Brasil avança com legislação para proteger o conhecimento tradicional com a Lei da Biodiversidade, estabelecendo um marco na repartição de benefícios e no uso ético de recursos naturais.
Visualize este cenário: estamos no crepúsculo do Segundo Império Brasileiro, momento em que representantes do Royal Botanic Gardens, Kew, em Londres, aportam no Brasil. Sua missão é clara: obter amostras da seringueira, uma maravilha natural da Amazônia sobre a qual o mundo daquela época já havia ouvido falar.
Desconsiderando a necessidade de permissão de autoridades brasileiras, esses enviados retornam ao seu país com uma considerável quantidade de sementes. Posteriormente, germinam as sementes em território britânico e estabelecem extensos plantios de seringueiras nas suas colônias no Sudeste Asiático. O resultado é inevitável: no alvorecer do século XX, o Reino Unido ascende como o principal produtor mundial de borracha. Como consequência direta, a economia baseada na extração de borracha na Amazônia entra em colapso, desencadeando uma crise econômica.
Educação e legislação ambiental
Este episódio é narrado com entusiasmo por Bráulio Dias, ex-docente de Ecologia na Universidade de Brasília e, na época atual, diretor de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente. Ele aborda o tema em um curso disponibilizado no YouTube intitulado “Boas Práticas para Pesquisas que Acessam Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado”, que serve como um guia introdutório sobre as ações permitidas e proibidas com os recursos naturais brasileiros.
De fato, o termo “boas práticas” é crucial, considerando que cientistas de diversas nacionalidades, incluindo os brasileiros, demonstram um conhecimento superficial sobre a Lei Federal nº 13.123/2015, também conhecida como Lei da Biodiversidade.
Bráulio Dias ressalta, durante o curso, que “O meio ambiente é um bem público, que deve ser protegido de modo compartilhado entre União e entidades interessadas em explorá-lo”. Ele enfatiza que os recursos naturais do Brasil não estão à disposição para exploração descontrolada, utilizando a expressão “A natureza brasileira não é a casa da mãe Joana.”
Embora essa declaração provoque um sorriso no diretor do MMA durante uma entrevista, a leveza do momento é breve. “Desde a época colonial, quando os europeus levaram o nosso cacau para ser cultivado na África e Ásia, vivemos uma assimetria no comércio internacional”, ele observa. E acrescenta que essa desigualdade persiste, visto que nações desenvolvidas e suas corporações continuam a explorar os melhores recursos naturais do mundo, monopolizando os benefícios econômicos resultantes.
Desafios na gestão da biodiversidade
Este é reconhecido como um dos desafios mais complexos para a gestão do ministério sob a liderança de Marina Silva. Especialistas argumentam que a Lei da Biodiversidade do Brasil possui os mecanismos necessários para sua implementação efetiva, porém, ainda há uma carência de medidas concretas.
O Brasil detém o título de nação com a maior biodiversidade do planeta, representando cerca de 20% da biodiversidade global. Os números são impressionantes: mais de 100 mil espécies animais, aproximadamente 50 mil espécies de plantas (incluindo 140 variedades amazônicas domesticadas pelos povos indígenas), além de um potencial econômico que poderia incrementar o PIB nacional em aproximadamente US$ 53 bilhões anuais em duas décadas, levando em conta apenas os avanços da biotecnologia industrial.
Portanto, é compreensível o interesse internacional pelos recursos naturais brasileiros. Outra estimativa, divulgada pelo site da Vitrine da Biodiversidade Brasileira (VBIO) — uma plataforma online que facilita a captação e alocação de recursos para projetos ambientais —, aponta que o Brasil sofre uma perda anual de US$ 5 bilhões devido à biopirataria.
Fortalecendo a visibilidade das comunidades tradicionais
O curso dedicado às práticas adequadas no manejo e utilização da biodiversidade brasileira é uma iniciativa do Instituto Escolhas, sediado em São Paulo. Este mesmo instituto propôs ao Ministério do Meio Ambiente a criação de um Banco de Dados do Patrimônio Genético nacional. Ainda aguardando aprovação, essa ferramenta digital visa facilitar o monitoramento dos estudos realizados com a biodiversidade do país, promovendo a interação entre pesquisadores, o governo e os portadores de conhecimento tradicional.
Jaqueline Ferreira, que ocupa o cargo de gerente de portfólio no Instituto Escolhas, vê o Banco de Dados como uma solução para uma lacuna significativa na legislação atual: a dificuldade em vincular o patrimônio genético ao conhecimento tradicional correspondente.
Considere o cenário de uma investigação científica focada em um determinado componente, encontrado exclusivamente em uma planta de um bioma brasileiro específico. Essa pesquisa pode levar ao desenvolvimento de novos cosméticos ou alimentos, embora haja incertezas. Independentemente do resultado, tal pesquisa envolve o uso do Patrimônio Genético (PG) nativo, exigindo seu registro no SisGen, o Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado.
De acordo com análises feitas pelo Instituto Escolhas, aproximadamente 87% dos cadastros no SisGen mencionam o Patrimônio Genético sem fazer qualquer referência ao Conhecimento Tradicional Associado (CTA). Isso implica uma invisibilidade sobre qual comunidade indígena ou grupo tradicional tem utilizado determinado elemento da biodiversidade nacional.
Jaqueline questiona criticamente: “Como é possível aventar a possibilidade de uso, sem dar sua origem? ”, alfineta Jaqueline. “Esse conhecimento caiu do céu?
Luiz Marinello, advogado especialista nos aspectos legais da bioeconomia no Brasil, enfatiza que a legislação brasileira prioriza a rastreabilidade. “O governo deseja compreender como e onde uma espécie da nossa biodiversidade está sendo aplicada, e qual seu destino.”
Essa exigência se aplica tanto a pesquisadores independentes quanto àqueles que trabalham para a indústria. No entanto, se o uso do Patrimônio Genético resultar em um produto comercial, como um cosmético, surge uma nova obrigação. “Um ano após o início das vendas do produto, a empresa deve calcular o lucro líquido obtido para que seja feita a repartição de benefícios”, explica Marinello. A definição prévia de uma base de cálculo para a divisão dos benefícios gerados pelo acesso e uso da biodiversidade é uma característica única da legislação brasileira.
O Protocolo de Nagoya, que entrou em vigor em 2014 após sua assinatura em 2010, tem o objetivo de implementar as diretrizes da Convenção sobre a Diversidade Biológica. Esta convenção, estabelecida durante a ECO-92, foi pioneira ao destacar a importância da repartição de benefícios oriundos do uso do Patrimônio Genético com os detentores do conhecimento. O Brasil assinou o protocolo em 1994, mas somente em 2021 o Congresso Nacional o ratificou, permitindo sua entrada em vigor.
O Protocolo de Nagoya estabeleceu duas formas de repartir os benefícios derivados do uso do Patrimônio Genético: através de compensações monetárias e não monetárias. A legislação brasileira inovou ao criar o Fundo Nacional de Repartição de Benefícios. Conforme a lei determina, se uma empresa optar pela repartição monetária, ela deve contribuir com 1% da renda líquida para o fundo, em um processo que ocorre anualmente. Para a repartição não monetária, o investimento é de 0,75% em projetos sustentáveis à escolha da empresa.
A pesquisa e o conhecimento tradicional
Prosseguindo com a narrativa, considere uma pesquisa que utilize o Patrimônio Genético ligado a um saber tradicional, como o uso de óleo de babaçu, extraído seguindo as técnicas de uma comunidade tradicional, para a formulação de um creme de beleza.
Neste contexto, o pesquisador precisa obter autorização do detentor do conhecimento antes de iniciar o projeto, além de registrar a pesquisa no SisGen. “O primeiro passo é dialogar com a liderança local e estabelecer um contrato de acesso”, afirma Luiz Marinello.
O Banco de Dados sugerido pelo Instituto Escolhas poderia facilitar esse processo? “Com um simples clique, ele direciona o pesquisador, indicando as comunidades ligadas ao conhecimento em questão”, explica Jaqueline. Isso é particularmente útil quando o mesmo Conhecimento Tradicional Associado é compartilhado por várias comunidades, o que pode complicar as negociações.
Negociações diretas com comunidades
A Lei da Biodiversidade também favorece a negociação direta entre as partes interessadas, uma abordagem adotada pela Natura, que trabalha diretamente com 48 comunidades, 41 delas situadas na Amazônia.
“Preferimos negociar diretamente com as comunidades, um processo que pode levar até dois anos”, compartilha Mauro Costa, gerente de suprimentos da Natura.
Na região do Médio Juruá, na Amazônia, a empresa tem estabelecido acordos para o uso do Patrimônio Genético associado ao conhecimento tradicional com cooperativas locais. “Nosso objetivo é que a repartição de benefícios beneficie diretamente as comunidades, valorizando seus estilos de vida”, destaca Priscilla Matta, gerente de sustentabilidade da Natura.
Quanto à aquisição de matérias-primas, a abordagem é diferente. “Adotamos os princípios do comércio ético de bioprodutos, sem a necessidade de repartição de benefícios”, esclarece Mauro. Neste caso, a legislação não exige o registro no SisGen para a compra de matéria-prima, sendo o acordo comercial realizado diretamente entre a empresa e o produtor.
Desafios
Essas diferentes modalidades de contrato não agradam a todos. “Há uma situação de vulnerabilidade, pois as comunidades podem não querer entrar em conflito com quem compra sua produção, que é sua fonte de subsistência”, analisa Jaqueline.
A interação entre lideranças comunitárias e grandes empresários apresenta desafios significativos, especialmente quando se trata de negociar termos justos, inclusive na venda de colheitas. Bráulio Dias, destacando uma das principais dificuldades enfrentadas pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), reconhece que muitas comunidades tradicionais não possuem suporte jurídico adequado para proteger seus interesses.
O Protocolo de Nagoya promove a elaboração de protocolos comunitários, incentivando comunidades, sejam elas indígenas ou não, a discutir e estabelecer normas próprias. Bráulio Dias afirma que a Lei da Biodiversidade do Brasil, que ele considera não necessitar de ajustes, alinha-se às diretrizes internacionais. No entanto, quando questionado sobre exemplos bem-sucedidos dessa implementação, ele responde apenas com um sorriso.
Exemplos práticos
A complexidade de satisfazer interesses diversos nas negociações que envolvem ciência, indústria, governo e comunidades locais é evidente. Um caso à parte é o da Centroflora, gigante do setor farmoquímico, que se destaca na produção de Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFA) utilizando o Patrimônio Genético brasileiro. A empresa tem se notabilizado por projetos como o do jaborandi, cuja folha seca é fonte do princípio ativo pilocarpina, utilizado no tratamento de glaucoma e presbiopia.
Operando fazendas no Norte e Nordeste do Brasil, a Centroflora adquire matéria-prima de cooperativas de coletores e, por ser uma intermediária, realiza o registro no SisGen, mas não é obrigada a repartir benefícios da comercialização dos produtos. Contudo, a empresa vai além, promovendo iniciativas como o programa “Parcerias para um Mundo Melhor”, que desde 2003 incentiva práticas sustentáveis entre os coletores.
Cristina Ropke, diretora de inovação da Centroflora, compartilha a visão de Bráulio Dias sobre a Lei da Biodiversidade, considerando que, apesar de necessitar de melhorias, especialmente no SisGen, a legislação já oferece uma segurança jurídica valiosa.
Luís Carraza, secretário-executivo da Cooperativa Central do Cerrado, tem uma visão crítica da Lei da Biodiversidade, considerando-a confusa e acreditando que coloca exigências sem oferecer diretrizes claras. Ele argumenta que, apesar de a lei proteger o direito comunitário de obter renda através da repartição de benefícios, ela pode desencorajar empresas que não possuem um departamento jurídico robusto, levando-as a desistir de negociações.
A Cooperativa Central do Cerrado, fundada em 2004 e composta por 23 filiadas, emerge como um exemplo de como as comunidades do interior do Brasil buscam ser ouvidas e respeitadas em relação às riquezas de seus territórios. A cooperativa foi criada a partir da necessidade de unir forças para realizar um comércio coletivo, utilizando uma estrutura única para vender produtos como baru, buriti e pequi, sempre seguindo princípios éticos de conservação da biodiversidade, conforme resumido por Luís Carraza.
O caso da cooperativa Grande Sertão
A Cooperativa Grande Sertão, situada em Montes Claros, no semiárido mineiro, é um exemplo emblemático de como a colaboração entre comunidades tradicionais e empresas pode fomentar tanto o desenvolvimento sustentável quanto a preservação ambiental. Dentre os diversos produtos comercializados pela cooperativa, o óleo de buriti se destaca, sendo um ingrediente chave para a Natura na fabricação de seus cosméticos.
José Fábio Soares, o técnico responsável pela cooperativa, enfatiza a importância do conhecimento tradicional, passado de geração em geração, na produção do óleo. O processo começa com a coleta da polpa do buriti, que é exposta ao sol para secar, um método conhecido localmente como a “raspa do buriti”.
A relação com a Natura, um dos principais clientes da cooperativa, é marcada por respeito e colaboração mútua. José Fábio recorda as dificuldades iniciais em compreender o conceito de repartição de benefícios, mas destaca o papel educativo da Natura ao esclarecer a legislação, um conhecimento que se mostrou valioso para a cooperativa. Atualmente, a Grande Sertão reúne cerca de 2 mil famílias de 35 municípios, todas comprometidas com a conservação do Cerrado e da Caatinga, enfrentando o desafio do desmatamento.
José Fábio alerta para os riscos associados ao uso extensivo de terras para a produção de carvão, que ameaça tanto a biodiversidade local quanto a subsistência das famílias que dependem das práticas tradicionais. Este cenário reforça a necessidade de proteger os ecossistemas nativos e as comunidades que deles dependem.
A relação simbiótica entre comunidades tradicionais, povos indígenas e a preservação das florestas é evidenciada por indicadores legais, como aponta Luiz Marinello. O advogado, um defensor da legislação vigente, ressalta a importância de ações urgentes, como o treinamento dessas comunidades, para garantir que elas estejam plenamente cientes dos direitos que possuem. Marinello enfatiza a necessidade de tornar a lei mais eficaz, assegurando que povos e comunidades tradicionais tenham conhecimento e capacidade para exercer seus direitos de forma plena.
A Lei da Biodiversidade brasileira se posiciona na vanguarda ao abordar o conceito de acesso in silico, que se refere ao uso de informações genéticas digitais para a reprodução de amostras em laboratório, sem a necessidade de acesso físico. Esta abordagem reflete a evolução tecnológica das indústrias, que agora podem explorar a biodiversidade por meio de sequências digitais, um método que dispensa o manuseio de amostras materiais.
O uso de Sequências Digitais de Informação (DSI) de recursos naturais é um dos temas mais atuais e polêmicos. A discussão ganhou destaque na COP 15, realizada em Montreal em 2022, onde se debateu se o DSI deveria ser regulamentado de maneira específica. A controvérsia reside na capacidade de acessar e utilizar a biodiversidade sem a necessidade de coleta física, apenas por meio de dados digitais.
Decisões da COP15 e o futuro do Protocolo de Nagoya
Ao final das discussões na COP15, chegou-se ao consenso de que o Protocolo de Nagoya também se aplica ao DSI, estabelecendo que a repartição de benefícios deve ser respeitada mesmo no contexto digital. Propõe-se a criação de um sistema aberto de acesso às informações sobre biodiversidade que já estão disponíveis online, garantindo a liberdade de acesso, mas com um controle interno por parte dos países sobre o uso do Patrimônio Genético associado às suas riquezas naturais.
Luiz Marinello esclarece que, após a identificação do uso de DSI por meio de bancos de dados globais, a ideia é contribuir com um valor ainda a ser definido para um fundo comum, que posteriormente será distribuído entre os países envolvidos. A discussão ainda está em curso, mas sinaliza uma mudança significativa na gestão do acesso e uso da biodiversidade: o Protocolo de Nagoya parece estar caminhando para ser substituído por um sistema multilateral de repartição de benefícios, marcando um novo capítulo na história do acesso e uso sustentável dos recursos naturais.
Com informações do Mongabay
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