O zoológico humano não é a solução para a preservação da floresta amazônica.
Por Oberdan Pandolfi Ermita
Até o último quarto do século passado, a região amazônica ainda preservava condições de fauna e de flora muito semelhantes daquelas desde a chegada de Cabral. Mas um forte movimento migratório mudaria o destino da região, trazendo profundas transformações econômicas, sociais e ambientais. Este movimento, em alguma medida, não pode ser dissociado da dinâmica que marcou o esgotamento e antropização de quase 90% da Mata Atlântica e do próprio processo de crescimento demográfico e de urbanização da população brasileira. Por sua vez, a incessante pressão sobre a floresta amazônica, guarda profunda correlação com a assimetria e insuficiente apropriação dos conhecimentos do legado da ciência tropical brasileira nos modelos de produção da região.
O Brasil crescia demograficamente e se tornava urbano, a população quase dobrou no período de 1950 a 1970, passando de 51,9 milhões para 93,1 milhões (IBGE), de uma população 64% rural, neste curto período de duas décadas, passa para 56% urbana, trazendo importantes desafios do ponto de vista da segurança alimentar.
A antropização da Mata Atlântica, iniciada desde o período da colonização, tem neste período o esgotamento da sua ocupação. Além das culturas do café e da cana-de-açúcar, a extração de madeira e a criação de bovinos geravam excedentes econômicos e de alimentos, guardando estreita relação com o próprio dinamismo de um Brasil que se urbanizava e se industrializava.
Mas uma Mata Atlântica não foi suficiente, porque a produção se assentava em técnicas extrativistas, que pouco se diferia daquelas praticadas pelos povos originários. Portanto, um modelo que não conseguiria se reproduzir e ampliar a produção sem a incorporação de novas áreas. A supressão da floresta dava lugar a pastagens ou lavouras. Pastagens com quase um século de ocupação, que extraiu o bônus e a fertilidade dos anos iniciais da supressão, arrastando-se com produtividade extremamente baixa, inúmeras vulnerabilidades ambientais, limitando a sua capacidade de geração de excedente econômico e de renda. Um ciclo vicioso, que só encontraria solução para uma tragédia anunciada tanto do ponto de vista de conflitos agrários, como de geração de excedente econômico, com a antropização de uma outra floresta, a Amazônica.
Esta foi a saga de inúmeros capixabas, paulistas e paranaenses que deixaram suas terras natais. À medida que essas famílias com filhos numerosos se tornavam adultos, se tornava impossível reproduzir a subsistência naquela mesma área e modelo de produção. À medida que o Brasil crescia demograficamente e se urbanizava, se tornava impossível prover segurança alimentar, sem a incorporação de novas áreas de produção de alimentos.
O governo brasileiro concentrou esforços, iniciando uma política de estado para incentivar a ocupação da Floresta Amazônica, doando terras, criando infraestrutura e todo o aparato necessário. As principais transformações ocorreram no estado de Rondônia, Acre, Sul do Amazonas e do Pará. O estado de Rondônia retrata esta saga. De uma população de pouco mais de 50 mil habitantes nos anos 60 e de um território praticamente intocado, tem hoje 1,75 milhões de habitantes e mais de 60% do seu território antropizado. Ao mesmo passo que se conecta nacionalmente e globalmente como importante produtor e exportador de carne bovina, pescados, café, cereais e madeira, também reproduz os mesmos desafios de disparidades de renda e de acesso a infraestrutura social, daqueles enfrentados pelas regiões de ocupação mais antigas do país.
Mas algo inédito ocorria, que permitiria romper com a lógica extrativista, seu ciclo vicioso de constante necessidade de incorporação de novas áreas e de pressão sobre a floresta. Permitiria mudar definitivamente a realidade agrária brasileira, dando protagonismo ao nosso país de ofertar uma grande contribuição para humanidade, a segurança alimentar e a paz: que foi a incorporação da ciência para o advento da agricultura tropical sustentável.
Embora completando quase meio século de construção da ciência tropical sustentável brasileira, a região amazônica antropizada (aproximadamente 15% da sua extensão) ainda é um amalgamo de estágios tecnológicos de produção agrária, de grande assimetria da incorporação do conhecimento científico e do legado da agricultura tropical sustentável.
Disto resulta que a região continua a reproduzir a mesma dinâmica que foi a da antropização da Mata Atlântica, um processo de ocupação e de modelos de produção que predominam práticas extrativistas, de baixa produtividade dos fatores de produção, cujo resultando sempre é o esgotamento da geração de excedente econômico e consequente pressão sobre a floresta para a incorporação de novas áreas produtivas, como principal via para aumentar a produção, ampliar escala e auferir renda, em detrimento da apropriação do legado da ciência tropical sustentável que permitiria romper com esta lógica.
O município de Espigão do Oeste, região quase ao sul do estado de Rondônia, teve boa parte do seu território dividido em pequenas glebas, por meio de projeto de assentamento do Governo Federal, capitaneado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, que foram doadas para famílias provenientes principalmente do estado do Espirito Santo. Na região predomina hoje a pecuária extensiva extrativista. O modelo de produção se baseou na supressão da floresta, implantação da pastagem e a criação de bovinos em áreas extensivas. Sem a incorporação de tecnologias como preservação de nascentes, reposição de nutrientes e manejo racional das pastagens, somado a um clima tropical de chuvas torrenciais que lixivia os nutrientes do solo, ceteris paribus, este modelo encontra limitações para se reproduzir e garantir renda em propriedades pequenas, pela baixa escala.
A região faz divisa com o Parque Indígena Aripuanã, que engloba parte do município e se estendendo até o estado do Mato Grosso. Com uma área territorial impressionante, quase do tamanho do Estado de Sergipe e uma população com menos de 2 mil indígenas (FUNAI), o Parque possui recursos naturais abundantes. A pressão para a extração de madeira e o garimpo são incessantes e de quase impossível fiscalização, pela vastidão territorial do Parque.
Trata-se de uma tempestade perfeita. De um lado, estão inúmeras famílias, pequenos produtores rurais, que pelo modelo de produção extrativista adotado desde o início da ocupação da região e pela pequena escala, não conseguem auferir renda suficiente. Do outro, um Parque riquíssimo em recursos naturais, de impossível fiscalização. É comum na região pessoas que durante o período da seca se aventuram em extrair madeira ilegal no Parque. No período das chuvas, voltam para as suas propriedades, ou prestam serviços nas fazendas de maior escala da região. Não enxergam, pela ausência da incorporação do legado da ciência tropical sustentável, alternativas de criação de renda em suas propriedades.
A atividade extrativista ilegal, a baixa produtividade dos fatores de produção das propriedades, limitam a capacidade de geração de excedente econômico, isto por sua vez ecoa no centro urbano sede do município, cuja parte da sua população, mesmo não ligada diretamente ao campo, não enxergam alternativas de renda ou oportunidades de empreender, senão o caminho aparentemente mais fácil, da ilegalidade e assédio sobre o Parque ou atividades correlatas. O ciclo vicioso se retroalimenta.
Mas a pressão sobre a floresta ganha capítulo ainda mais dramático.
Mesmo com o predomínio de uma pecuária extensiva extrativista, o estado de Rondônia possui vantagens comparativas de clima e de solos que lhe permitem gozar de uma relevante atividade pecuária, com a presença de grandes frigoríficos atuando na região, abastecendo inúmeros mercados, garantindo segurança alimentar ao país e divisas internacionais nas exportações. A cada boom de preços das comoditties agrícolas, com elevada correlação, há valorização no preço dos imóveis rurais.
Soma-se a isto, diferentes tamanhos de propriedades, consequentes escalas de produção e diferentes estágios no uso da tecnologia. Embora predomine a pecuária extensiva extrativista, em uma mesma região é possível assistir fazenda vizinhas, uma ao nível de subsistência e outra, do mesmo tamanho, altamente sustentável, utilizando tecnologias como integração lavoura pecuária, cultivo de café robusta amazônico na arte da tecnologia desenvolvida pela Embrapa, propriedades mesmo pequenas que conseguem produzir alimentos de forma sustentável e geração de excedente econômico.
O produtor que não se apropriou do legado da ciência tropical sustentável e que se encontra quase ao nível de subsistência, não enxerga alternativa de ampliar a sua renda senão com a supressão de uma nova área de floresta, necessária para lhe assegurar escala de produção. Por outro lado, aqueles produtores que possuem maior escala, embora com uma produção extrativista, também vislumbram como única alternativa para ampliar a sua renda a incorporação de mais área, de preferência adquirindo a sua vizinhança.
Eis, mais uma vez, uma tempestade perfeita. É comum a venda de pequenas propriedades, que não alcançaram escala produtiva devido ao uso de técnicas extrativistas, mas que pela valorização das terras valem alguns milhões. Estes vendedores, partem para se aventurar em regiões de fronteira de ocupação, regiões que pela omissão do estado, as glebas não possuem titularidade. Lançam-se na sorte de suprimir uma nova área de floresta de forma ilegal, visando alcançar escala produtiva. Como as terras não possuem títulos, é impossível para o Estado atuar ou frear quem está praticando a ilegalidade. Nota-se que mesmo aquele produtor, que possui consciência das questões ambientais, que seria incapaz de realizar uma supressão ilegal de floresta, tendo incorporado ou não técnicas sustentáveis de produção, é indiretamente um desmatador, porque foi ele quem viabilizou e comprou a área daquele produtor que se aventurou para uma nova área de supressão.
A pressão sobre a floresta se retroalimenta como corolário desta dinâmica. A insuficiente incorporação do legado da ciência tropical sustentável, resulta na subutilização do potencial produtivo dos fatores de produção, geram menor massa de renda, menor complexidade das atividades diretas e indiretas ligadas ao agro e consequentemente também limita o impacto no dinamismo nos centros urbanos. Para muitos, se aventurar para conquistar um pedaço de terra, seja por meio de movimentos sociais, grilando áreas públicas ou adquirindo posses é enxergada como principal opção para alcançar o tão sonhado lugar ao sol.
É senso comum que a pecuária é a principal causa de pressão de desmatamento na Amazônia. As mudanças climáticas trazem clamor internacional e cobram do Brasil a imediata interrupção dos desmatamentos na Amazônia. Disto resulta uma série de medidas republicanas e não republicanas, pressões e sansões comerciais, diplomáticas e da opinião pública contra as atividades produtivas na Amazônia e seu carro chefe a pecuária.
Entretanto, trata-se de uma leitura parcial, correlaciona variáveis de forma equivocada e confunde alguns efeitos como causas. Não é a pecuária, a agricultura ou a atividade madeireira as causadoras da pressão sobre a floresta. A causa é a assimetria e insuficiente apropriação dos conhecimentos do legado da ciência tropical brasileira nos modelos de produção da região.
Devido a este equívoco de diagnóstico, há movimento em curso que busca desantropizar e paralisar qualquer iniciativa que beneficie o ganho de escala produtivo da região. Há um engessamento na análise dos Cadastros Ambientais Rurais – CAR, na regularização fundiária, na análise de pedidos de licenças ambientais e na realização investimentos de infraestrutura. Há uma forte atuação de órgãos de governo, de organismos internacionais e de ONGs, que impedem uma séria de políticas e de medidas racionais para as atividades produtivas, uma deliberada tentativa de tornar a Amazônia um zoológico humano.
Toda esta militância parte da análise que ao se facilitar a produção na região, melhorar a escala e a renda do produtor, se reproduzirá a pressão sobre a floresta, o que é um paradoxo e desprezo com a dignidade de milhares de amazônidas. Infelizmente, quanto maior a dificuldade de se produzir na região, mais distante o produtor estará de se apropriar do legado da ciência tropical sustentável, reforça-se o ciclo vicioso de pressão sobre a floresta, reforça-se o ciclo vicioso de disparidade de geração de renda e de oportunidades, coloca uma população de 29 milhões de amazônidas em condições de vulnerabilidade, retroalimenta o ciclo vicioso de pressão sobre a floresta. O diagnóstico equivocado leva a construção de preconceitos, medidas e políticas restritivas também equivocadas, cujos resultados são desastrosos para a região e que acabam por retroalimentar as pressões sobre a floresta, opondo-se e contradizendo-se justamente com aquilo que pretenderia inibir.
A preservação da floresta amazônica não se dará com a sua transformação em um zoológico para o mundo. Esta tentativa somente trará miséria a sua população e mais pressão sobre a floresta. Sua preservação passa necessariamente pela incorporação da ciência tropical sustentável nos modelos de produção de alimentos na região. Serão a pecuária, a agricultura sustentável tropical e também as oportunidades da bioeconomia da floresta, quem darão as bases econômicas capazes de dar suporte a dimensão humana, para o uso sustentável dos recursos naturais, a preservação da floresta e o convívio e preservação dos povos tradicionais da região.
A população amazônica é parte da solução. Não é possível dissociar as dimensões humanas e econômicas para se alcançar a preservação da floresta. Ciência e tecnologias já existem para que os amazônidas contribuam com um dos maiores desafios da humanidade, o aumento da oferta de alimentos saudáveis, resilientes e produzidos de forma sustentável. Esta é a vocação da região e passaporte para o seu desenvolvimento, geração de renda, emprego e dignidade. Não é o zoológico humano, mas sim a apropriação do legado da ciência tropical sustentável a mudança de chave.
Como difundir o legado da ciência tropical sustentável, trazendo luz aos produtores, interrompendo o ciclo vicioso de miséria e pressão sobre a floresta? Como fazer a sociedade, a opinião pública e as ações de política pública parar de demonizar a produção e de fato enfrentar a raiz do problema?
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