focos, o maior número da série histórica do INPE para o bioma, com destruição de 60 mil km², cerca de 40% da planície pantaneira.
O aumento no número de focos na Amazônia ao longo dos últimos anos e os incêndios descontrolados no Pantanal em 2020 reforçaram a utilidade dos dados e serviços do Programa Queimadas na gestão de desastres ambientais. Mas também reproduziram vários dos elementos vividos nos primórdios do Programa, como tentativas de descrédito e séries crises políticas nacionais e internacionais.
Hoje, os desafios que a equipe do Programa tem que enfrentar são de outra ordem, sendo um importante deles o de ordem orçamentária.
Com cortes que vêm desde 2015, o orçamento do Programa Queimadas chegou em 2021 com o menor valor da última década. Após os vetos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) à Lei Orçamentária Anual (LOA) e o bloqueio de dotações para cumprimento do teto de gastos, a verba a ser destinada para o programa será de apenas R$ 694 mil.
Segundo levantamento realizado por ((o))eco, ao considerar o valor total destinado à ação na qual o Programa Queimadas está inserido – a Ação 20V9, que também engloba as atividades de monitoramento do desmatamento – a queda foi de 60,5% em relação a 2011. Há uma década, tais programas recebiam cerca de R$ 6,7 milhões. Em 2021, serão destinados apenas R$ 2,6 milhões.
A título de comparação, Bolsonaro gastou R$ 2,4 milhões em suas férias de final de ano, entre 18 de dezembro de 2020 e 5 de janeiro de 2021.
A temporada de seca já começou no Brasil e o Centro de Previsão do Tempo do INPE aponta que as chuvas este ano serão abaixo da faixa normal. Soma-se a esse quadro uma redução nos orçamentos para as equipes de combate ao fogo e queda significativa na fiscalização, o que indica que, novamente, o INPE vai ter muito trabalho pela frente.
Apesar de todas as dificuldades, o Programa Queimadas vai continuar, como sempre continuou, mesmo quando sob intenso fogo cruzado.
Fonte: O Eco
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