Depois de quase desistir dos cafezais, os produtores de café de Apuí, no sul do Amazonas, encontraram no sistema agroflorestal um novo modelo de produção que gera renda e mantém a floresta em pé. Apuí, uma das principais frentes de avanço da pecuária na Amazônia, está entre os dez municípios com a maior taxa de desmatamento na região.
Introduzido em 2012 com apoio do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), o Café Apuí Agroflorestal é o primeiro café do Amazonas cultivado de forma agroecológica. Não só evitou que o pasto da pecuária tomasse conta dos antigos cafezais como dobrou a produtividade na região.
Quando o Idesam lançou o projeto, a produção dos agricultores da região rendia em média 8 sacas por hectare, muito inferior ao potencial do município. Atualmente, a colheita média dos produtores é de 15 sacas, podendo chegar a 25 por hectare. “Hoje a gente tem 30 famílias, que cultivam 50 hectares de café em sistema de agrofloresta. Mas o potencial é gigantesco”, diz Marina Yasbek Reia, líder do Projeto Café Agroflorestal Apuí do Idesam.
“A gente colhia pouco e vendia barato, não sobrava quase nada. Agora, a gente vende com o valor agregado e dá para melhorar um pouco. Dá para comprar insumos para trabalhar na lavoura e comprar as coisas para dentro de casa: uma geladeira, um fogão”, conta Ronaldo de Moraes, um dos produtores que integram o projeto. “Eu tô contente. Tem muita gente que trabalha com esse mesmo projeto e tá todo mundo contente. Dá um dinheirinho, né? Dá um pouco de trabalho, mas compensa muito.”
Nas lavouras abandonadas, a oportunidade
Localizado às margens da Rodovia Transamazônica, próximo à divisa com Rondônia, Apuí foi constituído município em 1987, em meio aos projetos desenvolvimentistas implementados durante o período da ditadura militar no Brasil. Cinco anos antes, havia sido criado na região o Projeto de Assentamento Rio Juma, o maior da América Latina na época.
Colonos de diversas áreas do Brasil foram atraídos para a região sob o pretexto de ocupar grandes extensões de terras livres. A primeira corrente migratória veio do Paraná e foi seguida por moradores dos outros estados da região Sul do Brasil.
Muitos colonos eram familiarizados com a lavoura de café e levaram para o novo local a antiga prática do plantio convencional em sistema de monocultura, a pleno sol e com uso de agrotóxicos. Durante cerca de 20 anos, Apuí teve uma boa produção de café. Mas a degradação do solo fez os produtores começarem a abandonar os cafezais por volta de 2012. “Sem o aporte de insumos, sem assistência técnica constante e, principalmente, sem tecnologias tropicais ou mais amigas do clima da Amazônia foi havendo um grande desgaste do solo”, conta Marina. “Nossos solos são ácidos, então se você não trabalhar o solo, você não vai tirar café daqui”.
Quando os técnicos do Idesam chegaram ao local, viram que existia uma oportunidade. A floresta havia crescido em meio às lavouras abandonadas, fornecendo matéria orgânica ao solo e sombra ao fruto — o cafeeiro é uma planta que se adapta bem à pouca luz. Como resultado, os cafezais abandonados apresentavam uma qualidade superior à daqueles cultivados no método convencional.
Surgiu, assim, a ideia de criar em Apuí um modelo de lavoura cafeeira baseada no sistema agroflorestal (SAF), onde um cultivo agrícola é desenvolvido em consórcio com outras espécies vegetais. Inicialmente, cada produtor recebeu apoio para a recuperação de 1 hectare de cafezais, o que incluiu a distribuição de 10 mil mudas de espécies amazônicas nos dois primeiros anos. Entre elas havia árvores das quais poderia ser extraída a madeira, como jatobás e mognos, e também espécies cujos frutos e sementes poderiam ser coletados e comercializados — entre eles cacau, açaí, castanha-do-brasil, andiroba e copaíba. Dessa forma, os produtores poderiam obter uma renda adicional à da produção do café.
Projetos desenvolvidos na região também ajudam a fomentar outras cadeias produtivas. É o caso do Cidades Florestais, desenvolvido pelo Idesam com apoio do Fundo Amazônia. Voltado para a produção de óleos essenciais e vegetais, o projeto instalou seis miniusinas de extração de óleos em municípios do interior do Amazonas. Uma delas foi recém-inaugurada em Apuí e poderá apoiar os produtores de café que cultivarem em suas agroflorestas espécies como andiroba, copaíba ou outras plantas aromáticas.
Atualmente o Projeto Café Apuí Agroflorestal conta com a parceria de três ONGs internacionais: a WWF, a WeForest e, recentemente, a reNature. Com o aporte financeiro de 300 mil euros feito em outubro pela reNature, o objetivo é expandir o projeto, agregando até 200 agricultores familiares nos próximos três anos. Atualmente, o produtor que adere à iniciativa recebe acompanhamento técnico constante e subsídios que podem chegar a R$ 15 mil na forma de insumos, mudas, maquinário e serviços. O objetivo do Idesam é tornar o projeto autossuficiente, fazendo com que a venda do café produzido possa cobrir os investimentos — hoje feitos com recursos a fundo perdido pelos parceiros do terceiro setor.
A cadeia produtiva do Café Apuí conta com o apoio de uma associação que congrega os produtores, um viveiro legalizado que fornece mudas nativas, e um torrefador local que torra, mói e embala o café. Para que a bebida chegue até a xícara do consumidor final foi criada a startup Amazônia Agroflorestal, responsável pela captação de investimentos e pela comercialização. O Café Apuí já circula por diversos estados brasileiros, com maior penetração no Amazonas e em São Paulo, e foi exportado pela segunda vez para a empresa holandesa de cápsulas de café Euro Caps.
Cafezal socioambiental
“Queremos crescer, mantendo a conexão com a paisagem. Vamos levar o projeto para mais famílias, mas com a agrofloresta queremos fazer corredores que interliguem os fragmentos [de mata]. Isso é muito importante”, conta Marina. Entre os benefícios do plantio em SAF estão a proteção da biodiversidade, o enriquecimento do solo, a redução da erosão, a preservação da qualidade da água e a diminuição dos efeitos das mudanças climáticas.
“A terra ficou mas rica”, afirma o produtor Ronaldo. “No [plantio] convencional, a gente batia o veneno para fazer a limpeza. Aí já estava prejudicando a terra que ficava sempre limpa, não tinha aquela cobertura seca, a compostagem natural. Então, as raízes da planta ficavam expostas ao sol. Hoje as raízes ficam cobertas debaixo daquela mata seca que segura mais umidade. O café fica mais bonito e a produção é um pouco maior.”
Investir no desenvolvimento social dos pequenos produtores rurais de Apuí, segundo Marina, do Idesam, é uma forma de resistir ao avanço da pecuária. Apuí figura entre os municípios que mais queimam e desmatam na Amazônia. Segundo dados do Inpe, foram 837 focos de incêndio entre janeiro e julho de 2020, a maior incidência dos últimos 10 anos — em julho, foi o município que mais queimou na Amazônia Legal. Em 2019, esteve entre os dez municípios mais desmatados da região.
“As famílias deveriam ter condições mínimas de permanecer na terra porque permanecendo na terra elas são um fator de conservação”, explica Marina. “Se elas saem da terra, o que vem ali fatalmente é a grilagem, o desmatamento para pasto extensivo. E aí vem a tragédia, a tristeza que está acontecendo aqui no sul do Amazonas, no Apuí, como uma nova frente de desmatamento. Os grileiros vão emendando várias áreas, vão juntando lotes pequenos, derrubam e fazem pasto.”
Agrofloresta diminui impacto das mudanças climáticas
Não é novidade que as mudanças climáticas deverão gerar forte impacto na produção de café. Estudo de 2015 prevê que o aumento na temperatura e a mudança nos padrões das chuvas diminuirão a produtividade do café arábica (Coffea arabica) no mundo, reduzirão a qualidade e aumentarão a pressão de pragas e doenças.
Ao analisar regiões produtoras de café em Minas Gerais e Espírito Santo, estudo publicado este ano por pesquisadores da Wageningen University, na Holanda, e da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, concluiu que as mudanças climáticas podem ocasionar grande perda de área propícia para a produção de café arábica até 2050. A pesquisa mostra, no entanto, que a perda pode ser reduzida com a utilização de sistemas agroflorestais.
“O café arábica produz adequadamente em uma faixa muito estreita de temperatura, numa média anual entre 18 e 23 graus Celsius”, diz Lucas de Carvalho Gomes, um dos autores da pesquisa e doutorando da UFV. “No entanto, o plantio de árvores consorciadas com o café cria um microclima que pode diminuir as temperaturas máximas em até 5 graus. Além de modificar o microclima, as árvores também aumentam a provisão de serviços ambientais, como a polinização e o controle natural de pragas, e também ajudam a reciclar nutrientes através da deposição de folhas e galhos no solo.”
Também o café robusta (Coffea canephora), mesma espécie do café Apuí, é sensível às alterações de temperatura. Estudo publicado na revista “Global Change Biology” baseou-se na observação de produtividade de quase 800 fazendas de café no Sudeste Asiático ao longo de 10 anos e sugeriu que a temperatura ideal para o robusta é de 20,5 graus Celsius. Temperatura mais alta significa rendimento menor para a variedade que representa 40% do café mundial.
Sendo as duas variedades de café sensíveis às mudanças climáticas, o plantio em sistemas agroflorestais ganha cada vez mais respeito. Não é a toa que a Nestlé, por meio da Nespresso, vem investindo desde 2014 numa parceria com o coletivo de empreendedores Pur Project para a implementação de plantios agroflorestais com cafeicultores.
No Brasil, maior produtor mundial de café, a grande maioria das plantações segue o padrão da agricultura convencional, com cultivo a pleno sol. “A produção de café em SAFs requer do agricultor um cuidado maior com a quantidade de insolação que as plantas de café recebem em determinadas épocas do ano. Como a insolação em determinado local depende da latitude, cada sistema deve ser desenhado de acordo com as características da propriedade e das espécies florestais que o agricultor deseja usar”, comenta Lucas, da UFV. “O desconhecimento por parte de muitos cafeicultores sobre as práticas que levam ao sucesso da produção de café em SAFs também é um empecilho para a expansão dos SAFs no Brasil.”
Fonte: Ecoa
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