Por Sergio Adeodato
Populações tradicionais – municiadas pela internet e parcerias de gestão – vencem distâncias e se aproximam de grandes compradores e investidores, seguindo a lógica do comércio justo e da certificação de origem dos produtos
Para além do sabor e qualidade, o tripé “educação, organização social e conservação da biodiversidade” é o segredo por trás do açaí da Amazonbai, cooperativa que reúne comunidades agroextrativistas do Arquipélago de Bailique, na foz do Rio Amazonas, Amapá, na disputa do aquecido mercado global em torno da mais nova commodity da floresta. Destaque no Fórum de Inovação em Investimento na Bioeconomia Amazônica (F2iBAM), que se realiza até o dia 25, o negócio com o “ouro roxo” naquela região demonstra como populações tradicionais – municiadas pela internet e parcerias de gestão – estão rompendo barreiras da distância e se aproximando de grandes compradores e investidores, com a lógica do comércio justo e da origem sustentável de produtos.
“O desenvolvimento econômico local está atrelado à educação, uma vez que parte do lucro destinada à formação de mulheres e jovens como novas lideranças que futuramente pegarão o bastão nas comunidades”, afirma o engenheiro florestal Amiraldo Picanço, presidente da Amazonbai, no painel dedicado ao debate sobre como construir pontes entre o chão da floresta, startups e investidores. “Gestão comunitária é essencial para qualquer projeto na Amazônia”, enfatiza.
A cooperativa é fruto de um marco inédito das relações comerciais na Amazônia: a elaboração do Protocolo Comunitário do Bailique, elaborado em 2014 pelas comunidades para organizar as cadeias produtivas em bases mais equitativas, com empoderamento local e ênfase no potencial do açaí sem desmatamento. Desta forma, após o selo socioambiental para o manejo florestal e o produto lá beneficiado, a Amazonbai foi a primeira organização do País a receber o carimbo do Forest Stewardship Council (FSC) para serviços ecossistêmicos, em 2019, de olho no mercado de carbono.
Atualmente, a estratégia é a certificação orgânica e vegana em busca de melhores preços e espaços especiais de comercialização, surfando na demanda mundial por alimentação saudável e mitigação da mudança climática. “Já estamos organizados e temos um produto diferenciado”, ressalta Picanço, na esperança de maior reconhecimento pelo mercado a ser trabalhado a partir de agora, visando agregação de valor no curto prazo, com regras ambientais, “na contramão do atual desmatamento da Amazônia como um todo”.
Segundo Andrea Azevedo, diretora do Fundo JBS pela Amazônia e moderadora do debate no F2IBAM, o momento exige reflexões sobre problemas e soluções de negócios que envolvem inovação e empreendedorismo, desde a base na floresta até as grandes empresas na ponta das cadeias, com suas políticas nos componentes ESG (Ambiental, Social e Governança, em inglês), que cada vez mais influenciam a forma de produzir.
“Estamos muito empenhados em fazer essa bioeconomia funcionar e para isso a floresta precisa ter valor”, explica Azevedo, reforçando a necessidade de conectar esses diferentes mundos, no sentido de sair dos casos isolados e aumentar a escala, trazendo luzes a políticas públicas e privadas que visam maior prosperidade para a Amazônia.
“O diferencial é negociar diretamente com empresas para a compra não apenas de nossos produtos, mas também de nossa história como comunidades protetoras da floresta”, aponta Raimunda Rodrigues, liderança feminina da Reserva Extrativista Rio Iriri, no Pará.
Há nove anos são realizadas rodadas anuais de negociação junto a empresas na reserva, para venda de produtos como óleo de castanha-do-brasil e farinha de babaçu, também fornecida à merenda escolar, resultado de um longo processo de diálogo e capacitações. O cenário foi possibilitado por conquistas estratégicas, em 2011, com apoio de ONGs: a instalação de uma mini-usina de beneficiamento e a criação de uma rede de cantinas comunitárias – entrepostos comerciais onde a produção é escoada. Um novo forno permitiu a desidratação de amêndoas de castanha, viabilizando a armazenagem por seis meses para venda por melhores preços.
“Quebramos barreiras logísticas e culturais, com valorização dos produtos e maior aproximação das empresas”, revela a ribeirinha. “Hoje temos mais autonomia na luta pela conservação da floresta em pé”, completa. Após uma década, o faturamento anual das cantinas chegou perto de R$ 2 milhões.
“Cada etapa do caminho entre a floresta e a indústria requer estímulos diferentes”, pondera Leonardo Letelier, fundador da Sitawi Finanças do Bem, gestora de fundos que apoiou até agora 120 organizações, com R$ 37 milhões. Do total, R$ 6 milhões destinaram-se a startups como investimento de impacto socioambiental positivo, por meio de uma plataforma de crédito coletivoaberta a aportes de pessoas físicas, no valor mínimo de R$ 1 mil, com retorno acima da poupança.
“Todas as modalidades de recursos são importantes para o desenvolvimento da Amazônia”, defende Letelier. Para ele, a solução não deve vir de apenas um negócio, mas de um movimento coletivo, com ênfase no impacto positivo e no capital não retornável. “É necessária uma mudança nas expectativas dos investidores, porque a realidade paulistana da Faria Lima é diferente do mundo amazônico”, adverte.
“Acreditamos na estratégia de criar empregos e oportunidades verdes na concorrência com a economia do desmatamento, mas o sistema de investidores é ainda fraco”, afirma Jonah Wittkamper, fundador da Amazon Investors’ Coalition. Estudo da organização levantou o potencial para 35 produtos agroflorestais, no propósito de apoiar a transição para o uso da terra com floresta: “No total, a renda anual pode chegar a R$ 150 bilhões acima do que fazendeiros ganham com gado e soja”, revela.
Segundo ele, foram identificados seis grandes fundos de investimento na Amazônia, três deles com dinheiro de governos para ajudar na crise. “Estamos estudando esses mecanismos para entender como trazer mais recursos, incluindo o trabalho de educação de investidores sobre como atuar na região”, diz.
Wittkamper enfatiza: “No momento estamos vendo com muita cautela as questões na Amazônia e queremos ajudar, com o desenho de uma economia verde mais amigável à floresta, mas faltam políticas mais fortes para o desenvolvimento sustentável”.
Qual o papel dos grandes bancos nesse cenário? Há quase um ano, as três maiores instituições financeiras privadas brasileiras – Bradesco, Itaú e Santander – uniram-se para influenciar ações contra o desmatamento que, hoje em nível recorde, já arruinava a imagem do País com risco para os negócios.
Foi gerada grande expectativa, mas não se tem notícia de medidas práticas desde então. Segundo Fabiana Tolentino, gerente de sustentabilidade do Bradesco, painelista do F2IBAM, “a Amazônia apresenta alta complexidade e a estratégia agora é estar presente e entender a região para preparar um plano de ações”. O desafio de destravar a bioeconomia, afirma ela, está na pauta.
Texto publicado originalmente em Página 22
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