Juntas e misturadas, propostas a serem adotadas nos 100 primeiros dias de governo podem semear uma agenda integrada para a região, nas esferas federal e estadual, dialogando tanto com o poder executivo quanto com o legislativo. Confira o debate sobre o documento lançado em outubro por Uma Concertação pela Amazônia
Por Amália Safatle
Palavra de origem indígena que significa mistura, a muvuca é uma forma eficiente de fazer restauração ecológica. Juntam-se sementes de variadas espécies, adubação verde e areia para semear e terra e recompor o ecossistema em toda a sua diversidade. Uma semente vira árvore, e o conjunto delas vira uma floresta. Urucum, andiroba, ucuuba, jarina, pau-rosa e castanha-do-brasil são algumas das espécies amazônicas que a artista visual manauara Hadna Abreu desenhou, em forma de aquarela, para retratar a “muvuca” de ações necessárias para conservar e recompor as diversas Amazônias e retomar a rota de desenvolvimento sustentável da região. As imagens ilustram o documento 100 primeiros dias de governo: propostas para uma agenda integrada das Amazônias, lançado em outubro pela rede Uma Concertação pela Amazônia.
Juntas e misturadas, as propostas podem semear uma agenda integrada para a Amazônia no início dos novos mandatos que se iniciam no Legislativo e no Executivo, nas esferas federal e estadual. O período que compreende os 100 primeiros dias é estratégico. Neste momento de renovação, os eleitos contam com a máxima confiança da sociedade para implementar políticas e mudanças necessárias. Abre-se, portanto, a oportunidade para se estabelecer uma boa governança e adotar medidas inadiáveis, sinalizando transformações sociais, ambientais e econômicas para a Amazônia perante a sociedade como um todo e a comunidade internacional.
A ação é de curto prazo, mas o que se pretende colher é um desenvolvimento duradouro, visando em primeiro lugar o bem-estar das populações locais, o que se refletirá em benefícios de longo prazo para o Brasil e o mundo. A Amazônia, que deve deixar de ser vista como problema e passar a ser solução, tem papel central na regulação climática regional e importante influência no sistema global do clima.
As propostas apresentadas, analisadas pela XVV Advogados sob o ponto de vista da viabilidade jurídica, podem ser adotadas tão logo os novos governos assumam seus postos em janeiro de 2023. O documento traz proposições normativas específicas para os temas de governança; educação; saúde; segurança alimentar e nutricional; economia; segurança pública; ordenamento territorial e regularização fundiária (OTRF); mineração; infraestrutura e cidades – aproveitando projetos de lei já em tramitação.
Além de propostas normativas específicas, o documento traz para os diversos temas o diagnóstico e a sugestão de ações prioritárias, além da indicação de outras referências e propostas de parceiros, já trabalhadas por outras organizações que fazem parte da rede, entre as quais o projeto Amazônia 2030. Com isso, a iniciativa buscou não reinventar a roda, e sim os caminhos mais viáveis, pragmáticos e efetivos.
O documento nasceu de um intenso debate envolvendo sociedade civil, representantes locais, gestores públicos e especialistas. Foram realizadas 12 rodadas temáticas entre março e julho, para identificar diagnósticos e soluções em cada tema, envolvendo cerca de 200 participantes. De 80 ações priorizadas, nasceram 14 propostas e foram mapeados 25 projetos de lei de interesses. As discussões levaram em conta a complexidade da região, que apresenta problemáticas intrincadas para as quais não há soluções definitivas nem isoladas – são os chamados wicked problems. Sem “bala de prata” o caminho está em lidar com todas as perspectivas, a partir de um arcabouço que permita o diálogo entre as diversas partes.
O relatório já ganhou ampla repercussão: seu lançamento, no Fórum Amazônia é Solução, realizado em parceria com o jornal O Estado de S. Paulo e a Rede de Ação Política pela Sustentabilidade (Raps), em 26 de outubro, obteve audiência de mais de 40 mil acessos e 99 inserções em veículos de todo o País. Levado até a 27ª Conferência da Partes sobre Mudança do Clima (COP 27), que ocorre neste momento no Egito, o documento coroa um processo iniciado há exato um ano, durante a COP 26, na Escócia, quando foi apresentada Uma Agenda pelo Desenvolvimento da Amazônia. A Agenda já havia consolidado discussões, aprendizados e ações propostas pelos grupos de trabalho da Concertação. O documento dos 100 primeiros dias deu um passo além na priorização e concretude das propostas.
No encontro dos integrantes de Uma Concertação pela Amazônia realizado em 7 de novembro (22º encontro), a rede debateu com mais profundidade algumas das propostas do novo documento. No encontro, Beto Vasconcelos, sócio da XVV Advogados, destaca o fato de a sociedade civil ter se organizado durante um momento politicamente sensível (em que as instituições democráticas estiveram sob ataque), sobre um tema tão relevante como a Amazônia, em um curto espaço de tempo. Veja a seguir as propostas sugeridas por tema e o tipo de instrumento normativo para implementar cada uma delas:
Além dessas propostas, a XVV contribuiu para reunir um conjunto de projetos de lei de interesse, também apresentados no documento. Esse mapeamento normativo procurou apresentar as medidas em tramitação que endereçam ou influenciam direta ou indiretamente as propostas e os temas discutidos. Com isso, os tomadores de decisão poderão incidir preventivamente e em conjunto com os demais atores políticos estratégicos.
Mapeamento do território
Um dos temas mais basilares para o desenvolvimento da Amazônia é a governança de seu território, expressa pelo ordenamento territorial e pela regularização fundiária. O ordenamento consiste no planejamento dos usos da terra, por exemplo, definição da área destinada à agricultura e à pecuária, à conservação, ao uso urbano, à instalação de infraestrutura, ao reconhecimento e proteção do uso da terra por comunidades tradicionais. Já a regularização fundiária estabelece os direitos formais de propriedade ou concessão de direito real de uso a quem é de direito. No Brasil, o termo significa o reconhecimento do direito sobre a terra por indivíduos ou coletividades em terras públicas, com consequente destaque do patrimônio público e titulação em favor de entes privados (ver mais detalhes aqui).
Passados 522 anos do descobrimento, o Brasil ainda não tem 100% do seu território mapeado sem sobreposições de dados, segundo Gabriel Siqueira, presidente do Instituto Governança de Terras e facilitador do Grupo de Trabalho de OTRF da Concertação. As duas propostas do documento buscam justamente sanar as lacunas de destinação de terras públicas e construir, de fato, um cadastro com as bases de dados já existentes. Há uma urgência do ponto de vista fundiário, pois as áreas públicas ainda não destinadas favorecem a ocorrência de criminalidade e atividades ambientais ilegais.
Previstas por decreto presidencial, as medidas são criar um Grupo de Trabalho Interministerial para elaboração da Política Nacional de Governança de Terras e do Plano Nacional de Ordenamento Territorial, e estabelecer uma comissão para estudar a viabilidade técnica, jurídica e operacional para integração de cadastros imobiliários e fundiários.
Embora Siqueira entenda que as propostas não apresentem a saída definitiva para problemas históricos em 100 dias, ele ressalta a importância de se criar comitês e comissões. “A partir dos espaços de diálogo vamos buscar soluções, porque essa pauta é complexa, envolve muitos atores e interesses”, diz.
Uma das vantagens de se integrar cadastros é ganhar em transparência, permitindo, por exemplo, aumentar o índice de verificação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), ainda muito baixo. Sobre o Plano Nacional de Ordenamento Territorial, o primeiro ganho seria o reconhecimento das Terras Indígenas – áreas que comprovadamente mais preservam as florestas –, além de favorecer a gestão de florestas públicas que estão sem destinação clara. E, ao prever o registro das áreas públicas em nome do Estado brasileiro, fica mais fácil processar judicialmente a grilagem.
Efeitos de longo prazo
Também por decreto presidencial, propõe-se qualificar os projetos de infraestrutura da Amazônia Legal no Programa de Parcerias do Investimento, antecipando a avaliação de impactos socioambientais no processo decisório. O tema da infraestrutura é igualmente central para a Amazônia. “Não há setor que movimente tamanha quantidade de recursos e com tanta longevidade (ou seja, com efeitos repercutindo no longo prazo)”, diz a ambientalista e consultora Ana Cristina Barros, especialista no tema. Ela explica que a tomada de decisões relacionadas à infraestrutura – por exemplo, construir uma estrada ou uma hidrelétrica – determina a quantidade de emissões de carbono por até meio século, bem como o padrão de desenvolvimento local nos territórios, a partir das características da ocupação humana induzidas pelas obras.
Ao mesmo tempo em que geram grandes impactos socioambientais, as obras de infraestrutura são necessárias para a Amazônia e o Brasil. “O desafio está em fazer da infraestrutura uma solução”, diz Barros. A ideia é que se faça uma análise de risco valorizando os estudos de viabilidade que, em seu entendimento, são elaborados ainda de forma muito cartorial.
Especialistas no tema costumam dizer que os projetos de infraestrutura no Brasil não são apenas “territorialmente cegos”, como também “socialmente surdos”. Ou seja, têm baixa participação social, limitados a processos de licenciamento ambiental, nos quais falta uma escuta anterior às populações impactadas sobre o que se entende e se deseja como desenvolvimento.
Conforme debatido na rodada temática sobre infraestrutura, é fundamental que a região não seja mais tratada como mera fornecedora de energia e commodities, mas que possa desenvolver-se a si mesma e apresentar soluções inovadoras para o Brasil e o mundo. Para isso, é necessária uma escuta ativa capaz de mapear as prioridades antes de se definir onde serão feitos os investimentos, estimar os custos e buscar a baixa emissão de carbono com olhar social. Fazem-se necessários um painel capaz de equacionar conflitos existentes e novos instrumentos que financiem os projetos com base em resultados econômicos, sociais e ambientais.
Combate à ilegalidade
Uma das atividades econômicas com maior impacto negativo na região amazônica é a extração de ouro, bastante atrelada a práticas irregulares. “Quando se olha para o mercado de ouro no Brasil, quase metade tem indícios fortes de ilegalidade”, diz Larissa Rodrigues, do Instituto Escolhas, que fez estudo sobre o assunto. Segundo ela, somente em 2021 foram comercializadas 50 toneladas de ouro ilegal, a maior parte oriunda na Amazônia, envolvendo cinco Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM). Pela lei, as DTVM podem comprar ouro de garimpo, considerado um ativo financeiro e não uma mercadoria. “O controle é importante porque a atividade do garimpo está ligada a desmatamento, contaminação por mercúrio, violação de direitos humanos e perda de reputação do Brasil no cenário internacional, pois a maior parte do ouro é exportado”, diz.
Diante disso, o documento apresenta duas propostas. Uma é revogar o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala, por decreto presidencial. “Por trás de dar apoio para pequenos empreendimentos, esse programa legalizava o garimpo ilegal”, diz. A outra é estabelecer novos parâmetros para compra, venda e transporte de ouro no território nacional, por meio de Medida Provisória. Rodrigues defende o uso de uma MP diante da necessidade de conferir ao assunto um senso de urgência maior do que teria por meio de Projeto de Lei. PL têm trâmite mais lento, o que ainda pode ser procrastinado em um Congresso de perfil conservador, como o eleito este ano.
Ela diz ainda que a necessária desintrusão de garimpeiros ilegais das Terras Indígenas e Unidades de Conservação não é suficiente. Precisa ser acompanhada do rastreio do ouro, desde a produção até a comercialização. Outras medidas importantes para a transparência no sistema de rastreabilidade são a digitalização dos documentos que comprovem a validade da lavra e uso de notas fiscais eletrônicas.
Se de um lado as atividades ilegais devem ser combatidas, de outro é preciso apresentar alternativas de emprego e renda para as populações vulnerabilizadas, especialmente em uma região em que as desigualdades brasileiras são ainda mais acentuadas, como a amazônica.
“Somos marcados pelas desigualdades. Combatê-las precisa estar no radar de todas as políticas públicas”, afirma Nabil Kadri, chefe do departamento de Meio Ambiente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Ao mesmo tempo em que é desigual, o Brasil é extremamente diverso, dos pontos de vista cultural e biológico, o que, na opinião de Kadri, pode favorecer o desenvolvimento inclusivo e de baixo carbono nas próximas décadas. “A diversidade pode ser a solução para as desigualdades”, diz.
Para ele, essa diversidade constitui uma base de oportunidades para a bioeconomia, sendo necessário buscar recursos que financiem o desenvolvimento desse campo. Diante da paralisação do Fundo Amazônia durante o governo Bolsonaro, o BNDES avançou em outras frentes que, segundo Kadri, superaram as expectativas iniciais, envolvendo, por exemplo, um match fund para restauração florestal, e o uso de blended finance para projetos em biodiversidade. “O ecossistema para desenvolvimento de oportunidades para bioeconomia está pronto para receber propostas inovadoras”, diz. “Além disso, temos de ter no radar os desafios e as oportunidades que a retomada do Fundo Amazônia trará para os próximos anos, tanto como um instrumento de captação de novos recursos como apoio a uma agenda estruturante na região.”
Kadri também recomenda dedicar estudos para reorganizar a tributação da energia elétrica. Como são recolhidos impostos no consumo e não na geração, a arrecadação relativa à energia não fica na Amazônia, sua grande produtora, e sim nos centros consumidores em outras regiões do País. Rever essa tributação, portanto, poderia trazer mais recursos para a região, fortalecendo sua economia.
Governança climática
Crescer com a natureza e os povos originários – e não contra a natureza – é a agenda ambiciosa que o Brasil deve propor ao mundo, na visão de Izabella Teixeira, senior fellow do Instituto Arapyaú, ex-ministra do Meio Ambiente e conselheira da presidência da COP 27.
Ao comentar a proposta no tema da governança, de criar a Secretaria de Estado de Emergências Climáticas diretamente vinculada à Presidência da República, Teixeira explica por que essa agenda precisa ir além da área ambiental e ganhar um espaço estratégico na tomada de decisão do novo governo.
Um dos motivos é a dimensão geopolítica que a questão climática adquiriu. “A governança climática internacional vem mudando de maneira bem expressiva, não mais se circunscrevendo às questões do domínio de tomada de decisão dos ministros do Meio Ambiente no mundo”, diz. Segundo ela, estão cada vez mais presentes atores de várias constituições nas discussões que envolvem a temática climática, o que vem exigindo o engajamento do setor privado e financeiro. É crescente a importância das chamadas finanças climáticas e seu papel no desenvolvimento sustentável, considerando também o impacto da era digital tecnológica.
Ela destaca que a nova geopolítica diz respeito às chamadas relações Leste-Oeste e não somente às relações Norte-Sul, formando blocos de países like-minded, ou seja, com posições ou características semelhantes, como Brasil, República Democrática Congo e Indonésia (grandes detentores de florestas e com altos índices de desmatamento e que formam a chamada “Opep das Florestas”). As dinâmicas de negociações não mais se circunscrevem aos governos: a sociedade civil deseja participar mais, o que abre a perspectiva de corresponsabilidade na tomada de decisão, e não só de reivindicações de direitos.
Mudanças como essas nas relações de poder, de qualificação e interlocução política exigem do Brasil um olhar mais abrangente para os próximos 20 anos, o que implica transformações na área ambiental para além das ações de controle do desmatamento. “O desmatamento é um assunto que deveria ficar no passado, mas infelizmente ainda nos assombra no presente”, diz. O Sistema Nacional de Meio Ambiente (Sisnama) – que ela qualifica como um Sistema Único de Saúde (SUS) sem transferência obrigatória de recursos – precisa ser revisto, assim como devem ser revistas as relações interfederativas.
Para Eduardo Viola, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, o documento está em sintonia com o governo eleito. No entanto, a sociedade brasileira deve cuidar, nos próximos anos, de separar a direita da extrema direita para que a agenda da sustentabilidade avance. “Isso é decisivo para o futuro da democracia no Brasil, de modo a não repetir a história dos Estados Unidos, em que a extrema direita domina a direita”, diz, ressaltando o negacionismo climático que caracteriza a ultra direita.
O relatório foi entregue em mãos ao governo de transição durante a COP 27. Acompanhe os eventos da Conferência por meio dos seguintes links: www.brazilclimatehub.org e UN Climate Change – Events – YouTube.
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