Cientista política Ana Carolina Evangelista analisa caminhos para aproximação com lideranças religiosas
Mariama Correia- Agência Brasil
A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no último domingo (30), não apaga a força da extrema-direita na política brasileira, que tem o conservadorismo de cunho religioso como um dos seus pilares. “É esse novo Brasil que o novo governo Lula vai encarar”, diz Ana Carolina Evangelista, cientista política e diretora executiva do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Ela se dedica a pesquisas do segmento evangélico desde 2016. Nesse período, o cenário mudou rapidamente.
As forças evangélicas na política se subdividiram no Brasil, afirma a pesquisadora. Parte dessas forças se alinhou politicamente à extrema-direita e se fortaleceu durante os quatro anos do governo Bolsonaro, ocupando ministérios e cargos no Judiciário. A bancada evangélica no Congresso também ganhou poder para avançar pautas conservadoras com apoio institucional do Executivo.
“Grande parte das lideranças políticas religiosas estão alinhadas com esse novo cenário da extrema-direita no Brasil e no mundo. Eu não vejo essas forças, sobretudo as que se alinharam mais explicitamente à extrema-direita, voltando para o centro”, analisa Evangelista.
Para a pesquisadora, em um Brasil mais evangélico e mais radicalizado, os espaços de diálogo entre o novo governo e lideranças religiosas precisam ser múltiplos. “Há, uma multiplicidade das formas de como essa crescente população evangélica pratica sua fé. Achar que o novo governo Lula, ao dialogar com as mais emblemáticas igrejas evangélicas e pastores, estará falando com evangélicos será um erro”, alerta.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista:
Durante o governo Bolsonaro, a bancada evangélica do Congresso recebeu apoio do Executivo para fazer avançar sua agenda conservadora. Embora os primeiros levantamentos mostrem que a bancada não cresceu em número nestas eleições, muitos religiosos bolsonaristas foram eleitos, a exemplo da ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Bolsonaro, a pastora Damares Alves, forte ativista antiaborto. É com esse Legislativo conservador, onde a bancada evangélica adquiriu tamanho poder nos últimos quatro anos, que Lula terá que governar. Quais tensões podemos prever? Há vias para diálogo com a bancada evangélica?
A bancada evangélica continuará forte, ainda que os primeiros dados não apontem para um crescimento explosivo do grupo na próxima legislatura. Ainda é difícil saber qual será o tamanho dela, porque o fato de um parlamentar ser declaradamente evangélico não determina que ele estará no núcleo ativo da bancada.
Mas já sabemos que uma parcela dessa bancada é o chamado centrão do mundo evangélico. E esse centro dialoga, negocia e articula com o governo de situação. As lideranças que estão hoje nele têm agendas políticas. A agenda moral me parece menos negociável, mas existem as agendas de benefícios fiscais a igrejas, agendas econômicas.
É importante lembrar que a bancada evangélica se articulou depois da primeira eleição de Lula, em 2002, para marcar uma posição. Mostrar que seguiram em oposição em determinadas pautas, mesmo apoiando pragmaticamente Lula na época. A diferença fundamental de 20 anos atrás para agora é: nós não estamos mais falando de um cenário político onde havia uma disputa entre a esquerda e a direita democrática. Temos hoje a disputa entre a esquerda e a extrema-direita autoritária, no Brasil e no mundo. Qualquer avaliação precisa considerar esse cenário como pano de fundo.
Então, ainda que a gente diga que teve sempre esse centrão evangélico em busca de poder nos espaços políticos, que negocia e está alinhado com quem governa, agora grande parte das lideranças políticas religiosas estão alinhadas com esse novo cenário da extrema-direita no Brasil e no mundo. Eu não vejo essas forças, sobretudo as que se alinharam mais explicitamente à extrema-direita, voltando para o centro. Elas agora têm outros aliados internacionais.
É com essa força política da extrema-direita, alinhada a elementos do mundo evangélico e católico conservador, que o presidente eleito terá que lidar. Não é mais uma conversa apenas com evangélicos na política. É sobre a força da extrema-direita na política brasileira hoje, que tem como um dos pilares o conservadorismo de cunho religioso.
Falando do avanço da extrema-direita no mundo, durante o governo Bolsonaro foram feitas várias alianças com redes internacionais de extrema-direita e aproximações com países como a Hungria. O Brasil, inclusive, assumiu protagonismo em grupos como o Consenso de Genebra, um acordo entre países conservadores contra o aborto, contra direitos reprodutivos e justiça de gênero. O fim do governo Bolsonaro implica o fim dessas redes e alianças ou elas continuarão ativas?
O cenário internacional mostra que essas redes internacionais não perdem força, mas se reacomodam em novas táticas, quando perdem espaço nos governos. A gente vai precisar entender como vai se dar essa reorganização no contexto brasileiro.
É preciso lembrar que parlamentares dessa extrema-direita foram eleitos, tanto na Câmara quanto no Senado Federal e nos espaços legislativos estaduais. Também que há alianças dessa extrema-direita organizada fora da política, em centros produtores de formação, em veículos de comunicação e forças na sociedade civil de alguma forma. Há ainda o apoio popular, em parte ideológico, em parte como reação à crise profunda de consumo, renda, emprego e desestruturação de políticas sociais que os países passam, não só o Brasil. A tendência é que, havendo uma melhoria das condições de vida, esse apoio popular também chacoalhe. Mas essas redes não estão desarticuladas.
Assim como o fim do governo Trump não significou o fim do trumpismo nos Estados Unidos, aqui o bolsonarismo seguirá existindo. Inclusive a gente viu a Suprema Corte norte-americana anular uma sentença que permitia o acesso ao aborto, já no governo Biden. Por aqui, ainda nem avançamos na descriminalização do aborto. O caminho estará livre para avançar com as pautas de direitos? Quais os riscos da reação dessas redes de extrema -direita alinhadas ao conservadorismo religioso desencadearem novos retrocessos?
Acredito que as pautas de acesso a direitos estão absolutamente ameaçadas. E não vejo esse risco diminuir, em termos de pressão ou ameaça. O governo Lula terá muita dificuldade para conter retrocessos, dada a força que a extrema-direita ganhou no Parlamento. Vislumbro anos muito difíceis para essas pautas.
A extrema-direita que perdeu o poder continuará forte e configurando suas táticas. Esse conjunto de táticas, que passa pelo universo religioso, mas não só, de alguma forma veio para ficar. É o apelo aos medos, à intolerância, à radicalização, a uma constante sensação de pânico e de insegurança, táticas que a gente vê em outros países do mundo e foram aplicadas no governo Bolsonaro, de forma institucional, nos últimos quatro anos.
É uma força tão consolidada que, ainda durante a campanha, Lula recuou do debate sobre o aborto e assumiu compromisso com a pauta de costumes, na Carta aos Evangélicos.
Não vi como recuo. É verdade que aconteceram concessões, mas uma coisa é lógica de campanha e outra no exercício do mandato. Esse mandato enfrentará o outro lado com muito mais força: no assédio judiciário por parte de grupos ultraconservadores brasileiros, com forças eleitas nos espaços legislativos, com presença no empresariado, em determinados grupos da sociedade civil. Não estamos mais falando de um grupo isolado.
No primeiro governo Lula, 20 anos atrás, essa parcela de evangélicos ligados à extrema-direita, a qual você se refere, já ocupava espaços na política brasileira?
Podemos dizer que essa parcela não estava tão radicalizada nem tão latente na política. Não era um elemento da negociação política naquele momento. Hoje, ela não só ganhou mais força como está mais explícita. Por isso a pergunta de como lidar com as forças evangélicas na política hoje requer um olhar maior sobre como essas forças estão se subdividindo. Em 2002, era uma conversa mais pragmática.
Não é só fazer algumas concessões, não é só negociar com aquele miolo que os governos Lula e o governo Dilma estavam acostumados a negociar. Esse ainda miolo existe e está disposto a negociar, me parece, porque as pontes não foram totalmente rompidas. É claro que o grosso das forças evangélicas na política está almejando poder atualmente. Não só por acesso a espaços de poder em si, mas por projeto político. E parte desse projeto político está alinhado com a extrema-direita.
E qual é o projeto político dessa parcela religiosa que se alinhou à extrema-direita?
Eleger um presidente ultraconservador, seja ele evangélico ou católico. É o que Bolsonaro faz. Ele é evangélico e católico ao mesmo tempo, mas ele entrega uma agenda. É um projeto político de imposição, silenciamento de vozes das minorias, extremamente punitivista, intolerante, de imposição da sua agenda moral como agenda geral da sociedade.
O governo Bolsonaro pode até não ter conseguido entregar concretamente toda essa agenda, porque tinha uma parte muito incompetente desse governo. Mas ele nunca saiu dela. A aposta desse grupo não é só ter acesso aos corredores do poder, pois eles já tiveram. Estão em ministérios, em cargos altos.
Eles querem concretizar um projeto político, que em parte foi implementado e ainda pode se aprofundar. A vitória de Lula não apaga isso. Não é uma página virada. É esse novo Brasil que esse novo governo Lula, de esquerda, vai encarar. E não podemos nem falar de governo de esquerda, porque o novo governo Lula é governo dessa frente ampla que ele construiu, com muitas forças a acomodar.
Há uma projeção de que o Brasil se tornará, oficialmente, um país com mais evangélicos do que católicos, em 2032. Mas, olhando tanto para a política como para a produção midiática e cultural, para as famílias, já não podemos afirmar que já somos esse país evangélico? E que isso precisa ser um norte para pautar os próximos quatro anos?
O Brasil também é evangélico. E a parcela evangélica do Brasil não é só evangélica. Esse é o norte a considerar. Essa atenção apenas com evangélicos, porque representam uma força na sociedade, não me parece um bom caminho porque as pessoas não são apenas evangélicas, ainda que tenham novas lógicas e formas de diálogo político. Ganharemos se não circunscrevermos, se não especializarmos demais essa construção política a partir dos evangélicos apenas. Justamente porque ser evangélico no Brasil não é só uma identidade religiosa. É sobre laços, visões de mundo, dilemas sociais.
Os sem religião vêm crescendo nos últimos anos. É possível um crescimento de uma identidade com a fé evangélica, mas não acho que dá para assinar embaixo dessas projeções de virada, porque o engajamento religioso é orientado por muitas camadas. Há, sem dúvida, hoje, um pertencimento e uma cultura evangélica mais presente na sociedade – na política, na música, nas famílias, nos diálogos, nos memes. E isso já tá colocado. O diálogo, então, que este novo governo precisará fazer é com o Brasil também evangélico, não apenas evangélico.
“É com essa força política da extrema-direita, alinhada a elementos do mundo evangélico e católico conservador, que o presidente eleito terá que lidar”, afirma Evangelista
Conversei com muitos pastores quando estive em São Gonçalo (RJ), acompanhando um encontro de Lula com evangélicos. Muitos falaram que a esquerda errou ao romper pontes com as lideranças evangélicas, que deixou as igrejas de lado, sobretudo nas periferias. Você concorda? Porque, de fato, lideranças que estiveram ao lado de Bolsonaro durante o governo e a campanha já foram aliadas dos governos do PT, como o bispo da Universal, Edir Macedo, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo e o deputado federal eleito, o pastor Magno Malta (PL).
As pontes não estão rompidas por um erro da esquerda, mas porque parte do universo evangélico aderiu a um projeto de extrema-direita. A visão de mundo, a pauta política concreta rompeu as pontes. É inconciliável um projeto de país que seja autoritário, excludente, intolerante, que busque o armamento. Não existe reconstrução de pontes com esse grupo que foi para o extremo. Com o centro, sim. Grande parte desse centro evangélico hoje ou se cala ou apoia Bolsonaro, ainda que não de forma tão explícita. Acredito que, com esse centro pragmático, será possível conversar e recompor pontes.
Essa recomposição de pontes foi iniciada um pouco tarde na campanha? Alguns movimentos mais incisivos de aproximação, como o lançamento da Carta aos Evangélicos, parecem ter sido feitos muito perto da reta final, quando Bolsonaro já tinha consolidado sua liderança nesse segmento.
Nunca achei que a campanha de Lula deveria falar especificamente com evangélicos. Porque entendo que falar a partir das pautas de justiça social, acesso a renda, economia e emprego também é um caminho mais amplo de diálogo com essa população autodeclarada ou que nós identificamos como evangélica. O que acabou acontecendo na campanha de Lula é que ele precisou reagir. Basicamente porque, ligado ao universo evangélico, se fortaleceu uma tsunami de notícias falsas e uma narrativa já conhecida e antiga do acionamento das ameaças e dos pânicos morais que o comunismo e a esquerda poderiam representar. Paralelo a isso houve um aumento da perseguição política em espaços religiosos.
Desde 2018, quando partes do segmento evangélico entenderam que o governo Bolsonaro entregaria a agenda moral conservadora que eles pregam, a gente sabe que, nos bastidores, o assédio político e a orientação de voto existia. Isso foi para outro patamar este ano, surpreendendo inclusive quem está e acompanha esse mundo religioso há muito tempo, com cartas de pastores, depoimentos de fiéis, seja na reprodução de mentiras ou no assédio político. Era preciso uma forma conjuntural de responder a parte do universo evangélico que pautou a campanha. No mandato, a estratégia não pode estar circunscrita a esse universo.
Mesmo acuado nessa frente de ataques de notícias falsas e perseguição política, promovidas por muitas lideranças evangélicas, Lula não incorporou representantes desses espaços na campanha, só por ser pastor ou ser da igreja A ou B, como aconteceu no governo Bolsonaro. A própria figura de Marina Silva (Rede-SP), muito forte no palanque, não tem como principal identidade o fato de ser evangélica, embora ela não esconda isso – já escondeu muito mais no passado, por ser atacada pela própria esquerda.
Além de Marina Silva, outras lideranças evangélicas progressistas também apoiaram Lula. Alguns conseguiram se eleger este ano.
Sim. Tivemos parlamentares do campo evangélico progressista eleitos, isso é uma novidade. Se antes a gente só citava a Benedita da Silva, hoje podemos citar Marina Silva e o pastor Henrique Vieira, que foi eleito deputado federal pelo Psol, no Rio de Janeiro, com uma força considerável.
Ele teve uma votação muito próxima de Sóstenes Cavalcante (PL), presidente da bancada evangélica, uma força política importante no Rio de Janeiro e no Congresso Nacional e bolsonarista de primeira ordem. E, pela forma como tem se posicionado, depois de eleito, Henrique Vieira traz formas da centro-esquerda abordar temas difíceis, que não sejam nos extremos polarizados, como a questão da legalização das drogas, do aborto, dos direitos das mulheres.
Essas novas lideranças políticas evangélicas progressistas, como o pastor Henrique Vieira, muitas vezes também representam comunidades periféricas, onde as igrejas cumprem papéis que deveriam ser do Estado. Uma crítica recorrente, que tenta explicar como o bolsonarismo cooptou apoio massivo entre os evangélicos, passa pelo fato de que o campo progressista não entendeu esse papel das instituições, sobretudo nas periferias. O novo governo precisará reconhecer as igrejas evangélicas como espaços não mais meramente religiosos, mas onde também se faz política? É possível construir políticas públicas no Brasil de hoje sem considerá-las?
É preciso considerar que as igrejas – não só evangélicas – são importantes espaços de socialização e de promoção de políticas de assistência social. Não se trata apenas de um diálogo a partir de conteúdos de políticas públicas, mas com quem construir essas políticas públicas.
Os espaços de diálogo terão que ser múltiplos. Não mais apenas os sindicatos, determinadas associações comunitárias de bairro ou espaços partidários. São múltiplos espaços associativos nos territórios, ligados ou não a igrejas. Grupos de jovens, de mulheres, de assistência social, movimentos periféricos de comunicação.
Diversas formas de organizações que fazem política. No campo da juventude, Regina Novaes, uma das pesquisadoras-chave nessa frente, chama atenção para os grupos de jovens desigrejados, que se assumem como evangélicos, mas não são ligados a igrejas. Há, então, uma multiplicidade das formas de como essa crescente população evangélica pratica sua fé. Achar que o novo governo Lula, ao dialogar com as mais emblemáticas igrejas evangélicas e pastores estará falando com evangélicos, será um erro.
Os evangélicos são muito vulneráveis à desinformação. Lideranças cristãs e grupos de igrejas no WhatsApp ajudaram a espalhar fake news de conteúdo político e religioso. É muito difícil desmentir o que o pastor ou o padre afirmou aos seus fiéis. E, como se isso não bastasse, além das capilarizadas e bem articuladas redes de desinformação na internet, no Brasil nós temos grandes grupos religiosos que são donos de TVs, rádios e sistemas de comunicação, como é o caso da Rede Record, da Igreja Universal. Como o próximo governo pode resolver esse problema da desinformação política de cunho religioso?
Isso foi feito, de alguma forma, pelo TSE. Mas esse não é um cenário que se pode mudar no curto prazo. A arquitetura da desinformação não é nova. Quantos pesquisadores, que analisam a extrema-direita no mundo e o bolsonarismo no Brasil, alertaram sobre isso antes da eleição de 2018? Se tem um erro que o campo progressista cometeu foi subestimar essa arquitetura, sua capilaridade e profundidade. Encarar isso como algo circunscrito a pessoas mal informadas e a núcleos religiosos obtusos, ignorantes. Essa eleição deixou claro que não se restringe a isso. E que essas notícias falsas têm aderência no cotidiano em que essas pessoas vivem.
Finalmente, o peso dessa arquitetura, que passa por grandes empresas digitais, conglomerados de mídia e plataformas nas redes sociais, está mais claro. E isso fará com que as forças democráticas no Brasil lidem com isso, embora eu não veja ainda propostas claras para lidar com isso.
Espaços comunitários ligados a espaços religiosos também são parte da sociedade civil. É preciso estar em diálogo com esses espaços e grupos religiosos como parceiros e construtores no combate à desinformação. Não será possível combater a desinformação apenas por fora, olhando grupos religiosos e espaços comunitários ao redor de igrejas evangélicas como algo separado. É preciso escutá-los, fazer com eles. Entender como essa desinformação circula, qual é a aderência, como dialoga com as realidades das pessoas.
Texto publicado originalmente em Agência Pública
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