Pesquisa da USP com 300 participantes mostra que 40% de juízas e servidoras sofrem ou já sofreram violência doméstica, mas apenas 14% procuraram a justiça
Ana Beatriz Fogaça- USP
A violência de gênero atinge números alarmantes no Brasil. No ano passado o país ocupava a 5ª posição no ranking da violência contra a mulher, conforme dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). Entre juízas e servidoras do sistema de justiça brasileiro a realidade não é diferente, é o que mostra a pesquisa coordenada pela professora Fabiana Severi, da Faculdade de Direito em Ribeirão Preto da USP, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas em São Paulo, pesquisadoras das duas instituições e juízas atuantes na defesa da mulher.
A pesquisa exploratória contou com a participação de 300 mulheres. Entre elas 51% são servidoras e 49% são juízas, distribuídas entre a esfera municipal, estadual e federal, sendo a maioria atuante no Distrito Federal e em São Paulo. As participantes, após confirmadas como juízas e servidoras, responderam dois formulários virtuais, submetidos previamente a um comitê de ética e com diversas estratégias para garantir o anonimato das respondentes.
O estudo analisou a violência de gênero sob a lente de magistradas e servidoras e buscou identificar os principais fatores que levam essas mulheres a procurarem ou não os serviços oferecidos pela justiça brasileira. Para isso, as pesquisadoras utilizaram o conceito “rota crítica”, muito discutido na literatura nacional e internacional e usado para definir o percurso complexo que as mulheres enfrentam quando decidem interromper o ciclo da violência doméstica e familiar.
Este percurso é marcado frequentemente pela culpabilização da mulher, pela ineficácia das medidas protetivas, precariedade dos serviços de atendimento, desconhecimento sobre seus direitos, além da naturalização da violência e da concepção de que este é um problema de domínio privado. “Na nossa sociedade já existe uma ideia de que as mulheres suportam, ou deveriam suportar determinados tipos de violência, é muito difícil para mulher compreender que aquela é uma relação violenta”, explica Fabiana.
Apesar dos fatores comuns à maioria das mulheres, a rota crítica pode sofrer alterações a depender da classe social, orientação sexual e raça, e a pesquisa buscou destacar as particularidades dessa rota para mulheres que se encontram em posição social e profissional de elite no País, juízas e servidoras, que em tese estariam imunes aos efeitos deste percurso e da própria violência, porém os resultados mostraram ao contrário.
Incidência da violência doméstica entre magistradas e servidoras
O relatório final da pesquisa revelou que 40% das respondentes sofreram ou sofrem violência doméstica e familiar. Fabiana explica que “o que se esperava é que um maior conhecimento sobre a violência doméstica, sobre a Lei Maria da Penha, fosse um elemento que incidisse mais favoravelmente na tomada de decisão para que as mulheres busquem apoio para romper com relações de violência doméstica, em especial, no sistema de justiça e de segurança. Mas o estudo mostrou que não necessariamente”.
Quando indagadas sobre o tipo de violência, a psicológica teve o maior índice registrado, 92%, seguido da violência moral, 47%, e da patrimonial, 32%. Além disso, conforme as respostas obtidas, a violência psicológica costuma estar associada a outros tipos de violência, o que foi registrado em 79% dos casos. Todas as violências tem impacto na saúde
Em relação aos autores da violência doméstica e familiar, o companheiro ou marido, atual ou não, aparece em 83% dos casos em que as participantes afirmaram sofrer ou ter sofrido algum episódio de violência. Na sequência, aparecem os genitores, 14%, e os irmãos ou irmãs, 7%.
Integrar o sistema de justiça: um fator não protetivo
Após mapear a incidência da violência doméstica e familiar entre as participantes, seus tipos e principais agressores, as autoras da pesquisa buscaram identificar o percurso traçado por essas mulheres para lidar com a situação, que se inicia, normalmente, com o compartilhamento da situação vivida.
A maioria das respondentes, 85%, afirmou que chegou a conversar com alguém sobre a violência sofrida. O grupo de pessoas mais procurados por elas foi o de parentes, 78%, seguido do de amigos e amigas, 71%, enquanto policiais e médicos alcançaram o índice de 14%, indicando que elas optaram por ajuda de pessoas próximas e cujo sigilo manteria a situação na esfera privada.
Ao perguntar se elas haviam procurado ajuda no sistema de justiça, das 40% que afirmaram sofrer ou ter sofrido violência, apenas 14% responderam que sim. Os principais motivos que justificam este número são: 47% não consideraram a situação vivida grave o suficiente para procurar a justiça, 32% alegaram que não precisaram do sistema de justiça para enfrentar a situação e 14% mencionaram o sentimento de vergonha de que outras pessoas que trabalham na justiça saibam da sua demanda contra a violência.
Os fatores apontados acima, em destaque do último, conforme análise das pesquisadoras, mostrou que estar inserida no sistema de justiça, ao invés de facilitar o processo de rompimento do ciclo de violência, faz com que essas mulheres se sintam ainda mais expostas e constrangidas, barreira que supera a potencial facilidade de acesso à justiça.
Contribuição da pesquisa
abiana Severi conta que a pesquisa ainda que de caráter exploratório, ou seja, não representativa, lança luz para a discussão da temática da violência doméstica e familiar, em especial entre juízas e servidoras, dando início a uma reflexão sobre a qualidade da resposta do sistema de justiça para essas e todas as outras mulheres em situação de violência doméstica no país.
A juíza Rafaela Caldeira Gonçalves, atuante na defesa da igualdade de gênero e integrante da equipe que realizou o estudo, aponta que a pesquisa reforça a fala de especialistas: “A violência de gênero no contexto doméstico familiar não tem classe social, classe econômica e não tem nível cultural”, ainda que as Interseccionalidades possam agravar as estatísticas.
Rafaela como integrante da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo, acredita que diversos avanços já podem ser notados na defesa da mulher desde a Lei Maria da Penha, como a criação de Varas e Delegacias especializadas.
Apesar disso, compartilha que “ainda há um caminho enorme a percorrer na efetivação dos direitos dessas mulheres, passando pela maior capacitação de todos os agentes do sistema de justiça e a compreensão de que a perspectiva de gênero precisa ser trazida para todos os julgamentos”.
Texto publicado originalmente por Jornal da USP
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