Estudos indicam que quase 80% de 405 eventos extremos recentes analisados tiveram sua frequência ou intensidade aumentada por mudanças induzidas pelo homem
Desde 2012, o periódico científico Bulletin of the American Meteorological Society (Bams) dedica uma edição anual especial a estudos que tentam identificar se um evento extremo recém-ocorrido, como uma seca muito severa, uma chuva torrencial ou um recorde de temperatura, pode ter sido influenciado, mesmo parcialmente, por alguma ação humana ou decorre simplesmente da variabilidade natural do clima. É como se os pesquisadores submetessem um fenômeno específico, bem localizado no tempo e no espaço, a um exame antidoping com o intuito de flagrar algum indício de que a ocorrência pode ter sido turbinada por atividades humanas que contribuem para a emissão de gases de efeito estufa e para o aquecimento global.
O site britânico CarbonBrief, especializado na cobertura da ciência e da política do clima, compila e analisa periodicamente os resultados desse tipo de estudo, um conjunto de mais de 350 artigos científicos, a maioria publicada no Bams. Segundo seu levantamento mais recente, de fevereiro de 2021, quatro em cada cinco trabalhos feitos nos últimos 10 anos identificaram algum nível de influência antrópica na periodicidade ou intensidade de eventos extremos. No total, 405 fenômenos foram estudados nos artigos científicos, como ondas de calor na Suécia, furações no Caribe, inundações em Bangladesh, secas e queimadas na Califórnia (Estados Unidos) e Austrália.
Em 70% dos casos, mudanças climáticas provocadas pelo homem tornaram mais frequente ou intenso um evento extremo específico. Em 9% das ocorrências, a ação antrópica produziu o efeito inverso: diminuiu a periodicidade ou a severidade do fenômeno. Resultados inconclusivos ou inconsistentes aparecem em 11% dos eventos extremos e, em 10% deles, não foram encontradas evidências de influência humana. A taxa de sucesso em encontrar uma relação de associação entre atividades do homem e essas ocorrências superlativas do clima é maior para episódios de elevação de temperatura do que para ocorrências de secas, chuvas concentradas e enchentes.
De um conjunto de 132 estudos sobre aumentos excessivos de temperatura, 92% dos trabalhos identificaram algum nível de influência humana. Para episódios de chuva exacebada ou de inundações, fatores de origem antrópica foram apontados em 69% de 82 estudos realizados. “Todo evento extremo tem um componente natural, mas alguns deles também têm caraterísticas favorecidas pelas mudanças climáticas causadas pelo homem”, comenta o climatologista José Marengo, coordenador de pesquisa e desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). “O próprio relatório do IPCC destacou esse ponto.”
Um evento extremo pode ser visto como um atleta fora de série, para retomar a metáfora do doping esportivo. Ele se destaca dos demais por suas habilidades naturais claramente acima da média de seus competidores. Alguns, só com treino e dedicação, tornam-se fenômenos internacionais e chegam a uma Olimpíada. Outros, apenas com seu esforço próprio e habilidades naturais, são destaque em nível nacional, mas não têm potencial de se tornar um campeão mundial – a menos que recorram a substâncias proibidas que turbinem de forma artificial seu desempenho. O evento extremo influenciado por ações do homem é o esportista de elite impulsionado por esteroides.
Com exceção dos trabalhos realizados na Austrália, a maioria dos estudos de atribuição de eventos climáticos extremos é feito no hemisfério Norte. Dois dos climatologistas mais importantes nesse campo de atuação são a alemã Friederike Otto, diretora associada do Instituto de Mudança Ambiental da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e o holandês Geert Jan van Oldenborgh, do Instituto Meteorológico Real dos Países Baixos (KNMI). Ambos coordenam o World Weather Attribution, uma iniciativa internacional que, desde 2014, desenvolve métodos computacionais para realizar trabalhos de atribuição climática e fazer pesquisas na área.
Um número reduzido de pesquisadores brasileiros já publicou estudos de atribuição climática. “Nesses trabalhos, são rodados modelos climáticos computacionais em que comparamos a probabilidade de um evento extremo específico ocorrer em dois cenários distintos: nas condições atuais, em que há aumento de gases de efeito estufa na atmosfera, e no período pré-industrial, quando praticamente não havia influência humana sobre o clima”, explica o meteorologista Caio Coelho, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Se as simulações apontam que há alguma diferença no fenômeno notável na probabilidade de ocorrência do evento nos dois cenários, isso é um sinal de que esse evento sofreu a influência do componente humano.”
Em parceria com os britânicos de Oxford, holandeses e colegas do Brasil, Coelho participou de dois artigos com essa abordagem. Em 2016, publicou no Bams um trabalho sobre a seca e a crise hídrica a ela associada que castigou a região Sudeste entre 2014 e 2015, mas não encontrou evidências de o fenômeno climático ter sido impulsionado pela ação humana. Em 2018, no mesmo período, participou de um trabalho que não identificou influência humana no período prolongado de seca no Nordeste, entre 2012 e 2016.
O meteorologista Rafael de Abreu, que faz doutorado no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), também é coautor de dois estudos desse tipo, sempre com colegas do exterior e de outras instituições do país. Em dezembro de 2018, publicou, também no Bams, um artigo sobre a chuva concentrada, de 550 mm, que caiu entre abril e maio de 2017 na bacia do rio Uruguai. O trabalho concluiu que mudanças climáticas induzidas pelo homem tornaram a ocorrência desse tipo de evento pelo menos duas vezes mais frequente.
Em 14 de agosto deste ano, o meteorologista assinou com colaboradores da USP, do Inpe, do Cemaden e de Oxford um estudo na revista Climate Resilience and Sustainability sobre a chuva recorde de 320,9 mm que caiu em apenas três dias sobre Belo Horizonte em janeiro de 2020. Para os autores do trabalho, as mudanças climáticas antrópicas aumentaram em 70% a probabilidade desse tipo de evento extremo ocorrer. “É preciso ter acesso a grande capacidade computacional e a modelos climáticos para fazer até mil simulações de um evento para alcançar um nível de confiabilidade nos estudos de atribuição climática”, diz Abreu. “Por isso, recorremos a tantas parcerias no exterior.”
Fonte: Revista Pesquisa FAPESP
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