Recente pesquisa do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) revela que há uma fragilização global nos ecossistemas produtores de água. Estima-se que um quinto das bacias hidrográficas do mundo está passando por flutuações dramáticas na disponibilidade de água e que mais de 3 bilhões de pessoas convivem com a escassez ou se encontram em alto risco de acesso à água, além de sujeitas a doenças por veiculação hídrica. Esses dados foram apresentados pelo PNUMA à ONU, no último dia 18 de março.
Essas conclusões implicam a necessidade urgente de avaliar e corrigir as alterações drásticas provocadas pela humanidade neste início do Antropoceno, onde atividades humanas ultrapassam os limites das alterações aceitáveis nos ecossistemas hídricos.
A conjuntura piorou. Se a situação hídrica se mostrava preocupante nos primórdios da criação do Dia Mundial da Água, em 1992, em 22 de março, que lembramos no dia de hoje, passados quase 30 anos ganhamos um componente exponencial: as mudanças climáticas. As preocupações anteriores com o aumento populacional e sua concentração em pequenos espaços geográficos, poluição e alterações no uso da terra, que invadia mais e mais ecossistemas essenciais à produção hídrica, encontraram, na virada do século XXI, um forte agravante.
As alterações do clima e seu impacto sobre a água são demonstrados por uma pesquisa do Instituto Federal de Tecnologia de Zurich (ETH Zurich), publicada pela revista Science. Analisando dados de 7.250 estações de medição em todo o mundo, a pesquisa demonstrou que o fluxo dos rios mudou entre 1971 e 2010, concluindo que “algumas regiões como o Mediterrâneo e o Nordeste do Brasil ficaram mais secas, enquanto em outras o volume de água aumentou, como na Escandinávia”.
A vida não é fácil, já que há ainda elementos como crises naturais a serem consideradas. A revista Frontiers in Water publicou dados de uma outra pesquisa científica conduzida pelo Inpe e Unesp sobre as causas da seca extrema que atingiu o Pantanal de 2019 e 2020, a pior nos últimos 50 anos, e a crise hídrica que se abateu sobre São Paulo, entre 2014 e 2016. A conclusão é que estes fenômenos naturais, episódicos, acabam sendo potencializados pelas mudanças climáticas.
O clima tornou-se decisivo. O ex-diretor do Operador Nacional do Sistema Elétrico, Luiz Eduardo Barata, afirmou na matéria “Mudanças climáticas devem intensificar conflitos por abastecimento e reduzir energia assegurada”, veiculada pela Folha de São Paulo: “Um ano (de hidrologia) ruim não é mais algo episódico. Tem acontecido há vários anos e cada vez pior”, diz, lembrando que a queda dos reservatórios ocorreu mesmo com a redução do consumo na pandemia.
Há uma nova realidade para os mananciais, como, por exemplo, os metropolitanos. A metrópole de São Paulo vivencia a redução anual dos índices de reservação do Sistema Cantareira, que já conta com um processo histórico de disputa pelo uso da água entre a bacia hidrográfica do Alto Tietê, no planalto de Piratininga, com a bacia do Piracicaba, Capivari e Jundiaí, situada ao norte.
Na crise que hídrica que ocorreu entre 2014-2016, o conflito de ampliou para o leste, com a retirada de água da bacia do rio Paraíba do Sul, que também abastece a cidade do Rio de Janeiro.
Há uma instabilidade social subjacente à escassez de água. Mesmo sem fortes desdobramentos na realidade brasileira, essa instabilidade no cenário internacional é preocupante. É preciso ressaltar que a garantia de acesso aos recursos naturais essenciais tem forte relação com a paz. Água deve ser um elemento de cooperação entre as comunidades para sua preservação – e não de disputa.
A ciência avança, mas as políticas de proteção ambiental não. Hoje a tecnologia nos permite contemplar, nas telas de computador, gráficos georreferenciados do universo hídrico, os efeitos antrópicos locais e climáticos globais, trazendo uma percepção mais clara sobre o estado da arte do planeta.
Nesses últimos 30 anos a ciência tem possibilitado, com apoio tecnológico, uma ampliação da compreensão humana sobre o ciclo da água, o papel das florestas, a transposição hídrica e as áreas de recargas dos aquíferos.
É possível demonstrar, inclusive no Brasil, os efeitos nos microclimas urbanos e as ilhas de calor. É possível mensurar os índices de assoreamento dos reservatórios por satélite, prevendo a necessidade de abastecimento hídrico para as populações, o atendimento à irrigação para a agricultura e a geração de energia. Os repórteres do clima, ao expor sofisticadas e diárias modelagens climáticas, já se se referem às frentes de umidade como “rios voadores”.
Diante da apropriação pela sociedade de efetivos aportes científicos e de impressionante aparato tecnológico, por que ações, planos e políticas públicas para a proteção dos ecossistemas e da água não se tornaram uma realidade palpável?
No Brasil os principais desafios podem ser apontados e dimensionados – portanto, é possível eleger políticas públicas prioritárias para a correção de rumos. É preciso cuidar do nosso maior ecossistema vital, e isso consiste na manutenção e recuperação da Floresta Amazônica, o grande driver de transposição da água para a América do Sul, com influência benéfica para os cinco biomas nacionais: Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampas e Pantanal.
Não basta monitorar, é preciso agir. A região da Amazônia é gigante e traz desafios para a gestão dos desmatamentos, em especial sobre a resultante das ações administrativas e procedimentos judiciais para a reparação de danos ambientais. Os órgãos envolvidos começam a se voltar para soluções mais estruturais. Em conformidade com o que propusemos ao Poder Judiciário, na última reunião do Observatório do Meio Ambiente do Poder Judiciário, o secretário executivo, Marcus Livio Gomes, reafirmou que “é necessário criar solução para o georreferenciamento nas matrículas dos imóveis, nas autuações feitas pelo Ibama, nas investigações do Ministério Público e nas ações judiciais”, o que seria “um passo gigante para enfrentarmos de forma eficiente o desmatamento ambiental”.
Nossa capacidade deve ir além de monitorar a realidade e seus desafios. Precisamos de ações mais integradas e eficientes, com suporte tecnológico de plataformas digitais que permitam total transparência sobre os dados existentes, gerados nos procedimentos de agentes governamentais como o Ibama, que incompreensivelmente ainda restringe o acesso de seus dados para o público.
Essa abertura deve se estender às demais instituições responsáveis pelos procedimentos judiciais e extrajudiciais decorrentes da degradação da Amazônia.
A transparência inspira bons resultados. O acesso público sobre as ações empreendidas pelas instituições responsáveis impulsionaria efeitos positivos, não só decorrentes de melhor interação das mesmas, mas também da percepção sobre a sinergia do conjunto, do sistema institucional existente, evidenciando também suas resultantes – e, consequentemente, proporcionando a retirada de inconsistências para seu aprimoramento.
Como bem aponta o PNUMA, os esforços mundiais teriam que dobrar nos próximos nove anos para atingir o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 6, estimado inicialmente para 2030, que exige “a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos”. Há muito a fazer para o estabelecimento de políticas públicas visando à adequada gestão dos recursos hídricos.
A participação social também é um elemento vital. O Princípio 10 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, reiterado pela Convenção de Aarhus, na Suécia, em 1999 e pelo Acordo de Escazú, assinado pelo Brasil em 2018, afirma: “A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios. Os Estados irão facilitar e estimular a conscientização e a participação popular, colocando as informações à disposição de todos. Será proporcionado o acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que se refere à compensação e à reparação de danos”.
O PNUMA segue a mesma linha. No estudo apresentado à ONU, observa “que a informação ajudaria a tomada de decisões ambientais nos níveis mais altos”, ou seja, serviria à formulação de políticas públicas em nível nacional. Neste aspecto, é preciso avaliar e corrigir, de forma criteriosa, os péssimos efeitos para a gestão participativa que foram provocados pela atual administração federal. O Brasil necessita retomar e ampliar sua estabilidade em democracia ambiental, em consonância com a plena participação social assegurada na Constituição federal.
A perda de qualidade da participação social torna-se hoje mais e mais visível nas esferas federal, estaduais, regionais e municipais. Precisamos de uma urgente correção de rumos na gestão participativa, evitando a instrumentação dos conselhos com prevalência de interesses políticos e econômicos. É preciso, de forma efetiva, democratizar a gestão da água.
Valorizar a água é a reflexão que a ONU propõe para este Dia Mundial da Água de 2021. Na atualidade e especialmente para o futuro, a água, o pão e a paz de cada dia dependem de um conjunto de fatores representados na sustentabilidade hídrica, um equilíbrio que tem interfaces com questões essenciais como abastecimento público, produção agrícola, atividades industriais e urbanas.
Portanto, é prioridade em nossa sociedade valorizar essa construção de políticas públicas efetivas para a proteção da água, a começar por meio do irrestrito acesso à informação e de plena participação social.
Fonte: O Eco
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