Por Ana Ionova
No centro histórico de Manaus, um mural que retrata a história dos povos originários da cidade se ergue acima dos pedestres que disputam espaços na calçada. Com 34 metros de comprimento e pintado em tinta spray pelo artista Fábio Ortiz, ele mostra guerreiros que avançam sobre uma teia de rios amazônicos e também um cemitério, lembrando o conjunto de urnas mortuárias que antes existia ali – e o destino violento que muitas etnias sofreram nas mãos dos colonizadores.
O mural é incomum porque, até recentemente, Manaus, a capital do Amazonas que recebeu o nome do povo Manaós que antes vivia ali, relutava em abraçar as histórias dos povos indígenas que primeiro habitaram aquelas terras, de acordo com Jaime Diakara, antropólogo, pintor e membro do povo Desana.
“Ao longo da história, o estado não tem reconhecido as vivências dos povos indígenas”, diz Diakara, pesquisador do Centro de estudos Indígenas da Universidade Federal do Amazonas. “Era sempre um grande desafio que a gente enfrentava para mostrar nossa identidade, mostrar nossos valores culturais.”
O exemplo mais duro disso talvez seja do próprio local onde o mural foi realizado, do outro lado da rua da Praça Dom Pedro II, uma praça de estilo europeu construída em meados do século 19 em homenagem ao último imperador do Brasil. Décadas atrás, arqueólogos descobriram que a praça foi construída sobre um antigo cemitério indígena, que continha urnas mortuárias datadas de mais de 1.500 anos. Mas, até recentemente, esse pedaço da história ancestral da cidade era em grande parte ignorado, diz Diakara. “Por ser cemitério, esse local tem um valor sagrado ali. Mas o estado nunca reconheceu isso. Essa homenagem só veio agora.”
Isso mudou no ano passado, quando a cidade contratou o artista Fábio Ortiz para as imagens que se estendem por 140 metros quadrados em homenagem à memória dos povos indígenas de Manaus. A mais impactante delas, inaugurada em abril de 2020, mostra Ajuricaba, líder do povo Manaós que se rebelou contra os colonizadores no século 18, tornando-se um símbolo de resistência.
Em setembro passado, Manaus também inaugurou sua primeira mostra de arte indígena num prédio histórico que antes abrigava a Assembleia Legislativa do Estado, do outro lado da rua onde fica o mural. Muitos viram a exposição, que durou 40 dias, como um ponto de virada para a cidade.
“Esse tipo de projeto visibiliza mais a cultura indígena e homenageia artistas indígenas”, diz Diakara, cuja própria arte foi exibida na mostra. “Mas não pode parar aqui. Tem muito trabalho pela frente.”
Conflito de identidade
À medida que Manaus reconhece sua história pré-colonização, um número crescente de seus moradores está abraçando sua própria herança indígena.
O Amazonas abriga a maior população originária do Brasil, onde 168.700 pessoas se identificam como indígenas, de acordo com o censo de 2010, o mais recente realizado. Manaus, por sua vez, abriga quase 4 mil indígenas, segundo números do censo, mas lideranças dizem que o número é bastante subestimado, e alguns acreditam que a população esteja perto de 30 mil.
Mais de um terço dos 818 mil indígenas do Brasil vivem em cidades, de acordo com o censo. A diáspora é resultado da expulsão de seus territórios desde o período colonial – um movimento que continua até hoje, agravado pela presença de grileiros , pecuaristas e garimpeiros ilegais invadindo suas terras, derrubando as florestas e envenenando os rios.
Ainda assim, nas cidades, eles frequentemente enfrentam a pobreza, a insegurança habitacional e o estigma social que desencoraja muitos de se identificarem como indígenas ou a continuarem com suas tradições, diz Vanda Ortega, ativista e líder comunitária do povo Witoto.
“Na cidade, nossos povos enfrentam barreiras que os afastam da cultura”, afirma ela. “Quando você está morando em um quarto, onde você não consegue dançar, você não consegue se pintar, você não tem um pedaço de terra para se conectar – como que você vai manter a sua cultura?”
Em Manaus, muitos indígenas vivem em assentamentos ilegais nas periferias da cidade, construindo comunidades improvisadas onde preservam seu estilo de vida cultivando alimentos, vivendo coletivamente e realizando cerimônias tradicionais. Mas as autoridades demoliram vários desses assentamentos, dispersando as comunidades e deixando seus integrantes sem moradia.
Com a dificuldade para manter as tradições fora das aldeias, alguns indígenas acabam perdendo contato com sua cultura, diz Tsa Chira Mapa Kokama, artista que trabalha com a pintura corporal tradicional e se mudou para Manaus para ajudar a preservar essa forma de arte no contexto urbano.
“É difícil não se afastar da sua cultura, da sua identidade, na cidade”, diz ela. “Por mais que a gente saia da nossa aldeia, a gente carrega nossa história e a nossa ancestralidade. E nossos filhos também carregam nosso sangue, que é sangue de guerra, de luta, de resistência, de força.”
Temendo que a migração para as cidades possa levar a um apagamento da cultura originária, líderes comunitários estão incentivando indígenas de todo o Brasil a abraçar sua identidade e a declarar sua ancestralidade no censo deste ano, que deve começar em agosto.
Lideranças estimam que o próximo censo mostrará que há mais de 1 milhão de indígenas no Brasil hoje. Esta explosão nos números dará uma visibilidade muito necessária às comunidades originárias especialmente às que vivem em contextos urbanos, diz Vanda Ortega.
“Esse vai ser um momento histórico para mim”, afirma ela. “Hoje a nossa geração está fazendo o movimento de se auto-reconhecer e fazer um caminho de acessar as nossas histórias para o fortalecimento dessa identidade. E quando se aumentam essas vozes, a gente ganha força para garantia de direitos.”
Resgatando a identidade
Chermie Ferreira nem sempre se identificou como uma mulher indígena. Embora o bisavô da artista fosse um Kokama, Ferreira sempre relutou em assumir essa identidade, em grande parte porque cresceu desconectada da tradição e da cultura de seus antepassados.
“Eu estive nesse conflito de não me ver enquanto uma mulher branca e de não me ver também enquanto uma mulher negra”, disse ela à Mongabay numa entrevista em seu estúdio na periferia de Manaus. “Porque a sociedade julga muito o que é o indígena: alguém do cabelo liso, do tom [de pele] mais escuro, do olho mais puxadinho. Alguém que nasceu na aldeia.”
Depois de anos lutando para encontrar seu lugar na sociedade como artista, há dois anos Ferreira finalmente começou a reivindicar sua identidade indígena e a redescobrir a cultura de seus ancestrais. E ela diz que vê muitos outros passando por um despertar semelhante em relação a suas próprias identidades.
“Durante muito tempo as pessoas queriam ser brancas. Não queriam ser indígenas no contexto que a gente vive. Agora, estão começando a se identificar, a se orgulhar do que a identidade indígena representa.”
O grafite agora se tornou um veículo para Ferreira contar as histórias de seus ancestrais. No ano passado, ela também participou da primeira mostra de arte indígena da cidade. Ela costuma retratar indígenas e ribeirinhos pintados com delicadeza, representados em canoas flutuando sobre vibrantes águas azuis.
“Comecei a trazer isso para falar sobre as memórias da minha família”, diz ela. “Falando da memória da minha família, estou falando da memória dos povos ribeirinhos. Eu estou falando dos povos indígenas, e estou falando do Norte em geral.”
Por todo o Brasil, outros grafiteiros também estão transformando espaços públicos em telas para contar as histórias dos povos originários. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, rostos indígenas estão grafitados nas fachadas de prédios e nos muros de vielas. Em Belo Horizonte, a imagem de uma mulher segurando uma criança ocupa uma empena de mil metros quadrados pintada por Daiara Tukano – o maior mural pintado por uma artista indígena no mundo.
Ocupar espaços públicos desta forma permite que os indígenas afirmem sua identidade e história, diz Zulu Aápuàka Tupinambá, ativista e crítico cultural. Desta forma, o grafite traz mais visibilidade aos povos originários, que com frequência são deixados de fora dos espaços culturais, diz ele. “A arte urbana é uma grande galeria aberta, com acesso ao público. E arte urbana é falar: ‘olha, a gente precisa também colocar nos muros as nossas origens.’”
Fonte: Conexão Planeta
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