“A Reforma não é o fim do modelo Zona Franca de Manaus. É a sua reconfiguração. A indústria já conhece seu mapa. Agora é a vez do comércio e dos serviços assumirem seu papel estratégico. O futuro da economia do Amazonas dependerá da velocidade com que cada empresa compreenda esta nova lógica”
A Reforma Tributária aprovada pela Emenda Constitucional nº 132/2023 representou a maior reorganização do sistema fiscal brasileiro em meio século, simplificando tributos, criando bases mais claras de incidência e afirmando um novo pacto federativo. Dentro desse novo arranjo, a Zona Franca de Manaus foi preservada não como exceção ornamental, mas como instituição constitucional de desenvolvimento regional e ambiental.
A grande questão que chega agora ao comércio e ao setor de serviços é direta: como a ZFM funcionará daqui para frente, e que providências devem ser tomadas para que o Amazonas continue competitivo? A indústria já sabe qual será seu caminho, mas o comércio e os serviços — que formam o coração da vida urbana e grande parte da empregabilidade do Estado — precisam compreender seu papel no novo sistema.
A primeira premissa é simples: a Zona Franca de Manaus foi preservada na Constituição com mecanismos explícitos de competitividade. Isso significa que nenhum regulamento infraconstitucional poderá reduzir sua vantagem comparativa. O novo sistema tributário substituirá IPI, PIS, COFINS e ICMS por dois tributos modernos: o IBS, de natureza estadual-municipal, e a CBS, de natureza federal. Como os antigos incentivos não cabem diretamente dentro desse desenho, a Constituição determinou instrumentos equivalentes, garantindo que a ZFM mantenha sua lógica de diferenciação.
Esses novos instrumentos são os créditos presumidos de IBS e CBS e o regime de alíquota zero ou diferenciada para as operações destinadas à ZFM. Em termos práticos, sempre que uma empresa regular, cadastrada na Suframa, adquirir bens ou serviços, poderá se creditar de maneira favorecida, mantendo a competitividade típica do modelo.
A manutenção do IPI é outro ponto decisivo. Embora o tributo seja reduzido a zero para praticamente todo o país a partir de 2027, ele continuará a existir exclusivamente para proteger os produtos fabricados no Polo Industrial de Manaus, que não concorrerão em pé de igualdade com produtos idênticos fabricados fora da ZFM. Esse é o chamado “escudo competitivo”, que preserva a vocação industrial do Estado do Amazonas durante a transição.
Para o comércio e os serviços, a principal mensagem é clara: o Amazonas continuará sendo uma zona de tributação diferenciada. Isso não é discurso político, é dispositivo constitucional. O comércio local continuará a operar com incentivos, mas agora dentro de uma lógica mais transparente, baseada em créditos, rastreabilidade e comprovação. O empresário amazonense que domina essa dinâmica terá vantagem real sobre o restante do país.
Os créditos presumidos farão com que as compras feitas por empresas inscritas na Suframa se tornem mais competitivas, pois o destinatário poderá se creditar de parte relevante do IBS e da CBS, reduzindo a carga tributária efetiva. Isso tornará muitas operações mais baratas e estratégicas, inclusive incentivando empresas de fora a abastecer o mercado local.
O setor de serviços, por sua vez, talvez seja o maior ganhador do modelo. Serviços sempre sofreram com o antigo ISS, que não gerava créditos nem permitia planejamento tributário robusto. Com o IBS, os serviços passam a estar dentro de um sistema creditício nacional. Isso significa que consultorias, logística, manutenção industrial, serviços digitais, TI, design, treinamento e suporte especializado poderão competir em pé de igualdade com a indústria quando o assunto for crédito e compensação. A ZFM deixa de ser apenas um polo de produção física e passa a ter condições de se tornar um polo de serviços de alto valor agregado, algo que o modelo antigo praticamente não permitia.
A transição para esse novo modelo vai até 2033. A partir de 2029, os atuais benefícios começam a ser reduzidos gradualmente, enquanto os novos instrumentos ganham força. O período é longo, mas não deve ser interpretado como adiamento. É tempo de preparo.
A mudança é profunda porque exige compreensão técnica sobre crédito presumido, rastreabilidade fiscal, cadastros atualizados, modernização dos sistemas de gestão e adequação dos fornecedores e clientes. Não será um processo automático: quem não entender a lógica do crédito perderá competitividade, mesmo morando dentro da ZFM.
Existe, porém, um ponto que ainda não está detalhado: a regulamentação por meio das leis complementares. São essas leis que definirão quais bens e serviços terão alíquota zero, quais operações gerarão crédito presumido, quais os percentuais aplicáveis e quais as exigências de comprovação documental.
O setor comercial e de serviços precisa participar diretamente dessas discussões, porque serão elas que definirão quais atividades ganharão ou perderão competitividade. É o típico momento histórico em que quem participa define o jogo — e quem não participa descobre o resultado no Diário Oficial.
Diante das mudanças, é essencial que o comércio e os serviços iniciem um processo de “alfabetização tributária”. É preciso compreender o funcionamento do IBS e da CBS, rever os CNAEs, atualizar cadastros na Suframa, organizar contratos, profissionalizar registros, estruturar sistemas de ERP e garantir que as notas fiscais estejam alinhadas com a realidade do negócio. A economia regional entrará em um ciclo em que informalidade, erros de escrituração e processos manuais se tornarão prejuízo certo.
O novo cenário também abre oportunidades ligadas ao Fundo de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia Ocidental, previsto na Reforma. Esse fundo financiará projetos de modernização, descarbonização, serviços tecnológicos, iniciativas de bioeconomia e soluções logísticas sustentáveis. O setor comercial e de serviços pode — e deve — preparar portfólios para acessar esses recursos. Será uma fonte de financiamento estratégico para quem conseguir formular projetos sólidos.
Em síntese, a Reforma Tributária não enfraquece o comércio nem os serviços do Amazonas. Ao contrário, oferece a chance de reposicioná-los dentro de um sistema tributário moderno, baseado na lógica de créditos e na rastreabilidade digital, aberto para novos modelos de negócio e preparado para internacionalizar serviços e cadeias produtivas. Mas a transição exigirá preparação, aprendizado, articulação institucional e capacidade de adaptar-se rapidamente.
A Reforma não é o fim do modelo Zona Franca de Manaus. É a sua reconfiguração. A indústria já conhece seu mapa. Agora é a vez do comércio e dos serviços assumirem seu papel estratégico. O futuro da economia do Amazonas dependerá da velocidade com que cada empresa compreenda esta nova lógica. E, como toda mudança estrutural, o tempo não espera. Quem se preparar primeiro definirá o padrão competitivo da próxima década.