Reconhecido com o Nobel da Paz em 2020, o Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas (PMA-ONU) estima que, neste ano, a fome atingirá 270 milhões de pessoas nos 88 países em que o organismo internacional opera, um aumento de 82% em comparação com 2019. No Brasil, um dos maiores produtores de alimentos do mundo, em 2017 e 2018 quatro em cada 10 famílias não tiveram acesso diário regular e permanente a quantidade suficiente de comida. No mesmo período, mais de 10 milhões de pessoas relataram ter passado fome – maior número dos últimos 15 anos, conforme a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgada em setembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A insegurança alimentar é um problema que requer soluções multidisciplinares. Para reduzi-la, os caminhos apontados por pesquisadores ouvidos por Pesquisa FAPESP envolvem políticas de distribuição de renda e investimentos em educação, assim como incentivos à agricultura familiar que permitam ampliar a disponibilidade de alimentos para consumo doméstico e diminuir a fome no campo, onde a situação é mais grave.
Segundo o levantamento Produção Agrícola Municipal (PAM), elaborado pelo IBGE, em 2019 o valor da produção agrícola do país cresceu 5,1%, atingindo R$ 361 bilhões, alta puxada pelos grãos, que somaram R$ 212,2 bilhões. Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) indicam que o Brasil é o maior produtor mundial de soja, tendo exportado 74 milhões de toneladas em grãos, no ano passado, quase o dobro dos 43 milhões de toneladas consumidos localmente. O país também figura entre os principais exportadores de algodão, milho, carne de frango e bovina. “Apesar de ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo, cerca de 40% da área plantada é utilizada para o cultivo de soja e gado, gerando commodities que não reduzem a insegurança alimentar no país”, observa a sanitarista Denise Oliveira, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Brasília e coordenadora do Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares.
A condição de segurança alimentar envolve o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente. Em 2004, a prevalência nacional de segurança alimentar incluía 65,1% dos domicílios do país, crescendo para 77,4%, em 2013. Conforme dados da análise mais recente do IBGE, esse número caiu para 63,3% das residências. Além disso, o levantamento mostrou que, em 2017 e 2018, 36,7% dos 68,9 milhões de domicílios brasileiros apresentaram algum grau de insegurança alimentar. A insegurança alimentar grave, situação em que famílias não têm o que comer e, portanto, passam fome, aumentou 43,7% entre 2013 e 2018, subindo de 7,2 milhões para 10,3 milhões de pessoas.
Mulheres e pessoas pretas e pardas estão entre os grupos mais vulneráveis. Das residências em condição de segurança alimentar, 61,4% são chefiadas por homens. Tal prevalência se inverte na medida em que o nível de insegurança alimentar sobe. Em 51,9% das casas com insegurança alimentar grave as mulheres são as principais provedoras. Já em 15,8% do total de domicílios com insegurança alimentar grave, a pessoa de referência se autodeclarou preta, enquanto nas casas com segurança alimentar o percentual equivalente é de 10%. Uma das colaboradoras técnicas do relatório sobre Segurança Alimentar da POF, a nutricionista Rosana Salles-Costa, do Instituto de Nutrição Josué de Castro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que a insegurança em domicílios chefiados por mulheres ou por pessoas pretas e pardas está relacionada à desigualdade de renda e à dificuldade de acesso a condições estáveis de trabalho.
No Brasil, a insegurança alimentar diz respeito principalmente às condições de miséria da população. “O número de pessoas na extrema pobreza, ou seja, de famílias que vivem com menos de R$ 145 mensais, é muito próximo daquele que abarca a população em situação de insegurança alimentar grave”, avalia o economista Francisco Menezes, coordenador de projetos do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e pesquisador da organização não governamental (ONG) ActionAid. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, indicou que em 2017 e 2018 eram 12 milhões os brasileiros na extrema pobreza, enquanto a POF relativa ao mesmo período mostrou que a população em situação de insegurança alimentar grave envolvia 10 milhões de indivíduos. “A insegurança alimentar grave atinge famílias sem dinheiro para comprar comida. Por isso, políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, são fundamentais no combate à fome”, sustenta Salles-Costa, da UFRJ e que há 10 anos coordena o grupo que investiga os efeitos de políticas de transferência de renda no combate à insegurança alimentar.
Na avaliação do engenheiro-agrônomo José Graziano da Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) entre 2012 e 2019, o agravamento da insegurança alimentar no país decorre, em primeiro lugar, do baixo crescimento econômico observado desde meados de 2008, com o consequente aumento no desemprego e piora nos níveis de renda. Outro fator, na perspectiva de Menezes, do Ibase, envolve o enfraquecimento de políticas públicas de segurança alimentar, que vem tendo seu orçamento reduzido sucessivamente, desde 2014. Um exemplo é o Programa para Aquisição de Alimentos (PAA), do governo federal, que adquire mantimentos da agricultura familiar e os destina a pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional, à rede socioassistencial, aos equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional e à rede pública e filantrópica de ensino. O programa, que chegou a contar com R$ 2 bilhões do orçamento da União, hoje tem à disposição R$ 200 milhões.
Em texto publicado no site da ONG Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), a antropóloga Maria Emília Pacheco, que foi presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) durante quatro anos, calcula que entre 2011 e 2016 as compras públicas por intermédio do programa beneficiaram cerca de 730 mil famílias de agricultores, com a aquisição de 2,1 milhões de toneladas de alimentos, que permitiram atender a 104 mil entidades socioassistenciais em todo o país. “Em 2019, foram desestruturadas instituições fundamentais para o desenvolvimento e a execução de políticas públicas de segurança alimentar, entre elas o Ministério do Desenvolvimento Social, que foi incorporado ao Ministério da Cidadania, e o próprio Consea”, observa Menezes.
Em um fenômeno aparentemente paradoxal, a fome tem afetado de forma mais severa as populações rurais do que as urbanas, conforme identificado pelo levantamento do IBGE. Entre 2017 e 2018, a insegurança alimentar grave atingiu 7,1% dos domicílios da área rural e 4,1% das famílias que viviam nas cidades. A situação deriva principalmente do enfraquecimento das políticas de incentivo à agricultura familiar, na avaliação do cientista político Thiago Lima, do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Ele observa que desde meados dos anos 1990 o país optou por se tornar um grande exportador de commodities como soja, milho, arroz, carne, açúcar, em uma estratégia de reversão da baixa reserva cambial. Ao mesmo tempo, o período foi marcado por um forte crescimento do leste asiático, que também passou a adotar uma dieta mais ocidentalizada, rica em carnes, laticínios e açúcares, aquecendo a demanda do agronegócio brasileiro, que desde então vem aumentando suas exportações. “Essa dinâmica afetou o mercado doméstico, na medida em que cada vez mais produtores se adaptaram para atender ao mercado externo, investindo em monoculturas e reduzindo a área plantada de arroz e feijão, por exemplo, voltada ao consumo local”, diz.
De acordo com Lima, durante a primeira década dos anos 2000, o país apoiou simultaneamente o agronegócio e a produção de alimentos para o mercado nacional. “Nesse período, o bom desempenho econômico e a criação de políticas de alimentação escolar, de aquisição da produção de agricultores familiares e da construção de cisternas para o semiárido, além da ampliação de assentamentos rurais, permitiram reduzir a quantidade de famintos no país”, detalha o cientista político. Segundo ele, depois de 2016 o país passou a priorizar a exportação de alimentos, em detrimento do abastecimento local.
Em contraponto, o economista Felippe Serigati, da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV-Eesp), enfatiza a importância do agronegócio no sentido de garantir o aumento da disponibilidade de alimentos nas últimas três décadas. “Entre 1960 e 1980, a insegurança alimentar no Brasil resultava da oferta restrita de mantimentos. Havia falta de produtos e o país tinha de importar itens básicos”, destaca Serigati, que coordena o mestrado profissional em agronegócio da FGV-Eesp. De acordo com o economista, a partir da década de 1980, o desenvolvimento de tecnologias permitiu ampliar a produção local, o que colaborou tanto para a redução da insegurança alimentar quanto para o fortalecimento das exportações. Em relação ao cenário recente, de agravamento da insegurança alimentar, ele aponta a redução nos orçamentos domésticos como um dos principais fatores explicativos.
Serigati também argumenta que não é possível estabelecer uma linha divisória precisa entre o papel da agricultura familiar e do agronegócio na segurança alimentar da população, na medida em que ambos estão relacionados. “Pequenos proprietários de Santa Catarina, por exemplo, têm uma produção diversificada de grãos e atuam com a criação de frangos e suínos, mas compram milho cultivado por grandes produtores para alimentar seus animais”, observa. Além disso, ele pondera que há pequenos agricultores que abastecem tanto o agronegócio como o mercado doméstico. Um exemplo são os produtores de frutas do interior de São Paulo e do vale do Rio São Francisco.
Agricultores familiares são aqueles que possuem até quatro módulos fiscais – unidade de medida agrária expressa em hectares que varia conforme cada município –, trabalham com mão de obra da família e têm sua renda familiar vinculada ao próprio estabelecimento. Segundo dados do último Censo Agropecuário, divulgados em 2017, 77% dos mais de 5 milhões de estabelecimentos de produção agrícola do país pertencem a agricultores familiares, que respondem por 23% das áreas cultivadas. De acordo com o sociólogo Fábio Alves, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), tal grupo responde por 70% da produção de mandioca, 48% da produção de banana, 60% da produção de hortaliças, 64% da produção de leite e 51% da criação de suínos, considerados produtos fundamentais na cultura alimentar do brasileiro. Alves comenta ainda que a agricultura familiar emprega dois terços da mão de obra no campo, gerando 10 milhões de ocupações. “Além de produzir o alimento que abastece a mesa dos brasileiros, os pequenos agricultores também criam empregos e produzem para o próprio consumo”, explica o pesquisador, que integra uma equipe de trabalho dedicada a análises de desenvolvimento rural.
Lições da pandemia
“Estamos observando aumentos na prevalência de desnutrição entre a população que atendemos”, alerta a pediatra Maria Paula de Albuquerque, gerente-geral do Centro de Recuperação e Educação Nutricional da Universidade Federal de São Paulo (Cren-Unifesp). O Cren atende a famílias que vivem com menos de dois salários mínimos mensais e moram nos distritos da cidade de São Paulo com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) muito baixo: São Matheus, São Miguel Paulista, Cidade Tiradentes, Lajeado, Jardim Ângela e Brasilândia. Albuquerque observa que, entre a população desses lugares, a tendência é de piora em todas as formas de má nutrição. “Em 2019, 80% das crianças que atendíamos tinham problemas de obesidade. Agora, elas também estão chegando com outras formas de má nutrição, incluindo baixa estatura e magreza”, conta. Segundo ela, os distúrbios podem estar relacionados ao consumo de determinados produtos industrializados ou ultraprocessados, às vezes mais baratos se comparados com a comida fresca e saudável.
A farmacêutica-bioquímica Bernadette Dora Gombossy de Melo Franco, do Departamento de Alimentos e Nutrição da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP) e coordenadora do Centro de Pesquisa em Alimentos (FoRC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, destaca que certos alimentos industrializados podem agravar o problema da nutrição errada ou da desnutrição e, por isso, devem ser evitados. “Por outro lado, os alimentos industrializados são importantes para erradicar a fome e a insegurança alimentar, desde que o processamento garanta sua saudabilidade, funcionalidade e segurança”, observa.
De acordo com dados da FAO, lembrados por Graziano, no Brasil uma alimentação saudável chega a custar quatro vezes mais do que uma alimentação básica, ou seja, algo em torno de R$ 12 por refeição, valor inacessível para grande parte da população. É considerada uma dieta saudável aquela que prioriza o consumo de gorduras insaturadas e dispensa gorduras trans industrialmente produzidas; inclui menos de 10% das calorias diárias provenientes de açúcares adicionados; garante o consumo diário de pelo menos 400 gramas de frutas e vegetais e menos do que 5 gramas de sal, além de uma pequena quantidade de alimentos de origem animal.
“Pode parecer um paradoxo que pessoas com falta de comida apresentem níveis de obesidade, mas isso está relacionado com a baixa qualidade do produto ingerido”, destaca a nutricionista Semíramis Martins Álvares Domene, do Instituto Saúde e Sociedade da Unifesp, campus Baixada Santista. Ela menciona estudo realizado entre 2015 e 2017 por pesquisadores da Unifesp, que analisou o consumo de alimentos ultraprocessados e sua associação com a dependência alimentar em crianças de baixa renda que apresentam excesso de peso. Foram estudados 139 indivíduos entre 8 e 10 anos, matriculados em dois Centros Educacionais Unificados (CEU) da cidade de São Paulo. Conforme artigo publicado em 2019 na revista Appetite e que apresenta parte dos resultados da pesquisa, o principal achado entre crianças com excesso de peso foi que o consumo frequente de biscoitos, refrigerantes e salsichas está associado à ocorrência de vício alimentar, presente em 29% das crianças com excesso de peso. “O estudo constatou que essas crianças apresentam um comportamento de consumo excessivo em relação a esses alimentos que se assemelha ao observado entre dependentes químicos de drogas”, afirma a pesquisadora. De acordo com Domene, a identificação dos alimentos que podem estar associados ao vício alimentar é importante para o correto tratamento e prevenção da obesidade infantil, um dos maiores problemas de saúde pública do mundo.
Em relação às iniciativas governamentais para melhorar a segurança alimentar e nutricional das crianças brasileiras, Albuquerque menciona como uma das mais importantes o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que prevê o repasse de recursos suplementares a estados e municípios, destinados à alimentação escolar e ações educativas. “Com a iniciativa, muitas crianças passaram a receber 70% de suas necessidades nutricionais na própria escola”, detalha. Albuquerque comenta que os primeiros cinco anos de vida de uma criança são decisivos para condicionar seus hábitos alimentares. Experimentar episódios frequentes de escassez de alimentos durante a infância pode causar danos irreversíveis ao desenvolvimento físico e cognitivo da criança.
Atento a esse fato, o Cren realiza visitas periódicas a famílias nos distritos em que atua. “Durante a pandemia, fizemos essas visitas para entender como elas estavam usando os recursos do auxílio emergencial”, conta. A pediatra relata que as famílias que aderiram à proposta de alimentação baseada em produtos frescos e saudáveis estão registrando impactos positivos no peso e na altura de suas crianças e reduzindo seus níveis de insegurança alimentar. O consenso em relação à importância do consumo de produtos frescos não reduz o papel da indústria alimentícia. Deve-se ao desenvolvimento científico e tecnológico, incorporado pelo setor, a possibilidade de produção e distribuição em grande escala de produtos consumidos em abundância no mundo todo como café, cacau, cevada, soja e trigo.
Novo currículo
A preocupação com questões relacionadas à segurança alimentar tem gerado mudanças nos currículos das faculdades de engenharia de alimentos. É o caso, por exemplo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que reformulou a grade curricular da graduação para incluir discussões sobre sustentabilidade e implicações sociais no processo de produção e desenvolvimento de comida. Depois de dois anos de preparação, o novo currículo começou a vigorar em 2020. “Uma preocupação crescente tanto nos cursos de engenharia de alimentos como na própria indústria alimentícia tem sido investigar tecnologias que permitam reduzir o desperdício de comida, ampliando sua durabilidade sem causar danos ao meio ambiente ou adicionar conservantes químicos nos produtos”, detalha o cientista de alimentos Anderson de Souza Sant’Ana, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp. Segundo ele, em países em desenvolvimento como o Brasil, o desperdício de comida pode chegar a 30% de tudo o que é produzido, incluindo tanto a colheita quanto as sobras desperdiçadas em feiras, supermercados, restaurantes e nos próprios lares.
Fonte: Revista FAPESP
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